"La dificultad no debe ser un motivo para desistir sino un estímulo para continuar"

Compra el disco de Paqui Sánchez

Disfruta de la música de Paqui Sánchez donde quieras y cuando quieras comprando su disco.

Puedes comprar el disco Óyelo bien de Paqui Sánchez Galbarro de forma segura y al mejor precio.

Cem anos de solidáo - Gabriel García Márquez

CEM ANOS DE SOLIDÃO Gabriel García Márquez *** O colombiano Gabriel García Márquez (1928) é o último grande contador de histórias do século XX — e, até prova em contrário, da própria literatura ocidental. Depois de cem anos marcados por revoluções literárias radicais, não deixa de ser surpreendente que ele tenha conquistado tamanha notoriedade — nem o Nobel lhe falta ganhou-o em 1982 — enquanto tentava apenas imitar o tom com que sua avo materna lhe contava episódios mais fantásticos: sem alterar um só traço do rosto. Em nenhum outro livro García Márquez empenhou-se tanto para alcançar aquele tom como em Cem anos de solidão (1967). Assim, ao mesmo tempo em que a incrível e triste história dos Buendía — a estirpe de solitários para a qual não será dada ‘uma segunda oportunidade sobre a terra” — pode ser entendida como uma autêntica enciclopédia do imaginário, ela énarrada de modo a parecer sempre que tudo faz parte da mais banal das realidades.. Seria ingênuo procurar uma chave que explicasse toda a grandeza deste livro diante do qual o repertório de adjetivos torna-se espantosamente ineficaz. Porém, é razoável atribuir parte do êxito de Cem anos àquela contaminação, pelo real, do universo maravilhoso da fictícia Macon€Io, onde se passa o romance. Aqui pesou muito a experiência jornalística de García Márquez. E também a sombra do tcheco Franz Kafka (foi depois de ler a primeira frase de A metamorfose que García Márquez decidiu que seria escritor). Mas, para além desses artifícios técnicos e influências literárias, é preciso que se digã que a atordoante sensaçao de realidade que transborda do livro deve-se ainda ao fato de que ele foi escrito, segundo o autor, para “dar uma saída às experiências que de algum modo me afetaram durante a infância”. Tome-se, por exemplo, a primeira frase de Cem anos. Quando o escritor era pequeno, seu avô, o coronel Márquez, o apresentou mesmo, maravilhado, ao gelo, tal como José Arcadio Buendía faz com o filho Aureliano. Do mesmo modo que José Arcadio, o avô de García Márquez também carregava, na vigília e nos sonhos, o peso de um morto — o homem que havia assassinado. O coronel era marido de Tranquilina, aquela avó que encheu os primeiros anos e o resto da vida do neto Gabriel de histórias bem contadas. García Márquez costuma dizer que todo grande escritor está sempre escrevendo o mesmo livro. “E qual seria o seu?”, perguntaram-lhe. “O livro da solidão”, foi a resposta. Apesar disso, ele não considera Cem anos sua melhor obra (gosta demais de O outono do patriarca, onde o tema também está presente). O que importa? O certo éque nenhum outro romance resume tão completamente o formidável talento deste contador de histórias de solitários — que se espalham e se espalharão por muito mais de cem anos pelas Macondos de todo o mundo. Rinaldo Gama *** Cem anos de solidão Obras do autor O amor nos tempos do cólera A aventura de Miguel Littín clandestino no Chile Cem anos de solidão Cheiro de goiaba Crônica de uma morte anunciada Do amor e oufros demónios Doze contos peregrinos O enterro do diabo Entre amigos Os funerais da mamãe grande O general em seu labirinto A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada A má hora (O veneno da madrugada) Ninguém escreve ao coronel Notícia de um seqüesfro Olhos de cão azul O outono do patriarca Relato de um náufrago Textos do Caribe (2 volum~s) Gabriel García_Mdrquez Prêmio Nobel de Literatura Cem anos de solidao Tradução de ELIANE ZAGURY 48~ EDIÇÃO EDITORA RECORD RIO DE JANEIRO • SÃO PAULO 2000 1. Romance colombiano. 1. Carybé, 1911- .11. Zagury, Eliane, 1945- III. Titulo. CDD — 868.993613 93-0226 CDU — 860(861)-3 Título original -~ CIEN ANOS DE SOLEDAD Copyright © 1967 by Gabriel García Márquez Ilustrações de Carybé Direitos de publicação exclusivos em todos os países de língua portuguesa com exceção de Portugal adquiridos pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSAS. A. Rua Argentina 171 — Rio de Janeiro, RJ — 20921-380 — Tel.: 585-2000 que se reserva a propriedade literária desta tradução Impresso no Brasil ISBN 85-01-01207-6 ~ PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL ___ \~ / Caixa Postal 23.052 Rio de Janeiro — 20922-970 KDITOBP.RILI*DA Para JOMI GARCÍA AsCOl e MARIA LUISA ELÍO -4 6 A MUITOS anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Co-ronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde re-mota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, cons- truídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipi-tavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes co-mo ovos prê-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apon-tar com o dedo. Todos os anos, pelo m~s de março, uma fa-mília de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, dava 7 a conhecer os novos inventos. Primeiro trouxeram o imã. Um cigano corpulento, de barba rude e mãos de pardal,* que se apresentou com o nome de Melquíades, fez uma truculenta demonstração pública daquilo que ele mesmo chamava de a oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedônia. Foi de casa em casa arrastando dois lingotes metálicos, e todo o mundo se espantou ao ver que os caldeirões, os tachos, as te. nazes e os fogareiros caíam do lugar, e as madeiras estalavam com o desespero dos pregos e dos parafusos tentando se de-sencravar, e até os objetos perdidos há muito tempo apare-ciam onde mais tinham sido procurados, e se arrastavam em debandada turbulenta atrás dos ferros mágicos de Melquía-des. “As coisas t~m vida própria”, apregoava o cigano com áspero sotaque, “tudo é questão de despertar a sua alma.” José Arcadio Buendía, cuja desatada imaginação ia sempre mais longe que o engenho da natureza, e até mesmo além do milagre e da magia, pensou que era possível se servir daquela invenção inútil para desentranhar o ouro da terra. Melquía-des, que era um homem honrado, preveniu-o: “Para isso não serve.” Mas José Arcadio Buendía não acreditava, naquele tempo, na honradez dos ciganos de modo que trocou o seu jumento e um rebanho de cabritos pelos dois lingotes imanta-dos. Ursula Iguaráni sua mulher, aue contava com aqueles ani-mais para aumentar o raquítico Datrimônio doméstico, não conseguiu dissuadi-lo. “Muito eu’ breve vamos ter ouro de so-bra para assoalhar a casa”, respondeu o marido. Durante vá-rios meses empenhou-se em demonstrar o acerto das suas con-jeturas. Explorou palmo a palmo a região, inclusive o fundo do rio, arrastando os dois lingotes de ferro e recitando em voz alta o conjuro de Melquíades. A única coisa que conseguiu desenterrar foi uma armadura do século XV, com todas as suas partes soldadas por uma camada de óxido, cujo interior tinha a ressonância oca de uma enorme cabaça cheia de pedras. *No original manos de gorrión. Explicação do autor à tradutora: “O importante da imagem é que esse pássaro tem patas de ave de rapina, mas é bom e inofensivo. Mel-quíades também, por suas mãos, e à primeira vista, podia parecer uma ave de rapi-na, mas não o era, como se viu mais tarde.” 8 - o José Arcadio Buendía e os quatro homens da sua ex-conseguiram desarticular a armadura, encontraram ‘um esqueleto calcificado que trazia pendurado no pes-um relicário de cobre com um cacho de cabelo de mulher. Em março os ciganos voltaram. Desta vez traziam um ócu-alcance e uma lupa do tamanho de um tambor, que exi-como a última descoberta dos judeus de Amsterdam. itaram uma cigana num extremo da aldeia e instalaram o [o de alcance na entrada da tenda. Mediante o pagamento cinco reais, o povo se aproximava do óculo e via a cigana alcance da mão. “A ciência eliminou as distâncias”, apre-Melquíades. “Dentro em pouco o homem poderá ver acontece em qualquer lugar da terra, sem sair de sua “Num meio-dia ardente, fizeram uma assombrosa de-~istração com a lupa gigantesca: puseram um montão de seco na metade da rua e atearam fogo nele pela con-ntração dos raios solares. José Arcadio Buendía, que ainda se consolara de todo do fracasso dos seus ímãs, concebeu ~ia de utilizar aquele invento como uma arma de guerra. iuíades, outra vez, tratou de dissuadi-lo. Mas terminou os dois lingotes imantados e três peças de dinheiro ‘ em troca da lupa. Ursula chorou de consternação. ~uele dinheiro fazia parte de um cofre de moedas de ouro seu pai acumulara em toda uma vida de privações e que havia enterrado debaixo da cama, à espera de uma boa casião para investi-las. José Arcadio Buendía nem sequer ten-....~ consolá-la, entregue que estava por inteiro às suas expe-Lcias táticas, com a abnegação de um cientista e até mes-com o risco da própria vida. Tentando demonstrar os efei-da lupa na tropa inimiga, ele mesmo se expôs à concentra-dos raios solares e sofreu queimaduras que se transfor-~aram em úlceras e demoraram muito tempo para sarar. Dian- - - protestos da mulher, alarmada por tão perigosa inven-por pouco não incendiou a casa. Passava longas horas no quarto, fazendo os cálculos das possibilidades estratégicas da nova arma, até que conseguiu compor um manual de uma I assombrosa clareza didática e um poder de convicção irresis-tível. Enviou-o às autoridades, acompanhado de numerosos tes-9 temunhos sobre as suas experiências e de vários apêndices de desenhos explicativos, aos cuidados de um mensageiro que atra-vessou a serra, extraviou- se em pântanos desmesurados, su-biu rios tormentosos e esteve a ponto de perecer sob o ataque das feras, o desespero e a peste, até encontrar um caminho que o levasse às mulas do correio. Embora a viagem à capital fosse naquele tempo quase impossível, José Arcadio Buendía prometia tentá-la logo que o Governo ordenasse, com o fim de fazer demonstrações práticas do seu invento diante dos po-deres militares, e adestrá- los pessoalmente nas complicadas ar-tes da guerra solar. Durante vários anos esperou a resposta. Por fim, cansado de esperar, lamentou-se diante de Melquía-des do fracasso da sua iniciativa e o cigano, então, deu uma prova convincente de honradez: devolveu-lhe os dobrões em troca da lupa e deixou, para ele, além disso, uns mapas por-tugueses e vários instrumentos de navegação. De seu próprio punho e letra escreveu uma apertada síntese dos estudos do monge Hermann, que deixou à sua disposição para que pu-desse se servir do astrolábio, da bússola e do sextante. José Arcadio Buendía passou os longos meses de chuva fechado num quartinho que construíra no fundo da casa, para que nin-guém perturbasse as suas experiências. Tendo abandonado completamente as obrigaç~ões domésticas, permaneceu noites inteiras no quintal, vigiando o movimento dos astros, e quase sofreu uma insolação, por tentar estabelecer um método exa-to para determinar o meio-dia. Quando se tornou perito no uso e manejo dos seus instrumentos, passou a ter uma noção do espaço que lhe permitiu navegar por mares incógnitos, vi-sitar territórios desabitados e travar relações com seres esplên-didos, sem necessidade de abandonar o seu gabinete. Foi por essa ocasião que adquiriu o hábito de falar sozinho, passean-do pela casa sem se incomodar com ninguém, enquanto Ur-sula e as crianças suavam em bicas na horta cuidando da ba-nana e da taioba, do aipim e do inhame, do cará e da berinje-la. De repente, sem anúncio prévio, a sua atividade febril se interrompeu e foi substituída por uma espécie de fascinação. Esteve vários dias como que enfeitiçado, repetindo para si mes-mo em voz baixa um rosário de assombrosas conjeturas, sem 10 crédito ao próprio entendimento. Por fim, numa terça-a de dezembro, na hora do almoço, soltou de uma vez to-o peso do seu tormento. As crianças haviam de recordar .o resto da vida a augusta solenidade com que o pai se sen-.i na cabeceira da mesa, tremendo de febre, devastado pela ólongada vigília e pela pertinácia da sua imaginação, e re-Ílou a eles a sua descoberta: — A terra é redonda como uma laranja. Úrsula perdeu a paciência. “Se você pretende ficar lou-k~ fique sozinho”, gritou. “Não tente incutir nas crianças as Lias idéias de cigano.” José Arcadio Buendia, impassível, não ~ deixou amedrontar pelo desespero da mulher que, num im-~ulso de cólera, destroçou o astrolábio contra o solo. Cons-ruiu outro, reuniu no quartinho os homens do povoado e de-nonstrou a eles, com teorias que acabaram sendo incompreen-íveis para todos, a possibilidade de regressar ao ponto de par-ida navegando sempre para o Oriente. A aldeia inteira já es-ava convencida de que José Arcadío Buendía tinha perdido juízo, quando Melquíades chegou para pôr a coisa em pra-os limpos. Ressaltou em público a inteligência daquele ho-nem que, por pura especulação astronômica, construíra uma eoria já comprovada na prática, se bem que desconhecida até ntão em Macondo, e como uma prova da sua admiração deu-~e um presente que havia de exercer uma influência decisiva o futuro da aldeia: um laboratório de alquimia. Por essa época, Melquíades tinha envelhecido com uma apidez assombrosa. Nas suas primeiras viagens parecia ter a iesma idade de José Arcadio Buendía. Mas enquanto este con-~rvava a sua força descomunal, que lhe permitia derrubar um avalo agarrando-o pelas orelhas, o cigano parecia estragado or um mal tenaz. Era, na realidade, o resultado de múltiplas estranhas doenças contraídas nas suas incontáveis viagens o redor do mundo. Conforme ele mesmo contou a José Ar-adio Buendía, enquanto o ajudava a montar o laboratório, morte o seguia por todas as partes, farejando- lhe as calças, as sem se decidir a dar o bote final. Era um fugitivo de quan-is pragas e catástrofes haviam flagelado o gênero humano. obreviveu à pelagra na Pérsia, ao escorbuto no arquipélago 11 da Malásia, à lepra em Alexandria, ao beribéri no Japão, àpeste bubônica em Madagascar, ao terremoto na Sicília e a um naufrágio multitudinário no estreito de Magalhães. Aquele ser prodigioso que dizia possuir as chaves de Nostradamus era um homem lúgubre, envolto numa aura triste, com um olhar asiático que parecia conhecer o outro lado das coisas. Usava um chapéu grande e negro, como as asas estendidas de um corvo, e um casaco de veludo patinado pelo limo dos séculos. Mas, apesar da sua imensa sabedoria e de sua aura misterio-sa, tinha um peso humano, uma condição terrestre que o man-tinha atrapalhado com os minúsculos problemas da vida coti- diana. Queixava-se de achaques de velho, sofria pelos mais insignificantes prejuízos econômicos e tinha deixado de rir há muito tempo, porque o escorbuto lhe havia arrancado os den-tes. No sufocante meio-dia em que revelou os seus segredos, José Arcadio Buendía teve a certeza de que aquele era o prin-cípio de uma grande amizade. As crianças se assombraram com os seus relatos fantásticos. Aureliano, que naquele tempo não tinha mais de cinco anos, havia de recordar pelo resto da vida como o viu naquela tarde, sentado contra a claridade metáli-ca e reverberante da janela, iluminando com a sua profunda voz de órgão os terr~itórios mais escuros da imaginação, en-quanto esguichava pelas têmporas a gordura derretida pelo ca-lor. José Arcadio, seu irmão mais velho, havia de transmitir aquela imagem maravilhosa, corno uma recordação hereditá-ria, a toda a sua descendência. Ursula, pelo contrário, con-servou uma lembrança desagradável daquela visita, porque en-trou no quarto no momento em que Melquíades quebrava por distração um frasco de bicloreto de mercúrio. —É o cheiro do demônio—ela disse. — Absolutamente — corrigiu Melquíades. — Está com-provado que o demônio tem propriedades sulfúricas, e isto não passa de um pouco de sublimado corrosivo. Sempre didático, fez uma sábia exposição sobre as virtu-des diabólicas do cinabre, mas Úrsula não lhe deu a menor atenção e levou as crianças para rezar. Aquele cheiro acre fi-cana para sempre em sua memória vinculado à lembrança de Melquíades. 12 O laboratório rudimentar — não se falando na profusão e caçarolas, funis, retortas, filtros e coadores — estava com-sto de uma tubulação primitiva; uma proveta de cristal, de coço comprido e estreito, imitação do ovo filosófico; e um tlambique construído pelos próprios ciganos, de acordo com as descrições daquele de três braços, de Maria, a judia. Além destas coisas, Melquíades deixou amostras dos sete metais cor- respondentes aos Sete planetas, as fórmulas de Moisés e Zózi-mo para a duplicação do ouro, e uma série de notas e dese-nhos sobre os processos do Grande Magistério, que permitiam a quem os soubesse interpretar a tentativa de fabricação da pedra filosofal. Seduzido pela simplicidade das fórmulas pa-ra duplicar o ouro, José Arcadio l3uendía adulou Úrsula du-rante várias semanas, para que lhe permitisse desenterrar as suas moedas coloniais e aumentá-las tantas vezes quantas fosse possível subdividir o azougue. Úrsula cedeu, como acontecia sempre, diante da inquebrantável obstinação do marido. En-tão, José Arcadio Buendía jogou trinta dobrões numa caça-rola e os fundiu com raspa de cobre, ouro-pigmento, enxofre e chumbo. Pôs tudo para ferver em fogo forte, num caldei-rão de óleo de rícino, até obter um xarope espesso e fedoren-to, mais parecido com uma calda vulgar do que com o ouro magnífico. Em azarados e desesperados processos de destila-ção, fundida com os sete metais planetários, trabalhada com o mercúrio hermético e o vitríolo de Chipre, e novamente co-zida em banha de porco na falta de óleo de rábano, a precio-sa herança de Úrsula ficou reduzida a um torresmo carboni-zado que não pôde ser desprendido do fundo do caldeirão. Quando os ciganos voltaram, Úrsula já havia predispos-to toda a população contra eles. Mas a curiosidade pôde mais que o temor, porque daquela vez os ciganos percorreram a al-deia fazendo um barulho ensurdecedor com todo tipo de ins-trumentos musicais, enquanto o pregoeiro anunciava a exibi-ção da mais fabulosa descoberta dos nasciancenos. De modo que todo mundo foi à tenda, e com o pagamento de um cen-tavo viu um Melquíades juvenil, refeito, desenrugado, com uma dentadura nova e radiante. Os que recordavam as suas gengivas destruídas pelo escorbuto, as suas bochechas fláci-13 das e os seus lábios murchos, estremeceram de pavor diante daquela prova decisiva dos poderes sobrenaturais do cigano. O pavor se converteu em pânico quando Melquíades tirou os dentes, intactos, engastados nas gengivas, e mostrou-os ao pú-blico por um instante — um instante fugaz em que voltou a ser o mesmo homem decrépito dos anos anteriores — e botou-os outra vez e sorriu de novo com um domínio pleno da sua juventude restaurada. Até o próprio José Arcadio Buendía con-siderou que os conhecimentos de Melquíades tinham chegado a extremos intoleráveis, mas experimentou um saudável alvo-roço quando o cigano lhe explicou a sós o mecanismo da sua dentadura postiça. Aquilo lhe pareceu ao mesmo tempo tao simples e prodigioso, que da noite para o dia perdeu todo o interesse pelas pesquisas de alquimia; sofreu uma nova crise de mau humor, não voltou a comer de maneira regular e pas-sava o dia dando voltas pela casa. “Estão ocorrendo coisas incríveis pelo mundo”, dizia a Úrsula. “Aí mesmo, do outro lado do rio, existe todo tipo de aparelho mágico, enquanto nós continuamos vivendo como os burros.” Os que o conhe-ciam desde os tempos da fundação de Macondo se assombra-vam do quanto ele havia mudado sob a influencia de Melquíades. No princípio, Jose Arcadio Buendía era uma espécie de patriarca juvenil, que dava instruções para o plantio e conse-lhos para a criação de filhos e animais, e colaborava com to-dos, mesmo no trabalho físico, para o bom andamento da co-munidade. Posto que a sua casa fosse desde o primeiro mo-mento a melhor da aldeia, as outras foram arranjadas à sua imagem e semelhança. Tinha uma saleta ampla e bem ilumi-nada, uma sala de jantar em forma de terraço com flores de cores alegres, dois quartos, um quintal com um castanheiro gigantesco, um jardim l~em plantado e um curral onde viviam em comunidade pacífica os cabritos, os porcos e as galinhas. Os únicos animais proibidos não só em casa, mas também em todo o povoado, eram os galos de briga. A diligência de Ursula andava de braços com a de seu ma-rido. Ativa, miúda, severa, aquela mulher de nervos inque-brantáveis, a quem em nenhum momento da vida se ouviu can-14 1 tar, parecia estar em todas as partes desde o amanhecer até a noite já bem avançada, sempre perseguida pelo suave sus-surro das suas anáguas de cambraia. Graças a ela, o chão de terra batida, os muros de barro sem caiação, os rústicos mó- veis de madeira construídos por eles mesmos estavam sem-pre limpos, e as velhas arcas onde se guardava a roupa exala-vam um cheiro tênue de manjericão. José Arcadio Buendía, que era o homem mais empreen-dedor que se poderia ver na aldeia, determinara de tal modo a posição das casas que a partir de cada uma se podia chegar ao rio e se abastecer de água com o mesmo esforço; e traçara as ruas com tanta habilidade que nenhuma casa recebia mais sol que a outra na hora do calor. Dentro de poucos anos, Ma-condo se tornou uma aldeia mais organizada e laboriosa que qualquer das conhecidas até então pelos seus 300 habitantes. Era na verdade uma aldeia feliz, onde ninguém tinha mais de trinta anos e onde ninguém ainda havia morrido. Desde os tempos da fundação, José Arcadio Buendía cons-truíra alçapões e gaiolas. Em pouco tempo, encheu de corru-piões, canários, azulões e pintassilgos não só a própria casa, mas todas as da aldeia. O concerto de tantos pássaros dife- rentes chegou a ser tão aturdidor que Ursula tapou os ouvi-dos com cera de abelha para não perder o senso da realidade. Na primeira vez que chegou a tribo de Melquíades, vendendo bolas de vidro para dor de cabeça, todo mundo se surpreen- deu por terem podido encontrar aquela aldeia perdida no ma-rasmo do pântano, e os ciganos confessaram que haviam se orientado pelo canto dos pássaros. Aquele espírito de iniciativa social desapareceu em pou-co tempo, arrastado pela febre dos ímãs, pelos cálculos astro-nômicos, sonhos de transmutação e ânsias de conhecer as ma-ravilhas do mundo. De empreendedor e limpo, José Arcadio Buendía se converteu num homem de ar vadio, descuidado no vestir, com uma barba selvagem a que Ürsula conseguia dar forma a duras penas, com uma faca de cozinha. Não faltou quem o considerasse vítima de algum estranho sortilégio. Mas até os mais convencidos da sua loucura abandonaram o tra-balho e a família para segui-lo, quando atirou ao ombro as 15 foices e machados, e pediu a participação de todos para abrir uma picada que pusesse Macondo em contato com os gran-des inventos. José Arcadio Buendía ignorava por completo a geogra-fia da região. Sabia que para o Oriente estava a serra impene-trável, e do outro lado da serra a antiga cidade de Riohacha, onde em épocas passadas — segundo lhe havia contado o pri-meiro Aureliano Buendía, seu avô — Sir Francis Drake era dado ao esporte de caçar jacarés a tiros de canhão. Os bichos eram depois remendados, recheados de palha e mandados para a Rainha Elizabeth. Na sua juventude, ele e seus homens, com mulheres e crianças e animais e toda espécie de utensílios do-mésticos, atravessaram a serra procurando uma saída para o mar, e ao fim de vinte e seis meses desistiram da empresa e fundaram Macondo, para não ter que empreender o caminho de volta. Era, pois, uma rota que não lhe interessava, porque só podia conduzi-lo ao passado. Ao Sul estavam os charcos cobertos de uma eterna nata vegetal, e o vasto universo do grande pantanal, que, segundo testemunho dos ciganos, ca-recia de limites. O grande pantanal se confundia ao Ocidente com uma extensão aquática sem horizontes, onde havia cetá-ceos de pele delicada, cabeça e torso de mulher, que perdiam os navegantes com o feitiço tias suas tetas descomunais. Os ciganos navegavam seis meses por essa rota antes de alcançar a faixa de terra firme por onde passavam as mulas do correio. De acordo com os cálculos de José Arcadio Buendía, a única possibilidade de contato com a civilização era a rota do Nor-te. De modo que dotou de foices, facões e armas de caça os mesmos homens que o acompanharam na fundação de Ma-condo; pôs numa mochila os seus instrumentos de orientação e os seus mapas, e empreendeu a temerária aventura. Nos primeiros dias, não encontraram nenhum obstáculo apreciável. Desceram pela pedregosa margem do rio até o lu-gar onde anos antes haviam achado a armadura do guerreiro e ali penetraram na mata por um caminho de laranjeiras sil-vestres. Ao fim da primeira semana, mataram e assaram um veado, mas se conformaram em comer a metade e salgar o resto para os próximos dias. Trataram de adiar com essa pre-16 Ci ri SI C o f a 1 c 1 1 1 caução a necessidade de continuar comendo azaras, cuja car-ne azul tinha um áspero sabor de almíscar. Em seguida, du-mais de dez dias, não voltaram a ver o sol. O solo tornou- mole e úmido, como cinza vulcânica, e a vegetação fez-se cada vez mais insidiosa, e ficaram cada vez mais longínquos os gritos dos pássaros e a algazarra dos macacos, e o mundo ficou triste para sempre. Os homens da expedição se sentiram angustiados pelas lembranças mais antigas, naquele paraíso de umidade e silêncio, anterior ao pecado original, onde as botas se afundavam em poças de óleos fumegantes e os fa-cões destroçavam lírios sangrentos e salamandras douradas. Durante uma semana, quase sem falar, avançaram como so-nãinbulos por um universo de depressão, iluminados apenas por unia tênue reverberação de insetos luminosos e com os pul- mões agoniados por um sufocante cheiro de sangue. Não po-diam regressar, porque a picada que iam abrindo em pouco tempo tornava a se fechar com uma vegetação nova que ia crescendo a olhos vistos. “Não tem importância”, dizia José Arcadio Buendía. “O essencial é não perder a orientação.” Sempre de olho na bússola, continuou guiando os seus homens para o Norte invisível, até que conseguiram sair da região en-cantada. Era uma noite densa, sem estrelas, mas a escuridão estava impregnada de um ar novo e limpo. Esgotados pela prolongada travessia, penduraram as redes e dormiram pro-fundamente pela primeira vez em duas semanas. Quando acor-daram, já com o sol alto, ficaram pasmos de fascinação. Diante deles, rodeado de fetos e palmeiras, branco e empoeirado na silenciosa luz da manhã, estava um enorme galeão espanhol. Ligeiramente inclinado para estibordo, de sua mastreação in-tacta penduravam-se os fiapos esquálidos do velame, entre a enxárcia enfeitada de orquídeas. O casco, coberto por uma lisa couraça de caracas e musgo tenro, estava firmemente en-cravado num chão de pedras. Toda a estrutura parecia ocu-par um âmbito próprio, um espaço de solidão e esquecimen-to, vedado aos vícios do tempo e aos maus hábitos dos pássa-ros. No interior, que os expedicionários exploraram com um secreto fervor, não havia nada além de um espesso bosque de flores. 17 O achado do galeão, indício da proximidade do mar, que-brantou o ímpeto de José Arcadio Buendía. Considerava co-mo uma brincadeira do seu destino travesso ter procurado o mar sem encontrá-lo, ao preço de sacrifícios e incômodos sem conta, e tê-lo encontrado agora sem procurá-lo, atravessado no seu caminho como um obstáculo intransponível. Muitos anos depois, o Coronel Aureliano Buendía voltou a atraves-sar a região, quando já era uma rota regular do correio, e a única coisa que encontrou da nave foi o esqueleto carboniza-do no meio de um campo de amapolas. Só então convencido de que aquela história não tinha sido fruto da imaginação de seu pai, perguntou-se como pudera o galeão penetrar até aquele ponto na terra firme. Mas José Arcadio Buendía não levan-tou esse problema quando encontrou o mar, ao fim de outros quatro dias de viagem, a doze quilômetros de distância do ga-leão. Seus sonhos terminavam diante desse mar de cor cinza, espumoso e sujo, que não merecia os riscos e sacrifícios da sua aventura. — Porra! — gritou. — Macondo está cercado de água por todos os lados. A idéia de um Macondo peninsular prevaleceu durante muito tempo, inspirad~ no mapa arbitrário que José Arcadio Buendía desenhou ao regressar da sua expedição. Traçou-o com raiva, exagerando de má fé as dificuldades de comunica-ção, como que para castigar-se a si mesmo da absoluta falta de senso com que escolheu o lugar. “Nunca chegaremos a parte alguma”, lamentava-se para Úrsula. “Aqui haveremos de apo- drecer em vida sem receber os benefícios da ciência.” Essa cer-teza, ruminada por vários meses no quartinho do laborató-rio, levou-o a conceber o projeto de trasladar Macondo para um lugar mais propício. Mas desta vez, Ursula se antecipou aos seus desígnios febris. Num secreto e implacável trabalho de formiga, predispôs as mulheres da aldeia contra a veleida-de dos seus homens, que já começavam a se preparar para a mudança. José Arcadio Buendía não soube em que momen-to, nem em virtude de que forças adversas, seus planos se fo-ram emaranhando numa teia de pretextos, contratempos e eva-sivas, até se transformarem em pura e simples ilusão. Ursula 18 ervou-o com uma atenção inocente, e até sentiu por ele um de piedade na manhã em que o encontrou no quartl-dos fundos comentando entre dentes os seus sonhos de mudança, enquanto colocava nas suas caixas originais as pe-ças do laboratório. Deixou-o terminar. Deixou-o pregar as cai-xas e pôr as suas iniciais em cima com um pincel cheio de tin-.‘- ~em lhe fazer nenhuma censura, mas já sabendo que ele (porque o ouviu dizer em seus surdos monólogos) que os homens do povoado não o seguiriam na empresa. Só quando ou a desmontar a porta do quartinho é que Ürsula se atreveu a lhe perguntar por que o fazia, e ele lhe respondeu certa amargura: “Já que ninguém quer ir embora, nós sozinhos.” Ürsula não se alterou. — Nós não iremos — disse. — Ficaremos aqui, porque aqui tivemos um filho. — Ainda não temos um morto — ele disse. — A gente não é de um lugar enquanto não tem um morto enterrado nele. Úrsula replicou, com uma suave firmeza: Se é preciso que eu morra para que vocês fiquem aqui, eu ihorro. José Arcadio Buendía não acreditou que fosse tão rígida a vontade de sua mulher. Tratou de seduzi-la com o feitiço da sua fantasia, com a promessa de um mundo prodigioso onde bastava derramar uns lfquidos mágicos na terra para que as plantas dessem frutos à vontade do homem, e onde se ven-diama preço de banana toda espécie de aparelhos contra a dor. Mas Ursula foi insensível à sua clarividência. — Em vez de andar por aí com essas novidades malu-cas, você devia era se ocupar dos seus filhos — replicou. —Olhe como estão, abandonados ao deus-dará, como os burros. José Arcadio Buendía tomou ao pé da letra as palavras da mulher. Olhou pela janela e viu os dois meninos descalços na horta ensolarada, e teve a impressão de que só naquele ins-tante tinham começado a existir, concebidos pelos rogos de Ürsula. Alguma coisa aconteceu então no seu íntimo; alguma coisa misteriosa e definitiva que o desprendeu do tempo atual e o levou à deriva por uma inexplorada região de lembranças. Enquanto Úrsula continuava varrendo a casa que agora esta- 19 va certa de não abandonar peio resto cm vida, ele permaneceu contemplando as crianças com um olhar absorto, até que seus olhos se encheram d’água e ele os enxugou com o dorso da mão, exalando um profundo suspiro de resignação. — Bem — disse. — Diga-lhes que venham me ajudar a tirar as coisar dos caixotes. José Arcadio, o mais velho dos meninos, havia comple-tado quatorze anos. Tinha a cabeça quadrada, o cabelo hir-suto e o gênio voluntarioso do pai. Ainda que tivesse o mesmo impulso de crescimento e fortaleza física, já então era eviden-te que carecia de imaginação. Foi concebido e dado à luz du-rante a penosa travessia da serra, antes da fundação de Ma-condo, e seus pais deram graças aos céus ao comprovar que não tinha nenhum órgão de animal. Aureliano, o primeiro ser humano que nasceu em Macondo, ia fazer seis anos em mar-ço. Era silencioso e retraído. Tinha chorado no ventre da mãe e nasceu com os olhos abertos. Enquanto lhe cortavam o um-bigo movia a cabeça de um lado para o outro, reconhecendo as coisas do quarto, e examinava o rosto das pessoas com uma curiosidade sem assombro. Depois, indiferente aos que vinham conhecê-lo, manteve a atenção concentrada no teto de palmas, que parecia estar quase desabando sob a tremenda pressão da chuva. Ursula nao tornou a se lembrar da intensidade desse olhar até o dia em que o pequeno Aureliano, na idade de três anos, entrou na cozinha no momento em que ela retirava do fogão e punha na mesa uma panela de caldo fervente. O ga-roto, perplexo na porta, disse: “Vai cair.” A panela estava posta bem no centro da mesa, mas, logo que o menino deu o aviso, iniciou um movimento irrevogável para a borda, co-mo impulsionada por um dinamismo interior, e se espedaçou no chão. Úrsula, alarmada, contou o episódio ao marido, mas este o interpretou como um fenômeno natural. Sempre fora assim, alheio à existência dos filhos, em parte porque consi-derava a infância como um período de insuficiência mental, e em parte porque estava sempre absorto por demais nas suas próprias especulações quiméricas. Desde a tarde, porém, em que chamou os meninos para. que o ajudassem a desempacotar as coisas do laboratório, 20 cou-lhes as suas melhores horas. No quartinho separado, paredes se foram enchendo pouco a pouco de mapas in-~ssímeis e gráficos fabulosos, ensinou-os a ler e escrever fazer contas, e falou das maravilhas do mundo não só até chegavam os seus conhecimentos, mas forçando a ex- incríveis os limites da sua imaginação. Foi assim que meninos acabaram por aprender que no extremo merídio- da África havia homens tão inteligentes e pacíficos que único entretenimento era sentar para pensar, e que era sível atravessar a pé o mar Egeu pulando de ilha em ilha porto de Salônica. Aquelas alucinantes sessões ficaram modo impressas na memória dos meninos, que muitos mais tarde, um segundo antes de que o oficial dos exér-regulares desse a ordem de fogo ao pelotão de fuzilamen- o Coronel Aureliano Buendía tornou a viver a suave tarde março em que seu pai interrompeu a lição de Física e ficou com a mão no ar e os olhos imóveis, ouvindo a dis-os pífaros e tambores e guizos dos ciganos que uma vez chegavam à aldeia, apregoancfo a última e assombrosa scoberta dos sábios de Mênfis. Eram ciganos novos. Homens e mulheres jovens que só .nheciam a sua própria língua, exemplares formosos de pele e mãos inteligentes, cujas danças e músicas semearam ruas um pânico de alvoroçada alegria, com as suas araras de todas as cores que recitavam romanças italianas, a galinha que punha uma centena de ovos de ouro ao som pandeiro, e o macaco amestrado que adivinhava o pensa- e a máquina múltipla que servia ao mesmo tempo pa-pregar botões e baixar a febre, e o aparelho para esquecer - más recordações, e o emplastro para perder o tempo, e mil invenções tão engenhosas e insólitas, que José Arca-Buendía gostaria de inventar a máquina da memória para se lembrar de todas. Num instante transformaram a al-~‘. Os habitantes de Macondo se encontraram de repente )s nas suas próprias ruas, aturdidos pela feira ultitudinária. Levando um garoto em cada mão, para não perdê-los no Lumulto, tropeçando com saltimbancos de dentes encouraça-21 dos de ouro e malabaristas de seis braços, sufocado pelo con-fuso hálito de esterco e sândalo que exalava a multidão, José Arcadio Buendía andava como um louco procurando Melquía— des por todas as partes, para que lhe revelasse os infinitos se-gredos daquele pesadelo fabuloso. Dirigiu-se a vários ciganos que não entenderam a sua língua. Por fim chegou ao lugar onde Melquíades costumava plantar a sua tenda e encontrou um armênio taciturno que anunciava em castelhano um xaro-pe para se fazer invisível. Tinha tomado de um gole uma taça da substância ambarina, quando José Arcadio Buendía abriu passagem aos empurrões por entre o grupo absorto que pre-senciava o espetáculo e conseguiu fazer a pergunta. O cigano o envolveu no clima atônito do seu olhar, antes de se trans-formar numa poça de alcatrão fedorento e fumegante sobre a qual ficou boiando a ressonância de sua resposta: “Melquía-des morreu.” Aturdido pela notícia, José Arcadio Buendía per-maneceu imóvel, tratando de vencer a aflição, até que o gru-po se dispersou, reclamando por outros artifícios, e a poça do armênio taciturno se evaporou completamente. Mais tar-de, outros ciganos lhe confirmaram que na verdade Melquía-des tinha sucumbido às febres, ~nas dunas de Cingapura, e o seu corpo tinha sido jo~ado no lugar mais profundo do mar de Java. Os meninos não se interessaram pela notícia. Teima-vam para que seu pai os levasse para conhecer a portentosa novidade dos sábios de Mênfis, anunciada na entrada de uma tenda que, segundo diziam, pertenceu ao Rei Salomão. Tan-to insistiram que José Arcadio Buendía pagou os trinta reais e os conduziu até o centro da barraca, onde havia um gigante de torso peludo e cabeça raspada, com um anel de cobre no nariz e uma pesada corrente de ferro no tornozelo, vigiando um cofre de pirata. Ao ser destampado pelo gigante, o cofre deixou escapar um hálito glacial. Dentro havia apenas um enor-me bloco transparente, com infinitas agulhas internas nas quais se despedaçava em estrelas de cores a claridade do crepúscu-lo. Desconcertado, sabendo que os meninos esperavam uma explicação imediata, José Arcadio Buendía atreveu-se a murmurar: — É o maior diamante do mundo. 22 — Não — corrigiu o cigano. — E gelo. José Arcadio Buendía, sem entender, estendeu a mão para bloco, mas o gigante afastou-a. “Para pegar, mais cinco ‘,disse. José Arcadio Buendía pagou, e então pôs a mão obre o gelo, e a manteve posta por vários minutos, enquanto ~ coração crescia de medo e de júbilo ao contato do mistério. saber o que dizer, pagou outros dez reais para que os seus os vivessem a prodigiosa experiência. O pequeno José Ar-lio negou-se a tocá-lo. Aureliano, em compensação, deu um para diante, pôs a mão e retirou-a no ato. “Está fer- • “, exclamou assustado. Mas o pai não lhe prestou aten-Embriagado pela evidência do prodígio, naquele momento esqueceu da frustração das suas empresas delirantes e do corpo de Melquíades abandonado ao apetite das lulas. Pagou outros cinco reais, e com a mão posta no bloco, como que prestando um juramento sobre o texto sagrado, exclamou: — Este é o grande invento do nosso tempo. 23 ando, um comerciante aragonês com quem tinha dois gastou metade da loja em remédios e divertimentos, ando a maneira de aliviar os seus terrores. Por fim, li-u o negócio e levou a família para viver longe do mar, aldeia de índios pacíficos na encosta da serra, onde cons-para a mulher um quarto sem janelas, para que os pira-s seus pesadelos não tivessem por onde entrar. a escondida encosta vivia há muito tempo um nativo ador de tabaco, o Sr. José Arcadio Buendía, com quem vê de Úrsula fez uma sociedade tão produtiva que em os anos os dois juntaram fortuna. Vários séculos depois, araneto do nativo se casou com a tataraneta do arago-Por isso, cada vez que Ursula subia pelas paredes com ucuras do marido, pulava por cima de trezentos anos de cid~ncias e maldizia a hora em que Francis Drake assal-Riohacha. Era um mero recurso de desabafo, porque na de estavam ligados até a morte por um vínculo mais só-~ que o amor: uma dor comum de consciência. Eram pri-~ entre si. Tinham crescido juntos na antiga encosta que antepassados de ambos haviam transformado com o tra-~io e os bons costumes num dos melhores povoados da pro- teia. Apesar do casamento deles ser previsível desde que vie-p ao mundo, quando expressaram a vontade de se casar os ~prios parentes tentaram impedir. Tinham medo de que ieles saudáveis fins de duas raças secularmente entrecruza-passassem pela vergonha de engendrar iguanas. Já existia i precedente tremendo. Uma tia de Ursula, casada com um de José Arcadio Buendía, teve um filho que passou toda ida de calças larguíssimas e frouxas, e que morreu de he-~rragia depois de ter vivido quarenta e dois anos no mais ro estado de virgindade, porque nascera e crescera com uma ida cartilaginosa em forma de saca-rolhas e com uma esco-de pêlos na ponta. Um rabo de porco que nunca deixou visto por nenhuma mulher, e que lhe custou a vida quan-um açougueiro amigo lhe fez o favor de cortá-lo com a ma-idinha de retalhar. José Arcadio l3uendía, com a levianda-dos seus dezenove anos, resolveu o problema com uma só se: “Não me importa ter leitõezinhos, desde que possam 25 falar.” Assim, casaram-se com uma festa de banda e fogue-tes que durou três dias. Teriam sido felizes desde então, se a mãe de Ursula não a tivesse aterrorizado com toda espécie de prognósticos sinistros sobre a sua descendência, chegando ao extremo de conseguir que ela recusasse consumar o matrimô-nio. Temendo que o corpulento e voluntarioso marido a vio-lasse adormecida, Ursula vestia antes de se deitar umas calças compridas rudimentares que sua mãe lhe fabricou com lona de veleiro e reforçadas com um sistema de correias entrecru-zadas, que se fechava na frente com uma grossa fivela de fer-ro. Assim estiveram vários meses. Durante o dia, ele cuidava de seus galos de briga e ela bordava em bastidor com a mãe. Durante a noite, lutavam várias horas com uma ansiosa vio-lência que já parecia um substituto do ato de amor, até que a intuição popular farejou que algo de irregular estava acon-tecendo, e espalhou o boato de que Ursula continuava virgem um ano depois de casada, porque o marido era impotente. José Arcadio Buendía foi o último a saber. — Está vendo, Ürsula, o que o povo anda dizendo —disse à mulher com muita calma. — Deixe falar — disse ela. — A gente sabe que não éverdade, De modo que a situação continuou igual por mais seis me-ses, até o domingo trágico em que José Arcadio Buendía ga-nhou uma briga de galos de Prudencio Aguilar. Furioso, exal-tado pelo sangue do seu animal, o perdedor se afastou de Jo-sé Arcadio Buendía para que toda a rinha pudesse ouvir o que lhe ia dizer. — Você está de parabéns — gritou. — Vamos ver se afi-na! esse galo resolve o caso da sua mulher. José Arcadio Buendía, sereno, pegou o galo. “Volto já”, disse a todos. E logo, a Prudencio Aguilar: — E você, vá pra casa e se arme, que eu vou matá-lo. Dez minutos depois voltou com a lança ensebada de seu avô. Na entrada da ninha, onde se havia concentrado metade do povoado, Prudencio Aguilar o esperava. Não teve tempo de defender-se. A lança de José Arcadio Buendía, atirada com a força de um touro e com a mesma mira certa com que o 26 1 teiro Aureliano Buendía exterminou os tigres da região, ivessou-lhe a garganta. Nessa noite, enquanto se velava o José Arcadio Buendía entrou no quarto quando a sua ~r estava vestindo as calças de castidade. Brandindo a lan-e dela, ordenou: “Tire isso.” Ürsula não pôs em dú-a uecisão do marido. “Você será o responsável pelo que murmurou. José Arcadio Buendía cravou a lan-no chAo de terra. — Se você tiver que parir iguanas, criaremos iguanas — — Mas não haverá mais mortos neste povoado por cul-sua. Era uma bela noite de junho, fresca e com lua, e estive- acordados e brincando na cama até o amanhecer, indife-vento que passava pelo quarto, carregado com o pran-aos parentes de Prudencio Aguilar. O caso foi classificado como um duelo de honra, mas em ficou uma dorzinha de consciência. Numa noite em que dormir, Úrsula saiu para beber água no quin-viu Prudencio Aguilar junto à tina. Estava lívido, com na expressão muito triste, tentando tapar com uma atadura esparto o buraco da garganta. Não lhe produziu medo, mas • Voltou ao quarto para contar ao esposo o que tinha visto, não ligou. “Os mortos não saem”, disse. “O que acon- ~ que não agüentamos com o peso da consciência.” Duas depois, Úrsula tornou a ver Prudencio Aguilar no ba-‘-~—‘- lavando com a atadura de esparto o sangue coagula-do pescoço. Outra noite, viu-o passeando na chuva. José j~rcadio Buendía, irritado com as alucinações da mulher, foi para o quintal armado com a lança. Ali estava o morto com ~ a sua expressão triste. — Cada pro caralho! — gritou-lhe José Arcadio Buendía. vez que voltar, eu o mato de novo. Prudencio Aguilar não foi embora, nem José Arcadio Buendia se atreveu a arremessar a lança. Desde então não con-seguiu mais dormir bem. Atormentava-o a enorme desolação com que o morto o havia olhado da chuva, a profunda nos-talgia com que se lembrava dos vivos, a ansiedade com que revistava a casa procurando água para molhar a sua atadura 27 de esparto. “Deve estar sofrendo muito”, dizia a Úrsula. ‘Vê-se que está muito só.” Ela estava tão comovida que, na vez seguinte que viu o morto destampando as panelas do fogão, entendeu o que procurava, e desde então colocou para ele ba-cias de água por toda a casa. Numa noite em que o encontrou lavando as feridas no seu próprio quarto, José Arcadio Buendía não pôde agüentar mais. — Está bem, Prudencio — disse-lhe. — Nós vamos em-bora deste povoado para o mais longe possível e não voltare-mos nunca mais. Agora vá sossegado. Foi assim que empreenderam a travessia da serra. Vários amigos de José Arcadio Buendía, jovens como ele, encanta-dos com a aventura, desfizeram as suas casas e carregaram com as mulheres e os filhos para a terra que ninguém lhes ha-via prometido. Antes de partir, José Arcadio Buendía enter-rou a lança no quintal e degolou, um a um, os seus magnífi-cos galos de briga, confiando em que dessa forma daria um pouco de paz a Prudencio Aguilar. A única coisa que Ürsula levou foi um baú com as suas roupas de recém-casada, uns poucos utensílios domésticos e o cofrezinho com as peças de ouro que herdou do pai. Não traçaram para si um itinerário definido. Apenas procuravam viajar em sentido contrário ao caminho de Riohacha para não deixar nenhum rastro nem en-contrar gente conhecida. Foi uma viagem absurda. Ao fim de quatorze meses, com o estômago estragado pela carne de mi-co e a sopa de cobras, Ursula deu à luz um filho com todas as suas partes humanas. Tinha feito a metade do caminho nu-ma rede pendurada num pau que dois homens levavam nos ombros, porque a inchação lhe desfigurou as pernas, e as va-rizes arrebentavam como bolhas. Ainda que desse pena vê-las de barriga vazia e olhos lânguidos, as crianças resistiram à via-gem melhor que os pais, e a maior parte do tempo acabou sen-do divertido para elas. Certa manhã, depois de quase dois anos de travessia, foram eles os primeiros mortais que viram a ver-tente ocidental da serra. Do cume nublado contemplaram a imensa planície aquática do grande pântano, espraiada até o outro lado do mundo. Mas nunca encontraram o mar. Certa noite, depois de andarem vários meses perdidos entre os char-28 longe dos últimos índios que haviam encontrado no ho, acamparam às margens de um rio pedregoso cujas pareciam uma torrente de vidro gelado. Anos depois, te a segunda guerra civil, o Coronel Aureliano Buendía • seguir aquela mesma rota para apanhar Riohacha de csa e aos seis dias de viagem compreendeu que era uma ra. Entretanto, na noite em que acamparam junto ao rio, stes de seu pai tinham aspecto de náufragos sem escapa-mas o seu número tinha aumentado durante a travessia os estavam dispostos a (e conseguiram) morrer de velhi-osé Arcadio Buendía sonhou essa noite que naquele lu-e levantava uma cidade ruidosa, com casas de paredes pelhos. Perguntou que cidade era aquela, e lhe respon-com um nome que nunca tinha ouvido, que não pos- significado algum, mas que teve no sonho uma ressonân-brenatural: Macondo. No dia seguinte, convenceu os seus ens de que nunca encontrariam o mar. Ordenou- lhes der-as árvores para fazer uma clareira junto ao rio, no lu-mais fresco das margens, e ali fundaram a aldeia. José Arcadio Buendía não conseguiu decifrar o sonho das com paredes de espelhos até o dia em que conheceu o ~. Então acreditou entender o seu profundo significado. ~sou que num futuro próximo poderiam fabricar blocos de p em grande escala, a partir de um material tão cotidiano no a água, e construir com eles as novas casas da aldeia. condo deixaria de ser um lugar ardente, cujas dobradiças drabas se torciam de calor, para converter-se numa cidade ernal. Se não perseverou nas suas tentativas de construir a fábrica de gelo, foi porque no momento estava positiva-nte entusiasmado com a educação dos filhos, especialmen-i de Aureliano, que havia revelado desde o primeiro mo-~to uma rara intuição alquímica. O laboratório tinha res-gido da poeira. Passando em revista as notas de Melquía- agora serenamente, sem exaltação da novidade, em pro-gadas e pacientes sessões, tentaram separar o ouro de Ur-~ do entulho aderido ao fundo do caldeirão. O jovem José :adio mal participou do processo. Enquanto seu pai só ti-i corpo e alma para o laboratório, o voluntarioso primo- 29 g~nito, que sempre fora grande demais para a sua idade, converteu-se num adolescente monumental. Mudou de voz. O buço povoou-se de uma penugem incipiente. Certa noite, Ursula entrou no quarto quando ele tirava a roupa para dor-mir, e experimentou um confuso sentimento de vergonha e pie-dade: era o primeiro homem que via nu, além de seu marido, e estava tão bem equipado para a vida que lhe pareceu anor-mal. Ursula, grávida pela terceira vez, viveu de novo os seus terrores de recém-casada. Naquela época ia à sua casa uma mulher alegre, desbo-cada, provocante, que ajudava nos trabalhos domésticos e sa-bia ler o futuro nas cartas. Ursula falou- lhe do filho. Pensava que a sua desproporção era algo de tão desnaturado como o rabo de porco do primo. A mulher soltou uma gargalhada es-tridente que repercutiu por toda a casa como um riacho de vidro. “Pelo contrário”, disse. “Será feliz.” Para confirmar o seu prognóstico, trouxe o baralho à casa poucos dias de-pois, e se trancou com José Arcadio num depósito de grãos contíguo à cozinha. Colocou as cartas com muita calma so-bre uma velha mesa de carpintaria, dizendo qualquer coisa, enquanto o rapaz esperava perto dela, mais chateado que curioso. De repente estendeu a mão e tocou. “Que monstro disse, sinceramente assustada, e foi tudo o que pôde dizer. José Arcadio sentiu que os seus ossos se enchiam de espuma, que tinha um medo lânguido e uma enorme vontade de chorar. A mulher não lhe fez nenhuma insinuação. Mas José Arcadio a continuou procurando toda a noite, no cheiro de fumaça que ela tinha nas axilas e que lhe ficou metido debaixo da pe-le. Queria estar com ela a todo momento, queria que ela fosse a sua mãe, que nunca saíssem da despensa e que ela lhe dis-sesse “que monstro!” e que tornasse a tocá-lo e a dizer-lhe “que monstro!”. Um dia não pôde suportar mais e foi procurá-la em sua casa. Fez uma visita formal, incompreensível, sen- tado na sala sem pronunciar uma palavra. Naquele momento não a desejou. Achava-a diferente, inteiramente alheia à ima-gem que inspirava o seu perfume, como se fosse outra. To-mou o café e abandonou a casa, deprimido. Nessa noite, no espanto da insônia, tornou a desejá-la com uma ansiedade bru-30 então não a queria como era na despensa, mas como ido naquela tarde. as depois, de um modo intempestivo, a mulher o cha-sua casa, onde estava sozinha com a mãe, e o fez en-quarto com o pretexto de ensinar-lhe um truque de Então o tocou com tanta liberdade que ele sofreu uma ~o depois do estremecimento inicial, e experimentou edo que prazer. Ela lhe pediu que nessa noite fosse á-la. Ele concordou, para sair da situação, sabendo que ria capaz de ir. Mas de noite, na cama ardente, com-eu que tinha de ir procurá-la, ainda que não fosse ca-estiu-se às tontas, ouvindo na escuridão a repousada ção do irmão, a tosse seca do pai no quarto vizinho, a das galinhas no quintal, o zumbido dos mosquitos, o o do seu coração e o desmesurado bulício do mundo em ão tinha reparado até então, e saiu para a rua adormeci-)esejava de todo coração que a porta estivesse trancada, ~ simplesmente encostada, como ela lhe havia prometi-VIas estava aberta. Empurrou-a com a ponta dos dedos iobradiças soltaram um gemido lúgubre e articulado que uma ressonância gelada nas suas entranhas. Desde o mo-:o em que entrou, meio de lado e tratando de não fazer lho, sentiu o cheiro. Ainda estava na saleta onde os três os da mulher penduravam as redes em posições que ele rava e que não podia determinar nas trevas, de modo que aliava atravessá-la às cegas, empurrar a porta do quarto ~ntar-se ali de maneira a que não fosse se enganar de ca-Conseguiu. Tropeçou com os punhos das redes, que es-ii mais baixas do que ele supusera, e um homem que ron- até então mexeu-se no sonho e disse com uma espécie ,silusão: “Era quarta-feira.” Quando empurrou a porta jarto, não pôde impedir que ela roçasse o desnível do chão. ~pente, na escuridão absoluta, entendeu com uma irre-ável nostalgia que estava completamente desorientado. streita peça dormiam a mãe, outra filha com o marido is crianças, e a mulher, que talvez não o esperasse. Teria do se guiar pelo cheiro se o cheiro não andasse em toda a, tão enganoso e ao mesmo tempo tão definido como 31 tinha estado sempre na sua pele. Permaneceu imóvel um lon-go momento, perguntando-se assombrado como tinha feito pa-ra chegar a esse abismo de desamparo, quando uma mão com todos os dedos estendidos, que tateava nas trevas, tropeçou-lhe na cara. Não se surpreendeu porque, sem saber, tinha es-tado esperando por isso. Confiou-se então àquela mão, e num terrível estado de esgotamento deixou-se levar até um lugar sem formas onde lhe tiraram a roupa e o trabalharam como a um saco de batatas e o viraram para o avesso e para o direi-to, numa escuridão insondável em que lhe sobravam os bra-ços, e onde já não cheirava mais a mulher, mas a amoníaco, e onde tentava se lembrar do rosto dela e topava com o rosto de Ürsula, confusamente consciente de que estava fazendo algo que há muito desejava que se pudesse fazer, mas que nunca havia imaginado que realmente se pudesse fazer, sem saber como estava fazendo porque não sabia onde estavam os pés e onde a cabeça, nem os pés de quem nem a cabeça de quem, e sentindo que não podia agüentar mais o ruído glacial dos seus rins e o ar do seu intestino, e o medo, e a ânsia aturdida de fugir e ao mesmo tempo de ficar para sempre naquele si-lêncio exasperado e naquela solidão terrível. Chamava-se Pilar Tçrnera. Fizera parte do êxodo que cul-minou com a fundação de Macondo, arrastada pela sua fa-mília, para separá-la do homem que a tinha violado aos qua-torze anos e que a continuara amando até os vinte e dois, mas que nunca se decidira a tornar pública a situação, porque ti-nha outro compromisso. Prometera segui-la até o fim do mun-do, porém mais tarde, quando tivesse arrumado as coisas; e ela se cansou de esperar, identificando-o sempre com os ho-mens altos e baixos, louros e morenos, que as cartas lhe pro-metiam pelos caminhos da terra e pelos caminhos do mar, para dentro de três dias, três meses ou três anos. Tinha perdido na espera a força das coxas, a dureza dos seios, o hábito da ter-nura; mas conservava intacta a loucura do coração. Transtor-nado por aquele brinquedo prodigioso, José Arcadio seguia as suas pegadas todas as noites através do labirinto do quar-to. Certa ocasião, encontrou a porta trancada, e tocou várias vezes, sabendo que, se tinha tido a ousadia de tocar a primei- 32 vez, tinha que tocar até a última, e ao fim de uma espera áveí ela lhe abriu a porta. Durante o dia, caindo de ono, gozava em segredo as lembranças da noite anterior. Mas iando ela entrava em casa, alegre, indiferente, desbocada, não tinha que fazer nenhum esforço para dissimular a sua porque aquela mulher, cujo riso explosivo espantava - pombos, não tinha nada que ver com o poder invisível que ensinava a respirar para dentro e a controlar as batidas do ~ão, e lhe havia permitido entender por que os homens medo da morte. Estava tão ensimesmado que nem sequer a alegria de todos quando seu pai e irmão alvo-oçaram a casa com a notícia de que haviam conseguido atin- o entulho metálico e separar o ouro de Ursula. Com efeito, depois de complicados e perseverantes lan-tinham conseguido. Úrsula estava feliz, e até deu graças Deus pela invenção da alquimia, enquanto as gentes da al-se espremiam no laboratório e lhes servia doce de goiaba biscoitinhos para celebrar o prodígio e José Arcadio Buen-deixava ver o crisol com o ouro resgatado, como se aca-~“sse de inventá-lo. De tanto mostrá-lo, terminou diante de filho mais velho, que nos últimos tempos mal aparecia pelo ‘oratório. Pôs diante dos seus olhos o emplastro seco e ama-do, e lhe perguntou: “Que tal te parece?” José Arcadio, ;mceramente, respondeu: — Merda de cachorro. O pai deu-lhe com as costas da mão uma violenta bofe-tada na boca, que lhe fez saltarem o sangue e as lágrimas. Es-sa noite, Pilar Temera pôs compressas de arnica na inchação, adivinhando no escuro o frasco e os algodões, e fez-lhe todas as vontades sem que ele se incomodasse, para amá-lo sem machucá-lo. Chegaram a tal estado de intimidade que um mo-mento depois, sem se dar conta, estavam falando por cochichos. — Quero ficar sozinho com você — dizia ele. — Um dia conto tudo a todo mundo e se acabam os segredos. tia não tentou apaziguá-lo. — Seria ótimo — disse. — Se estivermos sozinhos, dei-xamos a luz acesa para nos vermos bem, e eu posso gritar tu- 33 do o que quiser sem que ninguém tenha que se meter, e você me diz no ouvido todas as porcarias que lhe vierem à cabeça. Esta conversa, o rancor magoado que sentia contra o pai, e a iminente possibilidade do amor desaforado, inspiraram-lhe uma serena valentia. De modo espontâneo, sem nenhuma preparação, contou tudo ao irmão. No princípio, o pequeno Aureliano só compreendia o ris-co, a imensa possibilidade de perigo que implicavam as aven-turas de seu irmão, mas não conseguia imaginar a fascinação do objetivo. Pouco a pouco se foi contaminando de ansieda-de. Fazia-o contar as minuciosas peripécias, identificava-se com o sofrimento e o gozo do irmão, sentia-se assustado e feliz. Esperava-o acordado até o amanhecer, na cama solitária que parecia ter uma esteira de brasas, e continuavam falando sem sono até a hora de levantar, de modo que em pouco tempo padeceram ambos da mesma sonolência, sentiram o mesmo desprezo pela alquimia e pela sabedoria do pai, e se refugia-ram na solidão. “Estes meninos andam sorumbáticos”, dizia Úrsula. “Devem estar com lombrigas.” Preparou-lhes uma repugnante poção de erva-de-santa-maria amassada, que am-bos beberam com imprevisto estoicismo, e se sentaram ao mes-mo tempo nos penicos, onze vezes num só dia, e expulsaram umas parasitas rosadas, que mostraram a todos com grande júbilo, porque lhes permitiram enganar Ursula quanto à ori-gem das suas distrações e langores. Aureliano podia, então, não só entender, mas também viver como coisa própria as ex-periências de seu irmão, porque numa ocasião em que este ex-plicava com muitos pormenores o mecanismo do amor, interrompeu-o para perguntar: “O que é que se sente?” José Arcadio deu-lhe uma resposta imediata: — É como um tremor de terra. Numa quinta-feira de janeiro, às duas da madrugada, nas-ceu Amaranta. Antes que alguém entrasse no quarto, Ürsula examinou-a minuciosamente. Era leve e aquosa como uma la-gartixa, mas todas as suas partes eram humanas. Aureliano não se deu conta da novidade a não ser quando sentiu a casa cheia de gente. Protegido pela confusão, saiu em busca do ir-mão, que não estava na cama desde as onze, e foi uma deci-34 tio impulsiva que nem sequer teve tempo de se perguntar faria para tirá-lo do quarto de Pilar Temera. Esteve ron- o a casa por várias horas, assoviando senhas próprias, ~que a proximidade da madrugada obrigou-o a regres-No quarto da mãe, brincando com a irmãzinha recém-da e com uma cara que caía de inocente, encontrou José ~dio. Úrsula mal havia cumprido o seu resguardo de quarenta quando os ciganos voltaram. Eram os mesmos saltimban-e malabaristas que haviam trazido o gelo. Em contraste a tribo de Melquíades, tinham demonstrado em pouco que não eram arautos do progresso e sim mercadores versões. Inclusive, quando trouxeram o gelo, não o anun-em função da sua utilidade na vida dos homens, mas o uma mera curiosidade de circo. Desta vez, entre muitos os jogos de artifício, traziam um tapete voadór. Não o ram, porém, como uma contribuição fundamental para envolvimento dos transportes e sim como um objeto de eação. O povo, evidentemente, desenterrou os seus últi-tostões para desfrutar de um vôo fugaz sobre as casas aldeia. Amparados pela deliciosa impunidade da desordem tiva, José Arcadio e Pilar viveram horas de folga. Foram namorados felizes entre a multidão, e até chegaram a sus- -~ de que o amor podia ser um sentimento mais repousa-profundo que a felicidade arrebatada, mas momentânea, suas noites secretas. Pilar, entretanto, quebrou o encan- ~. Estimulada pelo entusiasmo com que José Arcadio des-~tava a sua companhia, escolheu errado a forma e a oca-e de um só golpe jogou-lhe o mundo nos ombros. “Agora ~i você é um homem”, disse a ele. E como não entendesse ~ue ela queria dizer, explicou-lhe letra por letra: — Você vai ser pai. José Arcadio não se atreveu a sair de casa durante vários ~s. Bastava escutar a gargalhada trepidante de Pilar na co-iiha para se esconder correndo no laboratório, onde os apa-~hos de alquimia tinham revivido, com a bênção de Ursula. ~sê Arcadio Buendía recebeu com alvoroço o filho extravia-, e iniciou-o na busca da pedra filosofal, que tinha por fim 35 empreendido. Uma tarde, os rapazes se entusiasmaram com o tapete voador, que passou veloz ao nível da janela do labo-ratório, levando o cigano condutor e várias crianças da aldeia, que faziam alegres cumprimentos com a mão, e José Arcadio Buendía nem sequer olhou. “Deixem que sonhem”, disse. “Nós voaremos melhor que eles, com recursos mais científi-cos que essa miserável colcha.” Apesar do seu fingido inte-resse, José Arcadio nunca entendeu os poderes do ovo filosó-fico, que simplesmente lhe parecia um frasco malfeito. Não conseguia fugir da preocupação. Perdeu o apetite e o sono, sucumbiu ao mau humor igual ao pai diante do fracasso de alguma das suas empresas, e foi tal o seu transtorno que o pró-prio José Arcadio Buendía o liberou dos deveres no laborató-rio, achando que ele tinha levado a sério demais a alquimia. Aureliano, evidentemente, percebeu que a aflição do irmão não tinha origem na busca da pedra filosofal, mas não lhe con-seguiu arrancar nem uma confidencia. Tinha perdido a sua antiga espontaneidade. De cúmplice e comunicativo fez-se her-mético e hostil. Ansioso de solidão, picado por um virulento rancor contra o mundo, certa noite abandonou a cama como de costume, mas em vez de ir à casa de Pilar Temera perdeu-se no tumulto da feira. Depois de perambular por toda espé-cie de máquinas de diversão sem se interessar por nenhuma, fixou-se em algo qfie não estava no jogo: uma cigana muito jovem, quase uma garota, afogada em miçangas, a mulher mais bela que José Arcadio tinha visto na vida. Estava entre a mul-tidão que presenciava o triste espetáculo do homem que se transformara em víbora por desobedecer aos pais. José Arcadio não prestou atenção. Enquanto se desen-rolava o triste interrogatório do homem-víbora, tinha aberto caminho entre a multidão até a primeira fila, onde se encon-trava a cigana, e tinha se detido atrás dela. Apertou-se contra as suas costas. A moça tentou se afastar, mas José Arcadio se apertou com mais força contra as suas costas. Então, ela o sentiu. Ficou imóvel contra ele, tremendo de surpresa e pa-vor, sem poder acreditar na evidência, e por fim voltou a ca-beça e olhou para ele com um sorriso trêmulo. Nesse instan-te, dois ciganos meteram o homem- víbora na jaula e o leva-36 ra o interior da tenda. O cigano que dirigia o espetácu-flciou: E agora, senhoras e senhores, vamos apresentar a pro-freI da mulher que terá que ser decapitada todas as noites ora, durante cento e cinqüenta anos, como castigo por o o que não devia. sé Arcadio e a moça não presenciaram a decapitação. à barraca dela, onde se beijaram com uma ansiedade erada enquanto iam tirando a roupa. A cigana se des-suas camisetas superpostas, das suas numerosas aná-e renda engomada, do seu inútil espartilho de arame, carga de miçangas, e ficou praticamente reduzida a na-ra uma rãzinha lânguida, de seios incipientes e pernas nas que não ganhavam em diâmetro aos braços de José ~Iio, mas tinha uma decisão e um calor que compensa-a sua fragilidade. Entretanto, José Arcadio não podia cor-~nder, porque estavam numa espécie de tenda pública, por os ciganos passavam com os seus instrumentos de circo umavam as suas coisas, e até se demoravam junto à ca-~ara jogar uma partida de dados. A lâmpada pendurada astro central iluminava todo o âmbito. Numa pausa das ias, José Arcadio estirou- se nu na cama, sem saber o que enquanto a moça tratava de excitá-lo. Uma cigana de ~s esplêndidas entrou pouco depois, acompanhada de um ~m que não fazia parte da farândola, mas que tampouco .a aldeia, e ambos começaram a despir-se diante da ca-)istraidamente, a mulher olhou para José Arcadio e exa-u com uma espécie de fervor patético o seu magnífico ai em repouso. — Rapaz — exclamou — que Deus o conserve para ti. 4 companheira de José Arcadio pediu-lhes que os dei-m em paz, e o casal se deitou no chão, muito perto da A paixão dos outros despertou a febre de José Arca-4o primeiro contato, os ossos da moça pareceram se de-:ular, com um rangido desordenado como o de um fichário )minó, e a sua pele se desfez num suor pálido e os seus se encheram de lágrimas e todo o seu corpo exalou um rito lúgubre e um vago cheiro de lodo. Mas suportou o 37 ‘1 impacto com uma firmeza de ânimo e uma valentia admirá-veis. José Arcadio se sentiu então etereamente elevado a um estado de inspiração seráfica, onde o seu coração se desbara-tou num manancial de obscenidades ternas que entravam na moça pelos ouvidos e lhe saíam pela boca, traduzidas ao seu idioma. Era quinta-feira. Na noite de sábado, José Arcadio amarrou um pano vermelho na cabeça e foi-se embora com os ciganos. Quando Úrsula descobriu a sua ausência, procurou-o por toda a aldeia. No acampamento desmanchado dos ciganos, não havia mais que uma vala de detritos, entre as cinzas ain-da fumegantes das fogueiras apagadas. Alguém que andava por ali procurando miçangas no lixo disse a Ursula que na noite anterior tinha visto o seu filho no tumulto da farândola, pu-xando uma carreta com a jaula do homem-víbora. “Entrou pra cigano!”, gritou ela ao marido, que não tinha dado o me-nor sinal de alarme pelo desaparecimento. — Oxalá seja verdade — disse José Arcadio Buendía, amassando no almofariz a matéria mil vezes amassada e rea-quecida e tornada a amassar. — Assim vai aprender a ser homem. Ursula perguntou por onde tinham ido os ciganos. Con-tinuou perguntando no caminho que lhe indicaram, e pensando que ainda tinha tempo de alcançá-los, continuou se afastan-do da aldeia, até que teve consciência de estar tão longe que já não pensou mais em voltar. José Arcadio Buendía não deu falta da mulher senão às oito da noite, quando deixou a ma-téria esquentando numa camada de esterco, e foi ver o que estava acontecendo com a pequena Amaranta, que estava rouca de tanto chorar. Em poucas horas, reuniu um grupo de ho-mens bem equipados, pôs Amaranta nas mãos de uma mu-lher que se ofereceu para amamentá-la, e se perdeu por cami-nhos invisíveis atrás de Ursula. Aureliano os acompanhou. Al-guns pescadores indígenas, cuja língua desconheciam, indicaram-lhes por sinais, ao amanhecer, que não tinham vis-to ninguém passar. Ao fim de três dias de busca inútil, regres-saram à aldeia. Durante várias semanas, José Arcadio Buendía deixou 38 ~ncer pela consternação. Ocupava-se como mãe da pequena ranta. Banhava-a e mudava-lhe a roupa, levava-a para mamentada quatro yezes por dia e até cantava para ela, ite, as canções que Ursula nunca soube cantar. Certa oca-Pilar Temera se ofereceu para fazer os serviços da casa, anto Úrsula não voltava. Aureliano, cuja misteriosa in-o se tinha sensibilizado com a desgraça, experimentou um or de clarividência ao vê-la entrar. Então soube que, de m modo inexplicável, era dela a culpa da fuga do irmão onseqüente desaparecimento da mãe, e a perseguiu de tal eira, com uma calada e implacável hostilidade, que a mu-não voltou mais à casa. O tempo pôs as coisas no lugar. José Arcadio Buendía filho viram-se outra vez no laboratório, sacudindo a poei-otando fogo no alambique, entregues uma vez mais à pa-te manipulação da matéria adormecida há vários meses ua camada de esterco. Até Amaranta, deitada num cesti-de vime, observava com curiosidade o absorvente traba-ido pai e do irmão, no quartinho rarefeito pelos vapores mercúrio. A certa altura, meses depois da partida de Ur-i, começaram a acontecer coisas estranhas. Um frasco va-que durante muito tempo esteve esquecido num armário, •se tão pesado que foi impossível movê-lo. Uma chaleira gua , colocada na mesa de trabalho, ferveu sem fogo du-te meia hora, até evaporar-se a água por completo. José ~adio Buendía e seu filho observavam aqueles fenômenos a assustado alvoroço, sem conseguir explicá-los, mas irpretando-os como anúncios da matéria. Um dia, o cesti-de Amaranta começou a se mover com impulso próprio u uma volta completa no quarto, diante da consternação ~ureliano, que se apressou em detê-lo. Mas seu pai não lterou. Pôs o cestinho no lugar e amarrou-o na perna de i mesa, convencido de que o acontecimento esperado era iente. Foi esta a ocasião em que Aureliano ouviu-o dizer: — Se você não teme Deus, tema os metais. De repente, quase cinco meses depois do seu desapareci-tto, Ursula voltou. Chegou exaltada, rejuvenescida, com pas novas, de um estilo desconhecido na aldeia. José Ar- 39 cadio Buendía mal pôde resistir ao impacto. “Era isto!”, gri-tava. “Eu sabia que ia acontecer.” E acreditava mesmo nis-to, porque nas suas concentrações, enquanto manipulava a ma-téria, rogava do fundo do seu coração que o prodígio espera-do não fosse a descoberta da pedra filosofal, nem a liberação do sopro que faz viverem os metais, nem a faculdade de trans-formar em ouro as dobradiças e fechaduras da casa, mas o que agora tinha acontecido: a volta de Ursula. Mas ela não compartilhava do seu alvoroço. Deu-lhe um beijo convencio-nal, como se não tivesse estado ausente mais de uma hora, e lhe disse: — Chegue aqui na porta. José Arcadio Buendía levou muito tempo para se resta-belecer da perplexidade, quando saiu na rua e viu a multidão. Não eram ciganos. Eram homens e mulheres como ele, de ca-belos lisos e pele parda, que falavam a sua mesma língua e se lamentavam das mesmas dores. Traziam mulas carregadas de coisas de comer, carroças de bois com móveis e utensílios domésticos, puros e simples acessórios terrestres postos à venda sem estardalhaço pelos mercadores da realidade cotidiana. Vi-nham do outro lado do pântano, de a apenas dois dias de via-gem, onde existiam povoados que recebiam o correio todos os meses e conheciaÍi~ as máquinas do bem-estar. Ursula não tinha alcançado os ciganos, mas encontrara a rota que seu ma-rido não tinha podido descobrir na sua frustrada busca das grandes invenções. 40 ~‘1~~ ~. ~ A 6 J 1.4~ t~q de Pilar Temera foi levado para a casa dos avós com semanas de nascido. Úrsula admitiu-o de má vontade, mais uma vez pela teimosia do marido, que não pôde a idéia de que um rebento do seu sangue ficasse jo-por aí: mas impôs a condição de que se escondesse do a sua verdadeira identidade. Apesar de receber o no-José Arcadio, acabaram por chamá-lo simplesmente de vadio, para evitar confusão. Havia naquela época tanta ati-~de no povoado e tanto movimento na casa que o cuidado ianças ficou relegado a segundo plano. Recomendaram-a Visitaciófl, uma índia guajira que chegou ao povoado -- um irmão, fugindo de uma peste de insônia que flagela- 41 va a sua tribo há vários anos. Ambos eram tão dóceis e servi-çais oue Úrsula ficou com eles para que a ajudassem nos afa-zeres domésticos. Foi assim que Arcadio e Amaranta falaram a língua guajira antes do castelhano e aprenderam a tomar sopa de lagartixas e a comer ovos de aranhas, sem que Ursula re-parasse, porque andava ocupada demais com um negócio de animaizinhos de caramelo que prometia um bom futuro. Ma-condo estava transformado. As pessoas que tinham vindo com Ürsula divulgaram a boa qualidade do solo e a sua posição privilegiada em relação ao pântano, de modo que a reduzida aldeia de outros tempos transformou-se logo num povoado ativo, com lojas e oficinas de artesanato, e uma rota de co-mércio permanente por onde chegaram os primeiros árabes de pantufas e argolas nas orelhas, trocando colares de vidro por papagaios. José Arcadio Buendía não teve um minuto de descanso. Fascinado por uma realidade imediata que no mo-mento chegou a ser para ele mais fantástica que o vasto uni-verso da sua imaginação, perdeu todo o interesse pelo labora- tório de alquimia, deixou descansando a matéria extenuada por longos meses de manipulação, e voltou a ser o homem em-preendedor dos primeiros tempos, que decidia o traçado das ruas e a posição das novas casas, de modo a que ninguém des-frutasse de privilégio7~ que não possuíssem todos. Adquiriu tan-ta autoridade entre os recém-chegados que não se punha ci-mento nem se construíam cercas sem consultá-lo, e se estabe- leceu que seria ele quem dirigiria a distribuição da terra. Quan-do os ciganos saltimbancos voltaram, agora com a sua feira ambulante transformada num gigantesco estabelecimento de jogos de sorte e azar, foram recebidos com alvoroço, porque se pensou que José Arcadio regressava com eles. Mas José Ar-cadio não voltou, e nem trouxeram o homem-víbora que, con-forme pensava Ursula, era o único que podia dar informações de seu filho; de modo que não se permitiu aos ciganos que se instalassem no povoado nem que voltassem a pisá-lo no fu-turo, porque os consideraram como mensageiros da concu-pisc~ncia e da perversão. José Arcadio Buendía, entretanto, foi explícito no sentido de que a antiga tribo de Melquíades, que tanto contribuíra para o engrandecimento da aldeia, com 42 milenária sabedoria e as suas fabulosas invenções, en-sempre as portas abertas. Mas a tribo de Melquía-segundo o que contaram os saltimbancos, tinha sido var-da face da terra por haver ultrapassado os limites do co-cimento humano. Emancipado, pelo menos no momento, das torturas da José Arcadio Buendía impôs em pouco tempo um de ordem e trabalho, dentro do qual só se permitiu uma a libertação dos pássaros que desde a época da fun-‘alegravam o tempo com as suas flautas, e a instalação ~eu lugar de relógios musicais em todas as casas. Eram ma-sos relógios de madeira trabalhada que os árabes tro-n por papagaiOS e que José Arcadio Buendía sincroni-‘com tanta precisão que, de meia em meia hora, o povoa alegrava com os acordes progressivos de uma mesma pe-.até culminar o meio-dia exato e unânime com a valsa com- Foi também José Arcadio Buendía quem decidiu por .aépoca que nas ruas do povoado se plantassem amendoei- • em vez de acácias, e quem descobriu, sem revelá-los nun-os métodos de fazê-las eternas. Muitos anos depois, quando ~do chegou a ser um acampamento de casas de madei- ~ tetos de zinco, ainda perduravam nas ruas mais antigas amendoeiras quebradas e empoeiradas, sem que ninguém mais quem as havia plantado. Enquanto o pai colo- em ordem o povoado e a mãe consolidava o patrimônio ~néstico com a sua maravilhosa indústria de galinhos e pei- ~ açucarados, que duas vezes por dia saíam de casa enfia-em palitos, Aureliano vivia horas intermináveis no labo-õrio abandonado, aprendendo por pura pesquisa a arte da ~esaria. Tinha crescido tanto que em pouco tempo dei- de lhe servir a roupa abandonada pelo irmão e começou ‘isar a do pai, mas foi necessário que Visitación fizesse bai-as nas camisas e pregas nas calças, porque Aureliano não iiha puxado a corpul~ncia dos outros. A adolescência havia ado a doçura da sua voz e o tornara silencioso e definitiva-ente solitário, mas por outro lado tinha restituido a expres-intensa que teve nos olhos ao nasce. . Estava tão concen-nas suas experi~ncia5 de ourivesaria que mal abandona- 43 va o laboratório, e só para comer. Preocupado com o seu en-simesmamento, José Arcadio Buendía deu-lhe as chaves da casa e um pouco de dinheiro, pensando que talvez fosse falta de mulher. Mas Aureliano gastou o dinheiro em ácido muriático para preparar água régia, e embelezou as chaves com um ba-nho de ouro. As suas esquisitices, no entanto, mal eram com-paráveis às de Arcadio e Amaranta, que já tinham começado a trocar os dentes e ainda andavam o dia inteiro agarrados às mantas dos índios, teimosos na sua decisão de não falar o castelhano e sim a língua índia. “Você não tem do que se queixar”, dizia Úrsula ao marido. “Os filhos herdam as lou- curas dos pais.” E enquanto se lamentava da má sorte, con-vencida de que as extravagâncias dos filhos eram uma coisa tão terrível quanto um rabo de porco, Aureliano fixou nela um olhar que a envolveu numa aura de incerteza. — Alguém vai chegar — disse. Ursula, como sempre que ele expressava um prognósti-co, tratou de esfriá-lo com a sua lógica caseira. Era normal que alguém chegasse. Dezenas de forasteiros passavam dia-riamente por Macondo, sem suscitar inquietações nem ante-cipar avisos secretos. Entretanto, apesar de toda a lógica, Au-reliano estava certo do seu presságio. — Não sei qu~in será — insistiu — mas seja quem for, já vem a caminho. No domingo, com efeito, chegou Rebeca. Não tinha mais de onze anos. Tinha feito a penosa viagem desde Manaure, com uns traficantes de peles que receberam o encargo de entregá-la, junto com uma carta, na casa de José Arcadio Buendía, mas que não puderam explicar com precisão quem era a pessoa que lhes havia pedido o favor. Toda a sua baga-gem era composta de um bauzinho de roupa, uma pequena cadeira de balanço de madeira com florezinhas coloridas pin-tadas a mão e um saco de lona que fazia um eterno ruído de cloc cloc cloc, onde trazia os ossos de seus pais. A carta diri-gida a José Arcadio Buendía estava escrita em termos muito carinhosos por alguém que continuava a estimá-lo muito ape-sar do tempo e da distância, e que se sentia obrigado, por um elementar senso de humanidade, a fazer a caridade de lhe man-44 pobre orfãzinha desamparada, que era prima de Úr-segundo grau e, por conseguinte, parenta também de Arcadio Buendía, ainda que em grau mais longínquo, por-era filha daquele inesquecível amigo que foi Nicanor Ul-sua mui digna esposa Rebeca Montiel, a quem Deus te-no seu santo reino, e cujos restos juntava à presente para lhes desse sepultura cristã. Tanto os nomes mencionados into a assinatura da carta eram perfeitamente legíveis, mas José Arcadio Buendía nem Úrsula se lembravam de ter parentes com esses nomes, nem conheciam ninguém que e como o remetente, e muito menos na remota po-de Manaure. Através da menina, foi impossível obter informação complementar. Desde o momento em que sentou-se na cadeirinha de balanço a chupar o dedo - observar a todos com os seus grandes olhos espantados, sinal algum de entender o que lhe perguntavam. Ves- -- roupa de diagonal tingida de negro, gasta pelo uso, botinas descascadas de verniz. Trazia o cabelo preso das orelhas, em coques com fitas negras. Usava um es-com as imagens apagadas pelo suor e, na munheca uma presa de animal carnívoro engastada num supor-‘~ cobre, como amuleto contra o mau-olhado. A sua pele -“~, o seu ventre redondo e tenso como um tambor revela-Irani uma saúde ruim e uma fome mais velhas que ela mesma, luas quando lhe deram de comer ficou com o prato nos joe-~hos, sem tocá-lo. Chegou-se inclusive a acreditar que era surda muda, até que os índios lhe perguntaram na sua língua se ~queria um pouco d’água e ela moveu os olhos como se os ti-vesse reconhecido e disse que sim com a cabeça. Ficaram com ela, porque não havia outro remédio. De-cídirani chamá-la Rebeca, que, de acordo com a carta, era o nome da mãe, porque Aureliano teve a paciência de ler pa-ra ela todo o hagiológio e não conseguiu que reagisse diante de nenhum nome de santa. Como naquele tempo não havia cemitério em Macondo, pois até então não havia morrido nin-. guém, conservaram o saco de lona com os ossos, à espera de que houvesse um lugar digno para sepultá-lo, e durante mui-to tempo eles rolaram por toda parte e se encontravam onde 45 menos se esperava, sempre com o seu eloqüente cacarejo de galinha choca. Muito tempo correu até que Rebeca se incor-porasse à vida familiar. Sentava-se na cadeirinha de balanço chupando o dedo, no canto mais escondido da casa. Nada lhe chamava a atenção, salvo a música dos relógios, que de meia em meia hora procurava com os olhos assustados, como se esperasse encontrá-la em algum pedaço do ar. Não consegui- ram que comesse, durante vários dias. Ninguém entendia co-mo não tinha morrido de fome, até que os índios, que perce-biam tudo, porque percorriam a casa sem parar, com seus pes sigilosos, descobriram que Rebeca só gostava de comer a ter-ra úmida do quintal e as tortas de cal que arrancava das pare-des com as unhas. Era evidente que seus pais, ou quem quer que a tivesse criado, tinham-lhe repreendido esse hábito, pois o praticava às escondidas e com consciência de culpa, procu-rando guardar as rações para come-las quando ninguém vis-se. A partir de então, submeteram-na a uma vigilância impla-cável. Derramavam fel de vaca no quintal e untavam de pi- menta as paredes, acreditando curar com esses métodos o seu vício pernicioso, mas ela deu tais provas de astúcia e engenho para procurar a terra que Ursula se viu forçada a empregar recursos mais drásticos. Punha suco de laranja com ruibardo numa panela, que deixava ao sereno uma noite inteira, e lhe dava a poção no dia seguinte, em jejum. Ainda que ninguém lhe tivesse dito que aquele era o remédio específico para o vi-cio de comer terra, pensava que qualquer substância amarga no estômago vazio tinha que obrigar o fígado a reagir. Rebe-ca era tão rebelde e tão forte, apesar do seu raquitismo, que tinham de agarrá-la como a um bezerro para que engolisse o remédio, e mal se podiam evitar as suas convulsões e suportar os arrevesados hieróglifos que ela alternava com mordidas e cuspidelas e que, segundo o que diziam os escandalizados ín-dios, eram as obscenidades mais grossas que se podiam con-ceber no seu idioma. Quando Ursula soube disso, complemen-tou o tratamento com correadas. Não se esclareceu nunca se o que surtiu efeito foi o ruibarbo ou as sovas, ou as duas coi-sas combinadas, mas a verdade é que, em poucas semanas, Rebeca começou a dar mostras de restabelecimento. Partici- 46 4 brincadeiras de Arcadio e Amaranta, que a recebe-como a uma irmã mais velha, e comeu com apetite, •se bem dos talheres. Logo se revelou que falava o ano com tanta fluidez como a língua dos índios, que - uma habilidade notável para os trabalhos manuais e que a valsa dos relógios com uma letra muito engraçada - mesma tinha inventado. Não tardaram a considerá-la um membro a mais da família. Era mais afetuosa com que os seus próprios filhos, e chamava de maninhos e Arcadio, de tio a Aureliano e de vovô a José Ar-Buendía. De modo que acabou por merecer, tanto co- outros, o nome de Rebeca Buendía, o único que teve -~ e que carregou com dignidade até a morte. tima noite, na época em que Rebeca se curou do vício omer terra e foi levada para dormir no quarto das outras a índia que dormia com eles acordou por acaso e ou-estranho ruído intermitente no canto. Sentou-se alar-pensando que tinha entrado algum animal no quarto, viu Rebeca na cadeira de balanço, chupando o dedo os olhos fosforescentes como os de um gato na escuri-Pasmada de terror, perseguida pela fatalidade do desti-Visitación reconheceu nesses olhos os sintomas da doen-ameaça os havia obrigado, a ela e ao irmão, a se des-sempre de um reino milenário no qual eram prín-txa a peste da insônia. Cataure, o índio, não amanheceu em casa. Sua irmã fi-porque o coração fatalista lhe indicava que a doença le-haveria de persegui-la de todas as maneiras até o último • da terra. Ninguém entendeu o pânico de Visitación. “Se não voltar a dormir, melhor”, dizia José Arcadio Buen-de bom-humor. “Assim a vida rende mais.” Mas a índia que o mais temível da doença da insônia não era a bilidade de dormir, pois o corpo não sentia cansaço mas sim a sua inexorável evolução para uma mani-mais crítica: o esquecimento. Queria dizer que quan- o doente se acostumava ao seu estado de vigília, começa-a apagar-se da sua memória as lembranças da infância, n seguida o nome e a noção das coisas, e por último a iden-47 tidade das pessoas e ainda a consciencia do próprio ser, até se afundar numa espécie de idiotice sem passado. José Ar-cadio Buendía, morto de rir, considerou que se tratava de mais uma das tantas enfermidades inventadas pela superstição dos indígenas. Mas Úrsula, por via das dúvidas, tomou a precau-ção de separar Rebeca das outras crianças. Ao fim de várias semanas, quando o terror de Visitación parecia aplacado, José Arcadio Buendía encontrou-se uma noi-te rolando na cama sem poder dormir. Ursula, que também tinha acordado, perguntou-lhe o que estava acontecendo e ele respondeu: “Estou pensando outra vez em Prudencio Agui-lar.” Não dormiram um minuto sequer, mas no dia seguinte se sentiam tão descansados que se esqueceram da noite ruim. Aureliano comentou assombrado na hora do almoço que se sentia muito bem, apesar de ter passado toda a noite no labo-ratório, dourando um broche que pensava dar a Úrsula no dia do seu aniversário. Não se alarmaram até o terceiro dia, quan-do na hora de deitar se sentiram sem sono, e deram conta de que estavam há mais de cinqüenta horas sem dormir. — As crianças também estão acordadas — disse a índia com a sua convicção fatalista. — Uma vez que a peste entra em casa, ninguém escapa. Haviam contrardo, na verdade, a doença da insônia. Ur-sula, que tinha aprendido da mãe o valor medicinal das plan-tas, preparou, e fez todos tomarem, uma beberagem de acô-nito, mas não conseguiram dormir, e passaram o dia inteiro sonhando acordados. Nesse estado de alucinada lucidez não só viam as imagens dos seus próprios sonhos, mas também uns viam as imagens sonhadas pelos outros. Era como se a casa se ti-vesse enchido de visitas. Sentada na cadeira de balanço, num canto da cozinha, Rebeca sonhou que um homem muito pa-recido com ela, vestido de linho branco e com o colarinho da camisa fechado por um botão de ouro, trazia-lhe um ramo de rosas. Acompanhava-o uma mulher de mãos delicadas que separou uma rosa e pôs no cabelo da menina. Ürsula enten-deu que o homem e a mulher eram os pais de Rebeca, mas ainda que fizesse um grande esforço para reconhece-los, confirmou-se a certeza de que nunca os havia visto. Enquan-48 por um descuido que José Arcadio Buendía não se per-nunca, os animaizinhos de caramelo fabricados em ca-iuavam sendo vendidos no povoado. Crianças e adultos vam encantados os deliciosos galinhos verdeg da insô-refinados peixes rosados da insônia e os ternos cavali-amarelos da insônia, de modo que a alvorada de segunda-surpreendeu todo-o povoado de pé. No princípio, nin-se alarmou. Pelo contrário, alegraram-se de não dor-porque havia então tanto o que fazer em Macondo que mal chegava. Trabalharam tanto que logo não tive- nada mais que fazer, e se encontraram às três da madru-com os braços cruzados, contando o número de notas tinha a valsa dos relógios. Os que queriam dormir, não ‘cansaço, mas por saudade dos sonhos, recorreram a toda ~ie de métodos de esgotamento. Reuniam-se para conversar trégua, repetindo durante horas e horas as mesmas pia-complicando até os limites da exasperação a história do ~ capão, que era um jogo infinito em que o narrador per-se queriam que lhes contasse a história do galo ca-e quando respondiam que sim, o narrador dizia que não pedido que dissessem que sim, mas se queriam que lhes a história do galo capão, e quando respondiam que o narrador dizia que não lhes tinha pedido que disses- - não, mas se queriam que lhes contasse a história do capão, e quando ficavam calados o narrador dizia que ~o lhes tinha pedido que ficassem calados, mas se queriam me lhes contasse a história do galo capão, e ninguém podia 1 embora porque o narrador dizia que não lhes tinha pedido me fossem embora, mas se queriam que lhes contasse a his-~ria do galo capão, e assim sucessivamente, num círculo vi-~oso que se prolongava por noites inteiras. Quando José Arcadio Buendía percebeu que a peste ti-~ha invadido a povoação, reuniu os chefes de família para ixplicar-lhes o que sabia sobre a doença da insônia, e estabe-~ceram medidas para impedir que o flagelo se alastrasse para is outras povoações do pantanal. Foi assim que se tiraram dos ~abritos os sininhos que os árabes trocavam por papagaios, se puseram na entrada do povoado, à disposição dos que 49 •1 desatendiam os conselhos e as súplicas dos sentinelas e insis-tiam em visitar a aldeia. Todos os forasteiros que por aquele tempo percorriam as ruas de Macondo tinham que fazer soar o sininho para que os doentes soubessem que estavam sãos. Não se lhes permitia comer nem beber nada durante a sua es-tada, pois não havia dúvidas de que a doença só se transmitia pela boca, e todas as coisas de comer e de beber estavam con-taminadas pela insônia. Desta forma, manteve-se a peste cir- cunscrita ao perímetro do povoado. Tão eficaz foi a quaren-tena, que chegou o dia em que a situação de emergência pas-sou a ser encarada como coisa natural e se organizou a vida de tal maneira que o trabalho retomou o seu ritmo e ninguém voltou a se preocupar com o inútil costume de dormir. Foi Aureliano quem concebeu a fórmula que havia de defendê-los, durante vários meses, das evasões da memória. Descobriu-a por acaso. Insone experimentado, por ter sido um dos primeiros, tinha aprendido com perfeição a arte da ouri-vesaria. Um dia, estava procurando a pequena bigorna que utilizava para laminar os metais, e não se lembrou do seu no-me. Seu pai lhe disse: “tás”. Aureliano escreveu o nome num papel que pregou com cola na base da bigorninha: tds. As-sim, ficou certo dejpão esquecê-lo no futuro. Não lhe ocorreu que fosse aquela a primeira manifestação do esquecimento, porque o objeto tinha um nome difícil de lembrar. Mas pou-cos dias depois, descobriu que tinha dificuldade de se lembrar de quase todas as coisas do laboratório. Então, marcou-as com o nome respectivo, de modo que bastava ler a inscrição para identificá-las. Quando seu pai lhe comunicou o seu pavor por ter- se esquecido até dos fatos mais impressionantes da sua in-fância, Aureliano lhe explicou o seu método, e José Arcadio Buendía o pôs em prática para toda a casa e mais tarde o im-pôs a todo o povoado. Com um pincel cheio de tinta, marcou cada coisa com o seu nome: mesa, cadeira, relógio, porta, pa-rede, cama, panela. Foi ao curral e marcou os animais e as plantas: vaca, cabrito, porco, galinha, aipim, taioba, bana-neira. Pouco a pouco, estudando as infinitas possibilidades do esquecimento, percebeu que podia chegar um dia em que se reconhecessem as coisas pelas suas inscrições, mas não se 50 1 a sua utilidade. Então foi mais explícito. O letrei-pendurou no cachaço da vaca era uma amostra exem-da forma pela qual os habitantes de Macondo estavam ostos a lutar contra o esquecimento: Esta é a vaca, tem-se ordenhá-la todas as manhãs para que produza o leite e preciso ferver para misturá-lo com o café e fazer café - Assim, continuaram vivendo numa realidade escor-momentaneamente capturada pelas palavras, mas que de fugir sem remédio quando esquecessem os valores escrita. Na entrada do caminho do pântano, puseram um cartaz - Macondo e outro maior na rua central que dizia Deus Em todas as casas haviam escrito lembretes para me- os objetos e os sentimentos. Mas o sistema exigia tanta cia e tanta fortaleza moral que muitos sucumbiram ao de uma realidade imaginária, inventada por eles mes-~ue acabava por ser menos prática, porém mais recon-Pilar Temera foi quem mais contribuiu para popu-essa mistificação, quando concebeu o artifício de ler -~ssado nas cartas como antes tinha lido o futuro. Com es-recurso, os insones começaram a viver num mundo cons-pelas alternativas incertas do baralho, onde o pai se lem-de si apenas como o homem moreno que havia chega-princípio de abril, e a mãe se lembrava de si apenas co- ‘a mulher trigueira que usava um anel de ouro na mao es- e onde uma data de nascimento ficava reduzida à úl-~i auarta-feira em que cantou a calhandra no loureiro. Der- por aquelas práticas de consolação, José Arcadio Buen-1ii então constrUir a máquina da memória, que uma tinha desejado para se lembrar dos maravilhosos inventos ciganos. A geringonça se fundamentava na possibilidade repassar, todas as manhãs, e do princípio ao fim, a totali-dos conhecimentos adquiridos na vida. Imaginava-a co-um dicionário giratório que um indivíduo situado no eixo controlar com uma manivela, de modo que em pou-horas passassem diante dos seus olhos as noções mais ne-essárias para viver. Tinha conseguido escrever já cerca de qua-mil fichas, quando apareceu pelo caminho do pântano 51 um ancião mal-ajambrado, com o sininho triste dos que dor-mem, carregando uma mala barriguda, amarrada com cordas, e um carrinho coberto de trapos negros. Foi diretamente à casa de José Arcadio Buendía. Visitación não o reconheceu ao abrir-lhe a porta, e pensou que tinha o propósito de vender alguma coisa, ignorante de que nada se podia vender num povoado que se afundava sem remédio no atoleiro do esquecimento. Era um homem decré-pito. Embora a sua voz estivesse também oscilante pela incer-teza e as suas mãos parecessem duvidar da existência das coi-sas, era evidente que vinha do mundo onde os homens ainda podiam dormir e recordar. José Arcadio Buendía encontrou-o sentado na sala, abanando-se com um remendado chapéu negro, enquanto lia com atenção compassiva os letreiros pre-gados na parede. Cumprimentou-o com amplas demonstra-ções de afeto, temendo tê-lo conhecido em outra época e ago-ra não se lembrar mais dele. Mas o visitante percebeu a falsi-dade. Sentiu-se esquecido, não com o esquecimento remediá-vel do coração, mas com outro esquecimento mais cruel e ir revogável que ele conhecia muito bem, porque era o esqueci-mento da morte. Então entendeu. Abriu a mala entupida de objetos indecifráveis, e dentre eles tirou uma maleta com mui-tos frascos. Deu pará~beber a José Arcadio Buendía uma subs-tância de cor suave, e a luz se fez na sua memória. Seus olhos se umedeceram de pranto, antes de ver-se a si mesmo numa sala absurda onde os objetos estavam marcados, e antes de envergonhar-se das solenes bobagens escritas nas paredes, e ainda antes de reconhecer o recém- chegado numa deslumbrante explosão de alegria. Era Melquíades. Enquanto Macondo festejava a reconquista das lembran-ças, José Arcadio Buendía e Melquíades sacudiram a poeira da velha amizade. O cigano estava disposto a ficar no povoa-do. Tinha estado à morte, realmente, mas tinha voltado por-que não pôde suportar a solidão. Repudiado pela sua tribo, desprovido de toda faculdade sobrenatural como castigo pela sua fidelidade à vida, decidiu se refugiar naquele cantinho do mundo ainda não descoberto pela morte, dedicado à explora-ção de um laboratório de daguerreotipia. José Arcadio Buen-52 tinha ouvido falar desse invento. Mas quando se .4 mesmo e a toda a sua família plasmados numa idade sobre uma lâmina de metal com reflexos, ficou mudo ‘nto. Dessa época data o oxidado daguerreótipo em que José Arcadio Buendía com o cabelo arrepiado e cm-o engomado colarinho da camisa fechado por um bo-cobre, e uma expressão de solenidade assombrada, e ~sula descrevia morta de rir como “um general assusta- verdade, José Arcadio Buendía estava assustado, na .manhã de dezembro em que lhe fizeram o daguerreó-oraue pensava que a pessoa se ia gastando pouco a pou-que a sua imagem passava para as placas metáli-uma curiosa inversão do costume, foi Ursula que lhe quela idéia da cabeça, assim como foi também ela quem as antigas mágoas e decidiu que Melquíades ficaria na casa deles, embora nunca permitisse que lhe fizes-daguerreótipo porque (segundo as suas próprias pa-textuais) não queria ficar para a chacota dos netos. Na-manhã, vestiu as crianças com as suas melhores roupas, ou-lhes a cara e deu uma colherada de xarope de tutano ~ um, para que pudessem permanecer absolutamente imó-irante quase dois minutos diante da aparatosa câmara ‘~lquíades. No daguerreótipo familiar, o único que sem-Aureliano apareceu vestido de veludo negro, en-ranta e Rebeca. Tinha a mesma languidez e o mesmo ciarividente que haveria de ter, anos mais tarde, diante ~tão de fuzilamento. Mas ainda não havia sentido a pre-do seu destino. Era um ourives experimentado, esti- - em todo o pantanal pelo preciosismo do seu trabalho. que compartilhava com o disparatado laboratório ~elquíades, mal se ouvia ele respirar. Parecia refugiado tempo, enquanto seu pai e o cigano interpretavam gritos as predições de Nostradamus, entre um estrépito de e cubas, e o desastre dos ácidos derramados e o bro-de prata perdido pelas cotoveladas e tropeções que da- a cada instante. Aquela consagração ao trabalho e o bom so com que administrava os seus interesses haviam permi- o a Aureliano ganhar em pouco tempo mais dinheiro que Úrsula com a sua deliciosa fauna de caramelo, mas todo mundo estranhava que fosse já um homem feito e não se tivesse notí-cia de nenhuma mulher na sua vida. Na verdade, não tinha tido. Meses depois, voltou Francisco, o Homem, um ancião errante de quase 200 anos, que passava com freqüência pOi Macondo, divulgando as canções compostas por ele mesmo. Nelas, Francisco, o Homem, relatava com detalhes minucio-sos os fatos acontecidos nos outros povoados do seu itinerá-rio, de Manaure até os confins do pantanal, de modo que se alguém tinha um recado para mandar ou um acontecimento para divulgar pagava-lhe dois centavos para que o incluísse no seu repertório. Foi assim que Ursula ficou sabendo da morte de sua mãe, por puro acaso, numa noite em que escutava as canções com a esperança de que dissessem algo sobre o seu filho José Arcadio. Francisco, o Homem, assim chamado por-que venceu o diabo num desafio de improvisação de cantos, e cujo verdadeiro nome ninguém soube, desapareceu de Ma- condo durante a peste da insônia e certa noite reapareceu sem aviso na taberna de Catarino. Todo o povo foi escutá-lo, pa-ra saber o que tinha acontecido no mundo. Nessa ocasião, che-garam com ele uma mulher tão gorda que quatro índios ti-nham que levá-la carregada numa maca, e uma mulata ado~ lescente de aspecto desamparado que a protegia do sol coei uma sombrinha. Aureliano foi essa noite à taberna de Catari-no. Encontrou Francisco, o Homem, como um camaleão mo-nolítico, sentado no meio de um círculo de curiosos. Cantava as notícias coni a sua velha voz desencordoada acompanhando-se com o mesmo acordeão arcaico que ganhan de Sir Walter Raleigh nas Guianas, enquanto marcava o com passo com os seus grandes pés andarilhos gretados pelo sali tre. Diante da porta do fundo, estava sentada, e se abanav~ em silêncio, a matrona da maca. Catarino, com uma rosa d feltro na orelha, vendia à freguesia canecas de garapa fermen tada e aproveitava a ocasião para se aproximar dos homeiu e pôr a mão onde não devia. Por volta da meia-noite o calo] era insuportável. Aureliano escutou as notícias até o fim, sen encontrar nenhuma que interessasse à sua família. Dispunha 54 1 voltar para casa quando a matrona lhe fez um sinal com ão. — Entre você também — disse a ele. — Custa só vinte tavos. Aureliano jogou uma moeda no cofre que a matrona ti-nas pernas e entrou no quarto sem saber para quê. A mu-adolescente, com as suas tetazinhas de cadela, estava nua cama. Antes de Aureliano, nessa noite, sessenta e três ho-s tinham passado pelo quarto. De tanto ser usado, e amas- o com suores e suspiros, o ar da alcova começava a se trans-ar em lodo. A moça tirou o lençol ensopado e pediu a ellano que o segurasse por um lado. Pesava como uma cor-Espremeram-no, torcendo- o pelos extremos, até que vol-ao seu peso natural. Viraram a esteira, e o suor saía pelo ro lado. Aureliano ansiava para que essa operação não ter-asse nunca. Conhecia a mecânica teórica do amor, mas podia agüentar-se em pé por causa da fraqueza dos joe-s, e ainda que tivesse a pele arrepiada e ardente não podia ortar a urgência de expulsar o peso das tripas. Quando a a acabou de arrumar a cama e lhe ordenou que se despis-ele deu uma explicação aparvalhada: “Me fizeram entrar. disseram para jogar vinte centavos no cofre e não demo-.“ A moça entendeu o seu embaraço. “Se você jogar ou-vinte centavos na saída, pode demorar um pouco mais”, e suavemente. Aureliano se despiu, atormentado pelo pu— sem poder afastar a idéia de que a sua nudez não resistia omparação com a de seu irmão. Apesar dos esforços da ça, sentiu-se cada vez mais indiferente, e terrivelmente so-o. “Vou jogar outros vinte centavos”, disse com voz de-ada. A moça lhe agradeceu em silêncio. Tinha as costas em ne viva. Tinha a pele colada nas costelas e a respiração al-ada por um esgotamento insondável. Dois anos antes, muito ge dali, havia adormecido sem apagar a vela e tinha acor- o rodeada pelo fogo. A casa onde vivia com a avo que a via criado ficou reduzida a cinzas. Desde então, a avó a le-a de povoado em povoado, deitando-a por vinte centavos, a pagar o valor da casa incendiada. Pelos cálculos da mo-ainda lhe faltavam uns dez anos de setenta homens por 55 .4 noite, porque tinha a pagar além do mais os gastos de viagem e alimentação das duas, e o ordenado dos índios que carrega-vam a maca. Quando a matrona bateu na porta pela segunda vez, Aureliano saiu do quarto sem ter feito nada, aturdido pela vontade de chorar. Essa noite não pôde dormir, pensando na moça com uma mistura de desejo e comiseração. Sentia uma necessidade irresistível de amá-la e protegê-la. Ao amanhecer, extenuado pela insônia e pela febre, tomou a serena decisao de se casar com ela para libertá-la do despotismo da avó e des-frutar todas as noites da satisfação que ela dava a setenta ho-mens. Mas, às dez da manhã, quando chegou à taberna de Catarino, a moça já tinha ido embora do povoado. O tempo aplacou o seu propósito deslumbrado, mas agra-vou o seu sentimento de frustração. Refugiou-se no trabalho. Resignou-se a ser um homem sem mulher a vida inteira, para esconder a vergonha da sua inutilidade. Enquanto isso, Mel-quíades acabou de plasmar nas suas placas tudo o que era pias-mável em Macondo e abandonou o laboratório de daguerreo-tipia aos delírios de José Arcadio Buendía, que tinha resolvi-do utilizá-lo para obter a prova científica da existência de Deus. Mediante um complicado processo de exposições superpostas, tomadas em lugares diferentes da casa, estava certo de fazer mais cedo ou mais tarde o daguerreótipo de Deus, se existis-se, ou acabar de uma vez por todas com a suposição da sua existência. Melquíades aprofundou-se nas interpretações de Nostradamus. Ficava até muito tarde, sufocando-se dentro do seu desbotado casaco de veludo, traçando garranchos em pa-péis, com as suas minúsculas mãos de pardal, cujos anéis ti-nham perdido o brilho de outra época. Certa noite, acreditou encontrar uma predição sobre o futuro de Macondo. Seria uma cidade luminosa, com grandes casas de vidro, onde não resta-va nem rastro da estirpe dos Buendía. “É engano”, trovejou José Arcadio Buendía. “Não serão casas de vidro, mas de ge-lo, como eu sempre sonhei, e sempre haverá um Buendía, pe-los séculos dos séculos.” Naquela casa extravagante, Ürsula lutava para preservar o bom senso, tendo ampliado o negócio de animaizinhos de caramelo com um forno que produzia, du-rante toda a noite, cestos e cestos de pão e uma prodigiosa 56 e de pudins, suspiros e biscoitinhos, que se esfuma-poucas horas pelas veredas do pantanal. Havia atin-a idade em que tinha direito a descansar, mas era ca- iiais ativa. Tão ocupada andava com as suas próspe-gesas que uma tarde olhou por distração para o quin-~uanto a índia a ajudava a adoçar a massa, e viu duas lentes desconhecidas e formosas bordando no bastidor crepúsculo. Eram Rebeca e Amaranta. Mal haviam ti-luto da avó, que guardaram com inflexível rigor du-frês anos, e a roupa de cor parecia haver dado a elas ~ro lugar no mundo. Rebeca, ao contrário do que se pô-~rar, era a mais bela. Tinha uma pele diáfana, olhos e repousados, e umas mãos mágicas que pareciam ela-com fios invisíveis a trama do bordado. Amaranta, a K era um pouco sem graça, mas tinha a distinção natu-altivez interior da avó morta. Junto delas, embora já ~se o impulso físico de seu pai, Arcadio parecia um me-Tinha-se dedicado a aprender a arte da ourivesaria com ~ano, que além disso lhe ensinara a ler e escrever. Ursu-cebeu de repente que a casa se havia enchido de gente, seus filhos estavam quase para casar e ter filhos, e que am obrigados a se dispersar por falta de espaço. Então oi~ãeÍroízrntaôø em longos anos de trabalho duro, as-ompromissos com os seus clientes, e empreendev~am-da casa. Ordenou que se construíssem uma sala for-ra as visitas, outra mais cômoda e fresca para o uso um refeitório com uma mesa de doze lugares, onde se ~ a famflia com todos os seus convidados; nove quar-‘jandas para o quintal e uma longa varanda protegi-plendor do meio-dia por um jardim dez-asas, com uma a para colocar vasos de fetos e de begônias. Mandou a cozinha para construir dois fornos, destruir a velha a onde Pilar Temera tinha lido o futuro de José Ar-construir outra duas vezes maior, para que nunca fal-rnentos em casa. Mandou construir no quintal, à som-astanheiro, um banheiro para as mulheres e outro para ~ns, e ao fundo uma cavalariça grande, um galinheiro um estábulo de ordenha e uni viveiro aberto aos qua-57 tro ventos para que se instalassem a seu gosto os pássaros sem rumo. Seguida por dúzias de pedreiros e carpinteiros, como se tivesse contraído a febre alucinante do marido, Ursula or-denava a posição da luz e a conduta do calor, e dividia o es-paço sem a menor noção dos seus limites. A primitiva cons-trução dos fundadores se encheu de ferramentas e materiais, de operários agoniados pelo suor, que pediam a todo mundo o favor de não atrapalhar, sem pensar que eram eles que atra-palhavam, exasperados pelo saco de ossos humanos que os per-seguia por todas as partes com o seu surdo chocalhar. Naque-le ambiente incômodo, todos respirando cal viva e melados de alcatrão, ninguém entendeu muito bem como foi surgindo das entranhas da terra não só a maior casa que jamais have-ria no povoado, como também a mais hospitaleira e fresca que jamais houvera no âmbito do pantanal. José Arcadio l3uen-día, tentando surpreender a Divina Providencia no meio do cataclismo, foi quem menos entendeu. A nova casa estava qua-se terminada quando Ursula o tirou do seu mundo quimérico para informá-lo de que havia uma ordem para pintar a facha-da de azul e não de branco, como eles queriam. Mostrou-lhe a disposição oficial escrita num papel. José Arcadio Buendía, sem compreender o que dizia a sua esposa, decifrou a assinatura. — Quem é esse sujeito? — perguntou. — O delegado — disse Úrsula desconsolada. — Dizem que é uma autoridade que o governo mandou. O Sr. Apolinar Moscote, o delegado, tinha chegado a Ma-condo na surdina. Baixou no Hotel do Jacob — instalado por um dos primeiros árabes que chegaram mascateando bugigan-gas por papagaios — e no dia seguinte alugou um quartinho com porta para a rua, a duas quadras da casa dos l3uendía. Pôs uma mesa e uma cadeira que comprou de Jacob, pregou na parede um escudo da República que tinha trazido consigo, e pintou na porta o letreiro: Delegacia. Sua primeira atitude foi ordenar que todas as casas se pintassem de azul para cele-brar o aniversário da independencia nacional. José Arcadio Buendía, com a cópia da ordem na mão, encontrou-o dormin- do a sesta na rede que tinha pendurado no estreito escritório. 58 .4 delegar. Diante da impavidez do Sr. Apolinar Moscote, sempre iantar a voz, fez um pormenorizado relato de como ha-a aldeia, de como tinham repartido a terra, aber-caminflos e introduzido as melhoras que lhes fora exi-necessidade, sem ter incomodado governo nenhum e ninguém os incomodasse. “Somos tão pacíficos que sequer morremos de morte natural”, disse. “Veja que não temos cemitério.” Não estava magoado pelo go- - não os haver ajudado. Pelo contrário, alegrava-se de até então os tivesse deixado crescer em paz, e esperava continuasse deixando, porque eles não tinham fundado povoado para que o primeiro que chegasse lhes fosse di-que deviam fazer. O Sr. Apolinar Moscote havia posto paletó de linho, branco como as suas calças, sem perder um só momento a pureza dos seus gestos. — De modo que se o senhor quiser ficar aqui, como ou-cidadão comum e corrente, seja bem-vindo — concluiu José Buendía. — Mas se vem implantar a desordem, obri- o povo a pintar as casas de azul, pode juntar os trapos para o lugar de onde veio. Porque a minha casa vai oranca como uma pomba. O Sr. Apolinar Moscote ficou pálido. Deu um passo atrás pertou os maxilares para dizer com certa aflição: — Quero adverti-lo de que estou armado. José Arcadio Buendía não pôde precisar em que momento subiu às mãos a força juvenil com que derrubava um ca-59 o senhor que escreveu este papel?”, perguntou. O Sr. Moscote, um homem maduro, tímido, de complei-~nguínea, respondeu que sim. “Com que direito?”, vol- perguntar José Arcadio Buendía. O Sr. Apolinar Mos-u um papel na gaveta da mesa e mostrou: “Fui ido delegado deste povoado.” José Arcadio Buendía nem olhou para a nomeação. — Neste povoado não mandamos com papéis — disse der a calma. — E para que fique sabendo de uma vez, de nenhum delegado, porque aqui não há na- valo. Agarrou o Sr. Apolinar Moscote pelo colarinho e levantou-o à altura dos olhos. — Faço isto — disse a ele — porque prefiro carregá-lo vivo e não ter de continuar a carregá-lo morto pelo resto da minha vida. Assim o levou, pelo meio da rua, suspenso pelo colari-nho, até que o pôs sobre os seus dois pés no caminho do pân-tano. Uma semana depois, estava de volta com seis soldados descalços e esfarrapados, armados de espingardas, e um car-ro de boi onde viajavam sua mulher e suas sete filhas. Mais tarde chegaram mais duas carroças com os móveis, os baús e os utensílios domésticos. Instalou a família no Hotel do Ja-cob, enquanto arranjava uma casa, e voltou a abrir o escritó-rio protegido pelos soldados. Os fundadores de Macondo, re-solvidos a expulsar os invasores, foram com os seus filhos mais velhos colocar-se à disposição de José Arcadio Buendía. Mas ele se opôs, conforme explicou, porque o Sr. Apolinar Mos-cote tinha voltado com a mulher e as filhas, e não era coisa de homem envergonhar outro diante da família. De modo que decidiu resolver a situação por bem. Aureliano o acompanhou. Já então tinha começado a cul-tivar o bigode negrq de pontas engomadas, e tinha a voz um pouco retumbante que haveria de caracterizá- lo na guerra. De-sarmados, sem dar importância à guarda, entraram no escri-tório do delegado. O Sr. Apolinar Moscote não perdeu a se-renidade. Apresentou-os a duas de suas filhas que se encon-travam ali por acaso: Amparo, de 16 anos, morena como a mãe, e Remedios, de apenas nove anos, um cromo de menina com pele de lírio e olhos verdes. Eram graciosas e bem-educadas. Logo que eles entraram, antes de serem apresenta-das, trouxeram-lhes cadeiras para que se sentassem. Mas am-bos permaneceram de pé. — Muito bem, amigo — disse José Arcadio Buendía —o senhor fica aqui, mas não porque tem na porta esses ban-doleiros de trabuco, e sim por consideração à senhora sua es-posa e às suas filhas. O Sr. Apolinar Moscote se desconcertou, mas José Ar-cadio Buendía não lhe deu tempo para responder. “Só lhe im-60 s duas condições”, acrescentou. “A primeira: que cada a sua casa da cor que quiser. A segunda: que os sol- -e embora imediatamente. Nós garantimos a ordem.” ‘~gado levantou a mão direita com todos os dedos — Palavra de honra? Palavra de inimigo — disse José Arcadio Buendía. E num tom amargo: — Porque uma coisa eu quero Lhe o senhor e eu continuamos sendo inimigos. .~:ssa mesma tarde os soldados foram embora. Poucos pois José Arcadio Buendía arranjou uma casa para a do delegado. Todo mundo ficou em paz, menos Au-A imagem de Remedios, a filha mais nova do delega-pela idade poderia ser sua filha, ficou doendo em ai-~arte de seu corpo. Era uma sensação física que quase ia para andar, como uma pedrinha no sapato. 61 \1~i -4 A NOVA casa, branca como uma pomba, foi estreada com um baile. Ursula tinha tido aquela idéia na tarde em que viu Re-beca e Amaranta transformadas em adolescentes, e quase se pode dizer que o principal motivo da construção foi o desejo de conseguir para as moças um lugar digno onde receber as visitas. Para que nada deixasse a desejar, trabalhou como um mouro, enquanto se executavam as reformas, de modo que antes que estivessem terminadas já tinha encomendado cus-tosos objetos para a decoração e os serviços de copa, e a in-venção maravilhosa que haveria de suscitar o assombro do po-vo e o júbilo da juventude: a pianola. Levaram-na aos peda-ços, embalada em vários caixotes, que foram descarregados 62 os móveis vienenses, os cristais da Boemia, a louça IlDanhia das Índias, as toalhas da Holanda e uma rica de lâmpadas e lampiões, e floreiras, guardanapos A casa importadora enviou por sua conta um técni-~no, Pietro Crespi, para que armasse e afinasse a pia-Lruísse os compradores do seu manejo e os ensinasse a música da moda impressa nos seis rolos de papel. Crespi era jovem e louro, o homem mais belo e oue se havia visto em Macondo, tão escrupuloso no apesar do calor sufocante, trabalhava de camiseta e um grosso paletó de pano escuro. Ensopado de suor, - uma distância reverente dos donos da casa, esteve semanas trancado na sala, numa dedicação semelhante ~ureliano na sua oficina de ourives. Certa manhã, sem porta, sem convocar nenhuma testemunha para o mi- colocou o primeiro rolo na pianola, e o martelar ator- e o ranger constante das ripas de madeira cessaram siI~ncio de assombro, diante da ordem e da limpeza da Todos se precipitaram para a sala. José Arcadio Buen-areceu fulminado, não pela beleza da melodia, mas pelo iento autônomo do teclado da pianola, e instalou na sala de daguerreotipia de Melquíades, com a esperança o retrato do executante invisível. Neste dia, o italia-com eles. Rebeca e Amaranta, servindo a mesa, •se com a fluidez com que usava os talheres aquele angelico de mãos pálida e sem anéis. Na sala de estar, à de visitas, Pietro Crespi ensinou-as a dançar. iva-lhes os passos sem tocá- las, marcando o compasso um metrônomo sob a amável vigilância de Úrsula, que abandonou a sala um só instante enquanto as filhas rece-as lições. Pietro Crespi vestia então umas calças espe-muito flexíveis e justas, e umas sapatilhas de balé. “Vo- vrecisa se preocupar tanto”, observava José Arcadio sua mulher. “Esse sujeito é maricas.” Ela, porém, desistiu da vigilância enquanto não terminou a aprendi-e o italiano não foi embora de Macondo. Então come- a organização da festa. Úrsula fez uma lista severa dos !vidados~ na qual os únicos escolhidos eram os descenden-63 tes dos fundadores, exceto a famiia de Pilar Temera, que já tinha tido outros dois filhos de pais desconhecidos. Era na rea-lidade uma seleção de classe, só que determinada por senti mentos de amizade, pois os favorecidos eram não só os m antigos íntimos da casa de José Arcadio Buendía, desde ant de empreender o êxodo que culminou com a fundação de Ma. condo, mas também os seus filhos e netos eram os companhei ros habituais de Aureliano e Arcadio desde a infância, e as suas filhas eram as únicas que visitavam a casa para bord com Rebeca e Amaranta. O Sr. Apolinar Moscote, o gover-nante benévolo cuja atuação se reduzia a sustentar com os se escassos recursos os dois guardas armados com cassetetes d madeira, era uma autoridade ornamental. Para ajudar nas des-pesas domésticas, suas filhas abriram um ateliê de costura, onde ao mesmo tempo que faziam flores de feltro, preparavam do- cinhos de goiaba e escreviam cartas de amor por encomenda. Mas, apesar de serem recatadas e prestativas, as mais belas do povoado e as mais preparadas nas danças modernas, não conseguiram ser levadas em conta para a festa. Enquanto Ursula e as moças desencaixotavam os móveis, poliam as louças e penduravam quadros de donzelas em bar-cas carregadas de r9sas, infundindo um sopro de vida nova nos espaços pelados que os pedreiros construíram, José Ar-cadio Buendía renunciou à perseguição da imagem de Deus, convencido da sua inexistência, e estripou a pianola para de-cifrar a sua magia secreta. Dois dias antes da festa, afogando-se numa poça de cravelhas e martelos que sobravam, fazendo lam-bança entre um meandro de cordas que desenrolava por um extremo e que tornavam a se enrolar pelo outro, conseguiu descompor o instrumento. Nunca houve tantos sobressaltos e correrias como naqueles dias, mas as novas lâmpadas de al-catrão se acenderam n~ data e na hora previstas. A casa se abriu, ainda cheirando a resinas e a cal úmida, e os filhos e netos dos fundadores conheceram a varanda dos fetos e das begónias, os aposentos silenciosos, o jardim saturado pela fra-grância das rosas, e se reuniram na sala de visitas, diante da invenção desconhecida que tinha sido coberta por um lençol branco. Os que conheciam o pianoforte, popular em outras 64 do pantanal, ficaram um pouco decepcionados; marga ainda foi a desilusão de Úrsula, quando colocou ieiro rolo para que Amaranta e Rebeca abrissem o bai- mecanismo não funcionou. Melquíades, já quase cego, lo de velhice, recorreu às artes da sua antiquíssima sa- - para tentar consertá-lo. Por fim, José Arcadio Buen-xiu mover por engano um dispositivo emperrado, • saiu, primeiro aos borbotões, e logo num manan-notas arrevesadas. Batendo nas cordas, colocadas sem nem concerto e afinadas com temeridade, os martelos ;encaixaram. Mas os teimosos descendentes dos vinte e itrëpidos que desbravaram a serra em busca do mar pelo passaram por cima dos escolhos do quiproquó me- e o baile se prolongou até o amanhecer. ‘ietro Crespi voltou para montar a pianola de novo. Re-Amaranta o ajudaram a ordenar as cordas e o secun-nas suas risadas pelo arrevesado das valsas. Era extre-afetuoso e de tão boa índole que Úrsula renunciou cia. Na véspera da sua viagem, improvisou-se com a “ restaurada um baile de despedida, e ele fez com Re-uma demonstração virtuosística das danças modernas. e Amaranta se igualaram em graça e destreza. Mas ]ção foi interrompida porque Pilar Temera, que estava com os curiosos, atracou-se às mordidas e puxões com uma mulher que se atreveu a comentar que o Arcadio tinha nádegas de mulher. Por volta da meia-Pietro Crespi se despediu com um discursinho sentimen-prometeu voltar muito brevemente. Rebeca o acompa-a porta e, logo depois de ter fechado a casa e apaga- - lâmpadas, foi para o quarto chorar. Foi um pranto in-~lável que se prolongou por vários dias e cuja causa nem Ainaranta soube. Não era estranho o seu hermetismo. parecesse expansiva e cordial, tinha um temperamento e um coração impenetrável. Era uma adolescente es- - de ossos largos e firmes, mas se obstinava em conti-usando a cadeirinha de balanço com que chegou à casa, vezes reforçada e já desprovida de braços. Ninguém - descoberto que ainda nessa época conservava o hábito 65 de chupar o dedo. Por isso não perdia ocasião de se fechar no banheiro, e tinha adquirido o costume de dormir com a cara virada para a parede. Nas tardes de chuva, bordando com um grupo de amigas na varanda das begônias, perdia o fio da conversa e uma lágrima de saudade lhe salgava o céu da boca quando via as faixas de terra úmida e os montículos de barro construídos pelas minhocas no jardim. Estes prazeres secretos, vencidos em outros tempos pelas laranjas com rui-barbo, irromperam num desejo irreprimível quando começou a chorar. Voltou a comer terra. Da primeira vez, fé-lo quase por curiosidade, certa de que o gosto ruim seria o melhor re-médio contra a tentação. E, com efeito, não pôde suportar a terra na boca. Mas insistiu, vencida pela ânsia crescente, e pouco a pouco foi satisfazendo o apetite ancestral, o gosto pelos minerais primários, a satisfação sem par do alimento on-ginal. Jogava punhados de terra nos bolsos e os comia aos grão-zinhos, sem ser vista, com um confuso sentimento de felici-dade e raiva, enquanto adestrava suas amigas nos pontos mais difíceis e conversava sobre outros homens que não mereciam o sacrifício de que se comesse por eles a cal das paredes. Os punhados de terra faziam menos remoto e mais certo o único homem que merecía~quela degradação, como se o chão que ele pisava com as suas finas botas de verniz em outro lugar do mundo transmitisse a ela o peso e a temperatura do seu sangue, num sabor mineral que deixava uma cinza áspera na boca e um sedimento de paz no coração. Uma tarde, sem ne-nhum motivo, Amparo Moscote pediu licença para conhecer a casa. Ainaranta e Rebeca, desconcertadas pela visita impre-vista, atenderam-na com um formalismo duro. Mostraram-lhe a mansão reformada, fizeram-na ouvir os rolos da piano-la e lhe ofereceram laranjada com biscoitinhos. Amparo deu uma lição de dignidade, de encanto pessoal, de boas manei-ras, que impressionou Ursula nos breves instantes em que as-sistiu à visita. Ao fim de duas horas, quando a conversa começava a ar-refecer, Amparo aproveitou um descuido de Amaranta e en-tregou uma carta a Rebeca. Esta conseguiu ver o nome da mui ilustríssinia senhorita D. Rebeca Buendía, escrito com a mes-66 regular, a mesma tinta verde e a mesma disposição das palavras com que estavam escritas as instruções manejo da pianola, e dobrou a carta com a ponta dos e escondeu-a no seio, olhando para Amparo Moscote na expressão de gratidão sem fim nem condições e uma promessa de cumplicidade até a morte. repentina amizade de Amparo Moscote e Rebeca Buen- ~u as esperanças de Aureliano. A lembrança da pe-Remedios não tinha deixado de torturá-lo, mas não en-iva oportunidade de vã-Ia. Quándo passeava pelo povoa- os seus amigos mais próximos, Magnífico Visbal e Ge-Márquez — filhos dos fundadores de iguais nomes —a-a com olhar ansioso no ateliê de costura e só via velhas. A presença de Amparo Moscote na casa “ uma premonição. “Tem que vir com ela”, se dizia o em voz baixa. “Tem que vir.” Tantas vezes repe-com tanta convicção, que uma tarde em que moldava ia um peixinho de ouro teve a certeza de que ela tinha dido ao seu chamado. Pouco depois, com efeito, ou- infantil, e ao levantar a vista com o coração ge-de pavor viu a menina na porta, com um vestido de or-rosado e botinhas brancas. — Não entre aí, Remedios — disse Amparo Moscote no - r. — Eles estão trabalhando. Aureliano não lhe deu tempo de obedecer. Levan-. peixinho dourado preso numa correntinha que lhe saía boca e disse: — Entre. Remedios se aproximou e fez algumas perguntas sobre que Aureliano não pôde responder devido a um r~ ataque de asma. Queria ficar para sempre junto dessa lírio, junto desses olhos de esmeralda, muito perto dessa que a cada pergunta lhe dizia senhor com o mesmo res-com que o dizia a seu pai. Melquiades estava no canto, à escrivaninha, garranchando signos indecifráveis. Au- - o odiou. Não pôde fazer nada, a não ser dizer a Re-que lhe ia dar de presente o peixinho, e a menina se tanto com o oferecimento que abandonou às carrei-67 68 1 de Catarino. O estabelecimento tinha sido amplia- -4 uma galeria de quartos de madeira onde viviam mu-sozinhas cheirando a flores mortas. Um conjunto de tambores executava as canções de Francisco, o Ho-que fazia vários anos tinha desaparecido de Macondo. amigos beberam garapa fermentada. Magnífico e Ge-contemporâneos de Aureliano, porém mais experientes - do mundo, bebiam metodicamente com as mulhe-~uadas nos joelhos. Uma delas, murcha e com a denta-ada a ouro, fez a Aureliano uma carícia estremece- tle a repeliu. Tinha descoberto que quanto mais bebia lembrava de Remedios, mas suportava melhor a tor-da Lembrança. Não soube em que momento começou a Viu seus amigos e as mulheres navegando numa re-~ração radiante, sem peso nem volume, dizendo palavras saíam dos lábios e fazendo sinais misteriosos que não spondiam aos seus gestos. Catarino pôs-lhe a mão no om-“São quase onze horas.” Aureliano voltou a ca-l’ o enorme rosto desfigurado com uma flor de feltro e então perdeu a memória, como nos tempos do tecimento, e voltou a recobrá-la numa madrugada alheia quarto que lhe era completamente desconhecido, onde -- Pilar Temera de combinação, descalça, desgrenhada, )-O com um lampião e pasmada de incredulidade. — Aureliano! Aureliano se firmou nos pés e levantou a cabeça. Ignora-orno tinha chegado até ali, mas sabia qual era o propósi-porque o trazia escondido desde a infância num lago in-ável do coração. — Venho dormir com a senhora — disse. Tinha a roupa manchada de lama e de vômito. Pilar Teme-que então vivia somente com os seus dois filhos menores, lhe fez nenhuma pergunta. Levou-o para a cama. Limpou-a cara com um trapo úmido, tirou-lhe a roupa e logo se piu por completo e abaixou o mosquiteiro para que não issem os filhos, se acordassem. Tinha cansado de esperar o homem que ficou, pelos homens que foram embora, pe-incontáveis homens que erraram o caminho da sua casa, 69 confundidos pela incerteza das cartas. Na espera, sua pele ti nha enrugado, seus seios tinham murchado e se havia apaga do a brasa do coração. Procurou Aureliano na escuridão, pô Lhe a mão no ventre e beijou-o no pescoço com uma ternur maternal. “Meu pobre menininho”, murmurou. Aureliano tremeceu. Com um desembaraço repousado, sem a menor di ficuldade, deixou para trás as escarpas da dor e encontrou R medios transformada num pântano sem horizontes, cheiran do a animal cru e a roupa recém-passada a ferro. Quando boio estava chorando. Primeiro foram soluços involuntários e en trecortados. Depois se esvaziou num manancial desatado, sen tindo que algo tumefato e doloroso tinha arrebentado no se interior. Ela esperou, coçando-lhe a cabeça com a ponta do dedos, até que seu corpo se desocupasse da matéria escura qu não o deixava viver. Então, Pilar Temera lhe perguntou “Quem é?” E Aureliano lhe disse. Ela deu a risada que e outros tempos espantava os pombos e que agora nem sequ acordava as crianças. “Você vai ter que acabar de criá-la” zombou. Mas atrás da brincadeira Aureliano encontrou u remanso de compreensão. Quando abandonou o quarto, dei-xando ali não só a incerteza da sua virilidade mas também peso amargo que durante tantos meses suportara no coração, Pilar Temera lhe tinha feito uma promessa espontânea. — Vou falar com a menina — disse a ele — e você vai ver como a trago numa bandeja~ Cumpriu. Mas num mau momento, porque a casa tinha perdido a paz dos outros dias. Ao descobrir a paixão de Re-, beca, que não foi possível manter em segredo por causa dos seus gritos, Amaranta teve um acesso de febre. Também ela sofria o espinho de um amor solitário. Fechada no banheiro, se desafogava do tormento de uma paixão sem esperanças, es-crevendo cartas febris que se conformava em esconder no fun- do do baú. Úrsula não chegou para as encomendas, no aten-der as duas doentes. Não conseguiu, em prolongados e insi-diosos interrogatórios, averiguar as causas da prostração de Amaranta. Por fim, em outro momento de inspiração, for-çou a fechadura do baú e encontrou as cartas amarradas com fitas cor-de-rosa, inchadas de açucenas frescas e ainda úmi-70 1 ii - de lágrimas, dirigidas e nunca enviadas a Pietro Crespi. rando de raiva, maldisse hra em que lhe passou pela ca-comprar a pianola, proibiu as aulas de bordado e decre-uma espécie de luto sem morto, que se haveria de prolon-até que as filhas desistissem das suas esperanças. Foi inú-intervenção de José Arcadio Buendía, que tinha retifica-sua primeira impressão sobre Pietro Crespi e admirava a habilidade no manejo das máquinas musicais. De modo quando Pilar Temera disse a Aureliano que Remedios es- decidida a se casar, ele compreendeu que a notícia aca-a de transtornar os pais. Mas enfrentou a situação. Con-dos à sala de visitas para uma entrevista formal, José Ar-~o Buendía e Úrsula escutaram impávidos a declaração do o. Ao tomar conhecimento do nome da noiva, entretanto, Arcadio Buendía enrubesceu de indignação. ‘~ amor é peste”, trovejou. “Havendo tantas moças bonitas e di-s, a unica coisa que lhe passa pela cabeça e casar com a ado inimigo.” Mas Ursula concordou com a escolha. Con-ou o seu afeto pelas sete irmãs Moscote, pela sua formo-sua diligência, seu recato e sua boa educação, e festejou erto do seu filho. Vencido pelo entusiasmo da mulher, José adio Buendía impôs então uma condição: Rebeca, que era rrespondida, casaria com Pietro Crespi. Ursula levaria aranta numa viagem à capital da província, quando tives-empo, para que o contato com outras pessoas a aliviasse ua desilusão. Rebeca recobrou a saúde logo que soube do Lo, e escreveu ao namorado uma carta jubilosa que subme-à aprovação dos pais e pôs no correio sem se servir de in-~ediários. Amaranta fingiu aceitar a decisão e pouco a pou-~e restabeleceu da febre, mas prometeu a si mesma que Re-a só se casaria se passasse por cima do seu cadáver. No sábado seguinte José Arcadio Buendía pôs o terno de enda escura, o colarinho duro e as botas de camurça que ~a estreado na noite da festa, e foi pedir a mão de Reme-s Moscote. O delegado e sua esposa o receberam ao mes-tempo satisfeitos e embaraçados, porque ignoravam o pro-;ito da visita imprevista, e em seguida pensaram que ele ti- 71 nha confundido o nome da pretendida. Para resolver a ques-tão, a mãe acordou Remedios e a levou no colo para a sala, ainda zonza de sono. Perguntaram-lhe se na verdade estava decidida a se casar e ela respondeu choramingando que só que-ria que a deixassem dormir. José Arcadio Buendía, compreen-dendo o embaraço dos Moscote, foi esclarecer as coisas com Aureliano. Quando voltou, o casal Moscote já estava vestido em traje de passeio, tinha mudado a posição dos móveis e co-locado flores novas nas floreiras, e o esperavam na compa-nhia das filhas mais velhas. Agoniado pela situação ingrata e pelo incômodo do colarinho duro, José Arcadio Buendía con- firmou que, na verdade, Remedios era a escolhida. “Isto não tem sentido”, disse consternado o Sr. Apolinar Moscote. “Te-mos mais seis filhas, todas solteiras e em idade de casar, que estariam encantadas em ser esposas digníssimas de cavalhei-ros sérios e trabalhadores como o seu filho, e Aurelito volta os olhos exatamente para a única que ainda faz pipi na ca-ma.” Sua senhora, uma mulher bem conversada, de pestanas e gestos aflitos, reprovou-lhe a incorreção. Quando acabaram de tomar o refresco de frutas, tinham aceitado satisfeitos a decisão de Aureliano. Só que a Sra. Moscote suplicava o fa-vor de falar a sós com Úrsula. Intrigada, reclamando que a estava envolvendo em assuntos de homem, mas na verdade intimidada pela emoção, Ursula foi visitá-la no dia seguinte. Meia hora depois, voltou com a notícia de que Remedios era impúbere. Aureliano não considerou isso como um empecilho grave. Tinha esperado tanto que podia esperar quanto fosse necessário até que a noiva estivesse em idade de conceber. A harmonia restaurada só foi interrompida pela morte de Melquíades. Ainda que o acontecimento fosse previsível, não o foram as circunstâncias. Poucos meses depois da sua volta, operara-se nele um processo de envelhecimento tão rá-pido e crítico que logo foi tomado como um desses bisavôs inúteis que perambulam como sombras pelos quartos, arras-tando os pés, recordando melhores tempos em voz alta, e de quem ninguém se ocupa nem se lembra na verdade até o dia em que amanhecem mortos na cama. No princípio, José Ar-cadio Buendía o secundava nas suas tarefas, entusiasmado com a novidade da daguerreotipia e as predições de Nostradamus. 72 - uco a pouco o foi abandonando à sua solidão, porque .z mais se fazia difícil a comunicação. Estava perden-e o ouvido, parecia confundir os seus interlocuto- pessoas que conhecera em épocas remotas da huma-e respondia às perguntas numa intrincada barafunda Caminhava tateando o ar, embora se movesse por com uma fluidez inexplicável, como se estives-um instinto de orientação baseado em pressenti- imediatos. Um dia se esqueceu de colocar a dentadu-que deixava de noite num copo de água junto à -- não voltou a usá-la. Quando Ursula ordenou a am-da casa, fez construir um quarto especial para ele, con-oficina de Aureliano, longe dos ruídos e da movimen-~tica, com uma janela inundada de luz e uma es- mesma arrumou os livros quase desmanchados eira e pelas traças, os quebradiços papéis abarrotados indecifráveis e o copo com a dentadura postiça, on-iiii colocado umas plantinhas aquáticas de minúsculas emarelas. O novo lugar pareceu agradar a Melquíades, o se voltou a vê-lo sequer na sala de jantar. Ia somente de Aureliano, onde passava horas e horas garran-‘a sua literatura enigmática nos pergaminhos que trou-e que pareciam fabricados de uma matéria árida estarelava como uma empada. Comia ali os alimentos lhe levava duas vezes por dia, embora nos últi-~mpos tivesse perdido o apetite e só se alimentasse de Em pouco tempo adquiriu o aspecto de desamparo - dos vegetarianos. A pele se cobriu de um musgo ma-:melhante ao que prosperava no casaco anacrônico que nunca, e a sua respiração passou a exalar um bafo adormecido. Aureliano acabou por se esquecer de-na redação dos seus versos, mas em certa ocasião alguma coisa do que ele dizia nos seus mo-monõlogos e prestou atenção. Na verdade, a única que pôde colher naquelas confidências pedregosas foi tente martelar da palavra equinócio equinócio equinó-o nome de Alexandre Von Humboldt. Arcadio se apro-um pouco mais dele, quando começou a ajudar Atire- 73 liano na ourivesaria. Melquíades correspondeu àquele esfor ço de comunicação soltando, de vez em quando, algumas fra ses em castelhano que tinham muito pouco a ver com a reali dade. Uma tarde, entretanto, pareceu iluminado pela emoçãc repentina. Anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, Ar cadio haveria de se lembrar do tremor com que Melquíade~ o fez escutar várias páginas da sua escrita impenetrável, qw evidentemente não entendeu, mas que ao serem lidas em vo~ alta pareciam encíclicas cantadas. Depois sorriu pela primei ra vez em muito tempo e disse em castelhano: “Quando ei. morrer, queimem mercúrio durante três dias no meu quarto.’ Arcadio contou isso para José Arcadio Buendía, e este tratoi de obter uma informação mais explícita, mas só conseguiu umE resposta: “Alcancei a imortalidade.” Quando a respiração d~ Melquíades começou a cheirar mal, Arcadio levava-o a tomai banho no rio toda quinta-feira pela manhã. Pareceu melho rar. Despia-se e se metia na água juhto com os rapazes, e seu misterioso sentido de orientação o permitia escapar do~ lugares profundos e perigosos. “Somos da água”, disse eu certa ocasião. Assim, passou muito tempo sem que ninguén o visse em casa, a não ser na noite em que fez um comovedo~ esforço para consertar a pianola, e quando ia ao rio com Ar cadio, levando débaixo do braço a cuité e a bola de sabão d óleo de palmeira embrulhadas numa toalha. Certa quinta-feira antes de que chamassem para ir ao rio, Aureliano o ouviu di zer: “Morri de febre nas dunas de Cingapura.” Nesse dia meteu-se n’água por um mau caminho e só o encontraram n~ manhã seguinte, vários quilômetros mais abaixo, encalhad numa curva luminosa e com um urubu solitário de pé sobri o ventre. Contra os escandalizados protestos de Úrsula, qui o chorou com mais dbr que a seu próprio pai, José Arcadi Buendía se opôs a que o enterrassem. “E imortal”, disse “ele mesmo revelou a fórmula da ressurreição.” Reviveu o es quecido alambique e pôs para ferver uma caldeira de mercú rio junto ao cadáver que pouco a pouco se ia enchendo de bo lhas azuis. O Sr. Apolinar Moscote atreveu-se a recordar-lh que um afogado insepulto era um perigo para a saúde públi ca. “Nada disso, já que está vivo”, foi a réplica de José Ar 74 Buendía, que completou as setenta e duas horas de in-mercuriais quando já o cadáver começava a se arre-numa floração lívida, cujos assovios tênues impregna- casa de um vapor fedorento. Só então permitiu que o n, mas não de qualquer maneira, e sim com as hon-rvadas ao maior benfeitor de Macondo. Foi o primei- e o mais concorrido que se viu no povoado, supe-aoenas um século depois pelo carnaval funerário da Ma-ande. Sepultaram-no numa tumba erigida no centro reno que destinaram ao cemitério, com uma lápide on-escrita a única coisa que se soube dele: MELQUÍADES. 3m-lhe as suas nove noites de velório. No tumulto que no pátio para tomar café, contar piadas e jogar car-ranta teve ocasião de confessar o seu amor a Pietro ~: que poucas semanas antes tinha formalizado o seu com- com Rebeca e estava instalando uma loja de instru-musicais e brinquedos de corda, no mesmo bairro on-getavam os árabes que em outros tempos trocavam bu-por papagaios e que o povo conhecia como a Rua O italiano, cuja cabeça coberta de cachos lustro-tscitava nas mulheres uma irreprimível necessidade de sus- tratou Amaranta como uma menina caprichosa a quem a pena levar muito a sério. — lenho um irmão mais novo — disse a ela. — Vai vir me ajudar na loja. Amaranta sentiu-se humilhada e disse a Pietro Crespi, com -- virulento, que estava disposta a impedir o casamento irmã ainda que tivesse que atravessar na porta o seu cadáver. Impressionou-se tanto o italiano com essa ‘lica ameaça que não resistiu à tentação de comentá-la Kebeca. Foi assim que a viagem de Amaranta, sempre pelas ocupações de Ürsula, se aprontou em menos de semana. Amaranta não opôs resistência, mas quando deu ~beca o beijo de despedida, sussurrou-lhe ao ouvido: — Não tenha ilusões. Ainda que me levem até o fim do eu encontro a maneira de impedir que você se case, que tenha de matá-la. Com a ausência de Úrsula, com a presença invisível de 75 Tu ~ .4 1 1 Melquíades, que continuava o seu perambular sigiloso pelo1 quartos, a casa pareceu enorme e vazia. Rebeca tinha ficado encarregada da ordem doméstica, enquanto a índia se ocupa-va da padaria Ao anoitecer, quando Pietro Crespi chegava precedido de um fresco hálito de alfazema e trazendo sempre um brinquedo de presente, a noiva recebia a sua visita na sala principal, com portas e janelas abertas para estar a salvo de toda suspeita. Era uma precaução desnecessária, porque o ita-liano tinha demonstrado ser tão respeitoso que nem sequer pe-gava na mão da mulher que seria sua esposa antes de um ano. Aquelas visitas foram enchendo a casa de brinquedos prodi-giosos. As bailarinas de corda, as caixas de música, os chim-panzés acrobatas, os cavalos trotadores, os palhaços tambo-rileiros, enfim a rica e assombrosa fauna mecânica que Pietro Crespi trazia, dissiparam a aflição de José Arcadio Buendía pela morte de Melquíades, e o transportaram de novo aos seus antigos tempos de alquimista. Vivia então num paraíso de ani-mais destripados, de mecanismos desfeitos, tentando aperfeiçoá-los com um sistema de movimento contínuo baseado nos princípios do pêndulo. Aureliano, por outro lado, tinha descuidado da oficina para ensinar a pequena Remedios a ler e escrever. No começo, a menina preferia as bonecas ao ho-mem que chegava todas as tardes e que era o culpado de que a separassem dos seus brinquedos para banhá-la e vesti-la e sentá-la na sala para receber a visita. Mas a paciência e a de-voção de Aureliano acabaram por seduzi-la, a ponto de pas-sar muitas horas com ele, estudando o sentido das letras e de-senhando num caderno, com lápis de cor, casinhas com vacas nos currais e sóis redondos com raios amarelos que se escon-diam detrás dos morros. Só Rebeca era infeliz com a ameaça de Amaranta. Co-nhecia o temperamento da irmã, a altivez do seu espírito, e se assustava com a virulência do seu rancor. Passava horas inteiras chupando o dedo no banheiro, aferrando-se a um es-forço extenuante de vontade para não comer terra. Em busca de alívio para a angústia, chamou Pilar Temera para que les-se o seu futuro. Depois de um rosário de imprecisões conven- cionais, Pilar Temera prognosticou: 76 tocê não vai ser feliz enquanto seus pais permanece-pultos. eca estremeceu. Como na lembrança de um sonho, i mesma entrando em casa, muito garota ainda, com i cadeirinha de balanço e um saco de lona cujo con-nca soube. Lembrou-se de um cavalheiro calvo, ves-inho e com o colarinho da camisa fechado com um ouro, que nada tinha que ver com o rei de copas. 1-se de uma mulher muito jovem e muito bela, de mãos perfumadas, que nada tinham em comum com as umáticas do valete de ouros, e que lhe punha flores o para levá-la a passear de tarde por um povoado de des. Não estou entendendo — disse. ir Temera pareceu desconcertada: Nem eu, mas isso é o que dizem as cartas. peca ficou tão preocupada com o enigma que contou é Arcadio Buendía, e este a repreendeu por dar crédi-gnósticos de baralho, mas se deu ao silencioso traba- ~vistar armários e baús, afastar móveis e virar camas )S, procurando o saco dos ossos. Recordava-se de não ~o desde os tempos da reconstrução. Chamou em se-pedreiros e um deles revelou que tinha emparedado m algum quarto, porque lhe atrapalhava o serviço. ie vários dias de auscultações, com a orelha colada des, perceberam o cloc cloc profundo. Perfuraram o ~i estavam os ossos no saco intacto. Nesse mesmo dia, am- no numa tumba sem Lápide, improvisada junto àuíades, e José Arcadio Buendía voltou para casa libe-uma carga que por um momento pesou tanto na sua eia como a lembrança de Prudencio Aguilar. Ao passar inha deu um beijo na testa de Rebeca. Tire as más idéias da cabeça — disse a ela. — Você mizade de Rebeca abriu para Pilar Temera as portas fechadas por tJrsula desde o nascimento de Arcadio. a qualquer hora do dia, como um pé-de-vento, e des-a a sua energia febril nos trabalhos mais pesados. As 77 vezes entrava na oficina e ajudava Arcadio a sensibilizar as lâminas do daguerreótipo com uma eficácia e uma ternura que acabaram por confundi-lo. Aquela mulher o aturdia. O mo-reno da sua pele, o seu cheiro de fumo, a desordem do seu riso no quarto escuro perturbavam a sua atenção e o faziam tropeçar nas coisas. Certa ocasião, Aureliano estava ali, trabalhando em ou-rivesaria, e Pilar Temera se apoiou na mesa para admirar a sua paciente tenacidade. De repente aconteceu. Aureliano per-cebeu que Arcadio estava no quarto escuro antes de levantar a vista e encontrar os olhos de Pilar Temera, cujo pensamen-to era perfeitamente visível, como que exposto à luz do meio-dia. — Bem — disse Aureliano. — Diga o que e. Pilar Temera mordeu os lábios com um sorriso triste. — Você é bom para a guerra — disse. — Onde bota o olho, acerta o chumbo. Aureliano descansou com a comprovação do presságio. Voltou a se concentrar no trabalho, como se nada tivesse acon-tecido, e a sua voz adquiriu uma repousada firmeza. — Eu reconheço — disse. — Terá o meu nome. José Arcadio Buei~día conseguiu por fim o que procura-va: conectou a uma bailarina de corda o mecanismo do reló-gio, e o brinquedo dançou sem interrupção, ao compasso da sua própria música, durante três dias. Aquela descoberta o ex-citou muito mais do que qualquer das suas empresas descabe-ladas. Não voltou a comer. Não voltou a dormir. Sem a vigi-lância e os cuidados de Úrsula, deixou-se arrastar pela sua ima-ginação até um estado de delírio perpétuo do qual não voltou a se recuperar. Passava as noites andando no quarto, pensan-do em voz alta, procurando a maneira de aplicar os princí-pios do pêndulo aos carros de boi, às grades do arado, a tudo o que fosse útil posto em movimento. Cansou-o tanto a febre da insônia que certa madrugada não pôde reconhecer o an-cião de cabeça branca e gestos incertos que entrou no seu quar-to. Era Prudencio Aguilar. Quando por fim o identificou, as-sombrado de que também os mortos envelhecessem, José Ar-cadio Buendía sentiu-se abalado pela nostalgia. “Prudencio”, 78 é que você veio aqui tão longe!” Após muitos ~ morte, era tão imensa a saudade dos vivos, tão pre-necessidade de companhia, tão aterradora a proximi- - outra morte que existia dentro da morte, que Pru-Aguilar tinha acabado por amar o pior dos seus inimi-muito tempo que o estava procurando. Pergunta- mortos de Riohacha, aos mortos que chegavam de Upar, aos que chegavam do pantanal e ninguém ~necia a direção, porque Macondo foi um povoado des-para os mortos até que chegou Melquíades e o mar- — um pontinho negro nos disparatados mapas da mor-Arcadio Buendía conversou com Prudencio Aguilar er. Poucas horas depois, devastado pela vigí-na oficina de Aureliano e perguntou: “Que dia é AurelianO respondeu que era terça-feira. “~ o que eu disse José Arcadio Buendía. “Mas de repente re-que continua sendo segunda-feira, como ontem. Olha olha as paredes, olha as begônias. Hoje também é da-feira.” Acostumado com as suas esquisitices, Aure-lhe deu importância. No dia seguinte, quarta-feira, Arcadio Buendía voltou à oficina. “Isto é uma desgra-“Olha o ar, ouve o zumbido do sol, igualzinho a anteontem. Hoje também é segunda-feira.” Nessa noi-Crespi o encontrou no corredor, chorando o chori-graça dos velhos, chorando por Prudencio Aguilar, r.~lquíades, pelos pais de Rebeca, por seu pai e sua mãe, odos os que podia lembrar e que então estavam sozinhos Deu-lhe de presente um urso de corda que andava duas patas num arame, mas não conseguiu distraí-lo da são. Perguntou-lhe o que tinha acontecido com o pro-ibe expusera dias antes, sobre a possibilidade de cons-uma máquina de pêndulo que servisse ao homem para e ele respondeu que era impossível porque o pêndulo po-levantar qualquer coisa no ar, mas não podia levantar-se próprio. N~ quinta-feira voltou a aparecer com um dolo-bo aspecto de terra arrasada. “A máquina do tempo estra-Iu”, quase soluçou, “e Ürsula e Amaranta tão longe!” Au-piano repreendeu-o como a um menino e ele adotou um ar 79 submisso. Passou seis horas examinando as coisas, tentando encontrar uma diferença do aspecto que tiveram no dia ante-rior, procurando descobrir nelas alguma mudança que reve-lasse o transcurso do tempo. Ficou toda a noite na cama com os olhos abertos, chamando Prudencio Aguilar, Melquíades, todos os mortos, para que viessem compartilhar do seu des-gosto. Mas ninguém acudiu. Na sexta-feira, antes que todos se levantassem, voltou a observar a aparência da natureza, que não teve a menor dúvida de que continuava sendo segunda-feira. Então agarrou a tranca de uma porta e com a violência selvagem da sua força descomunal espedaçou, até transfor mar em poeira, os aparelhos de alquimia, o gabinete de da-guerreotipia, a oficina de ourivesaria, gritando como um en-demoniado num idioma altissonante e fluido, mas completa-mente incompreensível. Dispunha-se a arrasar com o resto -casa, quando Aureliano pediu ajuda aos vizinhos. Foram cessários dez homens para subjugá-lo, quatorze para amarrá-lo, vinte para arrastá-lo até o castanheiro do quintal, onde o deixaram amarrado, ladrando em língua estranha, e deitando espuma verde pela boca. Quando Ursula e Amaranta chega-ram, ainda estava atado pelos pés e pelas mãos ao tronco do castanheiro, ensopado de chuva e num estado de inocência to-tal. Falaram com ele ~ ele olhou para elas sem reconhecê-las, e lhes disse alguma coisa incompreensível. Ursula lhe soltou as munhecas e os tornozelos, ulcerados pela pressao das cor-das, e o deixou amarrado apenas pela cintura. Mais tarde cons-truíram uma pequena coberta de sapé para protegê-lo do e da chuva. 80 ‘E ~RELIANO Buendía e Remedios Moscote casaram-se num ~ingo dc março, diante do altar que o Padre Nicanor Rey-pfez construir na sala de visitas. Foi o clímax de quatro se-~nas de sobressaltos na casa dos Moscote, pois a pequena ~iedios chegara à puberdade antes de superar os hábitos in-ptis. Apesar da mãe tê-la instruído sobre as mudanças da ~~lescência, numa tarde de fevereiro, irrompeu aos gritos de trine na sala onde as irmãs conversavam com Aureliano, e bstrou-lhes a calcinha manchada de uma pasta cor de cho-Iate. Marcou-se o prazo de um mês para o casamento. Mal mive tempo de ensiná-la a se lavar e se vestir sozinha, e a tender dos assuntos elementares de um lar. Fizeram-na uri-r em tijolos quentes, para corrigir-lhe o hábito de molhar 81 1) 1 a cama. Deu trabalho convencê-la da inviolabilidade do se-gredo conjugal, porque Remedios estava tão aturdida e ao mes-mo tempo tão maravilhada com a revelação que queria co-mentar com todo mundo os pormenores da noite de núpcias. Foi um esforço extenuante, mas na data prevista para a ceri-mônia a menina era tão experimentada nas coisas do mundo quanto qualquer das sua irmãs. O Sr. Apolinar Moscote levou- a de braço dado pela rua enfeitada de flores e guirlandas, en-tre o estampido dos foguetes e a música de várias bandas, e ela cumprimentava com a mão e agradecia com um sorriso aos que das janelas lhe desejavam boa sorte. Aureliano, ves-tido de fazenda negra, com as mesmas botinas de verniz com argolas metálicas que haveria de usar poucos anos depois diante do pelotão de fuzilamento, estava de uma palidez intensa e com um bolo duro na garganta, quando recebeu a noiva na porta da casa e a levou ao altar. Ela se comportou com tanta naturalidade, com tanta discrição, que não perdeu a compos-tura nem sequer quando Aureliano deixou cair a aliança ao tentar colocá-la no seu dedo. No meio do burburinho e prin-cípio de confusão dos convidados, ela manteve levantado o braço com a mitene de renda e permaneceu com o anular es-tendido até que o seq noivo conseguiu parar a aliança com a botina, para que não continuasse rolando até a porta, e vol-tou ruborizado ao altar. A mãe e as irmãs sofreram tanto com o medo de que a menina incorresse em alguma falta durante a cerimônia que no final foram elas que cometeram a imper-tinência de pegá-la no colo para dar-lhe um beijo. Desde aquele dia revelou-se o senso de responsabilidade, a graça natural, o calmo domínio que sempre haveria de ter Remedios ante as circunstâncias adversas. Foi ela quem, por sua própria inicia-tiva, separou a melhor porção que cortou do bolo de noiva e a levou num prato com um garfo para José Arcadio Buen-dia. Amarrado ao tronco do castanheiro, encolhido num ban-quinho de madeira sob a coberta de sapé, o enorme ancião desbotado pelo sol e pela chuva teve um vago sorriso de grati-dão e comeu o bolo com os dedos, mastigando um salmo inin- teligível. A única pessoa infeliz naquela celebração estrepito-sa, que se prolongou até o amanhecer de segunda-feira, foi 82 ~beca Buendía. Era a sua festa frustrada. Pelo arranjo de mia, o seu casamento se devia celebrar na mesma data, mas etro Crespi recebera na sexta-feira uma carta com a notícia morte iminente de sua mãe. O casamento foi adiado. Pie-Crespi seguiu para a capital da província uma hora depois receber a carta, e no caminho cruzou com a mãe, que che-1 pontualmente na noite de sábado e cantou no casamento Aureliano a ária triste que tinha preparado para o casa-.ento do filho. Pietro Crespi regressou à meia-noite do do-ingo para varrer as cinzas da festa, depois de ter arrebenta-cinco cavalos no caminho, tentando chegar a tempo para casamento. Nunca se averiguou quem escrevera a carta. Ator- por Ursula, Amaranta chorou de indignação e ju-inocência diante do altar que os carpinteiros não tinham anda acabado de desarmar. O Padre Nicanor Reyna — que o Sr. Apolinar Moscote .a trazido do pantanal para que oficiasse o casamento —~ra um ancião endurecido pela ingratidão do ofício. Tinha a ~le triste, quase colada aos ossos, e o ventre pronunciado e e uma expressão de anjo velho que era mais de ino-‘eia que de bondade. Tinha o propósito de voltar à sua pa-logo depois do casamento, mas se espantou com a ari-~z dos habitantes de Macondo, que prosperavam no escân- • ~lo, sujeitos à lei natural, sem batizar os filhos nem santifi-os feriados. Pensando que em nenhuma terra fazia tanta g. alta a semente de Deus, decidiu ficar mais uma semana, para xistianizar circuncisos e gentios, legalizar concubinários e sa-mtar moribundos. Mas ninguém lhe deu importância. -lhe que durante muitos anos tinham ficado sem ~, arranjando os negócios da alma diretamente com Deus, e haviam perdido a malícia do pecado mortal. Cansado de pre-gar no deserto, o Padre Nicanor se dispôs e empreender a cons-trução de um templo, o maior do mundo, com santos em ta-manho natural e vidros de cores nas paredes, para que viesse gente até de Roma honrar a Deus no centro da impiedacle. An-dava por todas as partes pedindo esmolas com um pratinho de cobre. Davam-lhe muito, mas ele queria mais, porque o templo deveria ter um sino cujo clamor fizesse boiar os afo-83 1 .4 gados. Suplicou tanto que perdeu a voz. Seus ossos começa-ram a se encher de ruídos. Num sábado, não tendo recolhido nem sequer o valor das portas, deixou-se confundir pelo de-sespero. Improvisou um altar na praça e, no domingo, per-correu o povoado com uma campainha, como nos tempos da insônia, convocando para a missa campal. Muitos foram por curiosidade. Outros por nostalgia. Outros para que Deus não fosse tomar como ofensa pessoal o desprezo pelo seu inter-mediário. De modo que às oito da manhã estava metade do povo na praça, onde o Padre Nicanor cantou os evangelhos com a voz quebrada pela súplica. No fim, quando os assis-tentes começaram a debandar, levantou os braços em sinal de atenção. — Um momento — disse. — Agora vamos presenciar uma prova irrefutável do infinito poder de Deus. O rapaz que tinha ajudado a missa levou-lhe unia xícara de chocolate espesso e fumegante que ele tomou sem respirar. Depois limpou os lábios com um lenço que tirou da manga, estendeu os braços e fechou os olhos. Então o Padre Nicanor se elevou doze centímetros do nível do chão. Foi um recurso convincente. Andou vários dias de casa em casa, repetindo a prova da levitação mediante o estímulo do chocolate, enquanto o coroinha recolhia tinto dinheiro numa urna que em menos de um mês se iniciou a construção do templo. Ninguém pôs em dúvida a origem divina da demonstração, salvo José Ar-cadio Buendía, que observou sem se comover o bando de gente que certa manhã se reuniu sob o castanheiro para assistir mais uma vez à revelação. Mal se endireitou um pouco no banqui-flhç e sacudiu os ombros quando o Padre Nicanor começou a se levantar do chão junto com a cadeira em que estava sentado. — Hoc est simplicisstmum: — disse José Arcadio Buen-dia — homo iste statum quartum materiae invenit. O Padre Nicanor levantou a mão, e as quatro pernas da cadeira pousaram em terra ao mesmo tempo. — Nego — disse. — Factum hoc existentiam Dei pro bat sine dubio. Foi assim que se soube que era latim a endiabrada gíria 84 José Arcadio Buendía. O Padre Nicanor aproveitou a cir-~stância de ter sido a única pessoa que pudera se comum-com ele para tratar de infundir a fé no seu cérebro trans-nado. Todas as tardes se sentava junto ao castanheiro, pre-Lndo em latim, mas José Arcadio Buendía se aferrou em admitir meandros retóricos nem transmutações de cio- - e exigiu como única prova o daguerreótipo de Deus. Nicanor levou-lhe então medalhas e figurinhas e até reprodução da fazenda da Verônica, mas José Arcadio endía repeliu-os por serem objetos artesanais sem funda-nto científico. Era tão teimoso que o Padre Nicanor renun-aos seus propósitos de evangelização e continuou a visitá-apenas por sentimentos humanitários. Mas então foi José Buendía quem tomou a iniciativa e tentou quebran-‘a te ao sacerdote com artimanhas racionalistas. Certa oca-em que o Padre Nicanor levou ao castanheiro um tabu-e uma caixa de pedras para convidá-lo a jogar damas, Arcadio Buendía não aceitou, segundo disse, porque nun-nôde entender o sentido de uma contenda entre dois adver-s que estavam de acordo nos princípios. O Padre Nica- - , que nunca tinha encarado desse modo o jogo de damas, pôde voltar a jogar. Cada vez mais assombrado com a e José Arcadio Buendía, perguntou-lhe como era pos- que o mantivessem amarrado numa árvore. — Hoc est simplicissimum: — respondeu ele — porque tou louco. Desde então, preocupado com a sua própria fé, o padre voltou a visitá-lo e se dedicou inteiramente a apressar a )nstrução do templo. Rebeca sentiu renascer a esperança. O futuro estava condicionado ao término da obra, desde um mingo em que o Padre Nicanor almoçava com eles e toda sentada na mesa falou da solenidade e do esplendor ~ teriam os atos religiosos quando se construísse o templo. mais afortunada será Rebeca”, disse Amaranta. E como eca não entendeu o que ela estava querendo dizer, explicou-com um sorriso inocente: — Caberá a você inaugurar a igreja com o casamento. Rebeca tratou de se antecipar a qualquer comentário. No 85 passo em que ia a construção, o templo não estaria termina-do antes de dez anos. O Padre Nicanor não concordou: a cres-cente generosidade dos fiéis permitia fazer cálculos mais oti-mistas. Diante da surda indi~nação de Rebeca, que não con- seguiu acabar de almoçar, Ursula celebrou a idéia de Ama-ranta e contribuiu com um acréscimo considerável para que se apressassem os trabalhos. O Padre Nicanor considerou qu com outro auxílio como esse o templo estaria pronto em três anos. A partir daí Rebeca não voltou a dirigir a palavra a Ama-ranta, convencida de que o seu palpite não tinha tido a ino-cência que ela soubera aparentar. “Era o que eu podia fazer de menos grave”, replicou Amaranta na violenta discussão qu tiveram aquela noite. “Assim não vou ter que te matar nest próximos três anos.” Rebeca aceitou o desafio. Quando Pietro Crespi soube do novo adiamento, sofreu uma crise de desilusão, mas Rebeca lhe deu uma prova defi-nitiva de lealdade. “A gente foge quando você quiser”, disse. Pietro Crespi, entretanto, não era homem de aventuras. Ca-recia do temperamento impulsivo da sua noiva e considerava o respeito à palavra empenhada como um capital que não se podia desbaratar. Então Rebeca recorreu a métodos mais au- dazes. Um vento misterioso apagava as luzes da sala de visi-tas e Úrsula surpreendia os noivos se beijando no escuro. Pie-tro Crespi lhe dava explicações atrapalhadas sobre a má qua-lidade das modernas lâmpadas de alcatrão e até ajudava a ins-talar na sala sistemas de iluminação mais seguros. Mas outra vez falhava o combustível ou entupiam as mechas, e Ursula encontrava Rebeca sentada nos joelhos do noivo. Acabou por não aceitar nenhuma explicação. Depositou na índia a respon- sabilidade da padaria e se sentou numa cadeira de balanço para vigiar a visita do noivo, disposta a não se deixar vencer por manobras que já eram velhas na sua juventude. “Coitada de mamãe”, dizia Rebeca com sarcástica indignação, vendo Ur-sula bocejar de sono nas visitas. “Quando morrer vai sair pe-nando nesta cadeira de balanço.” Ao fim de três meses de amo-res vigiados, amolado com a lentidão da obra que passara a inspecionar todos os dias, Pietro Crespi resolveu dar ao Pa-dre Nicanor o dinheiro que faltava para terminar o templo. 86 Iaranta não se impacientou. Enquanto conversava com as ‘4 igas que todas as tardes iam bordar ou tricotar na varan-tratava de conceber novas artimanhas. Um erro de cálcu-~otou a perder a que considerou mais eficaz: tirar as boli-~s de naftalina que Rebeca tinha colocado no seu vestido noiva antes de guardá-lo na cômoda do quarto. Fé-lo quan-faltavam menos de dois meses para o término do templo. .s Rebeca estava tão impaciente diante da proximidade do amento que quis preparar o vestido com mais antecipação que havia previsto Amaranta. Ao abrir a cômoda e desem-ilhar primeiro os papéis e depois o pano protetor, encon-u o cetim do vestido e a renda do véu e até a coroa de flor laranjeira pulverizados pelas traças. Embora estivesse cer Ie ter colocado no embrulho dois punhados de bolinhas de ~alina, o desastre parecia tão acidental que não se atreveu ulpar Amaranta. Faltava menos de um mês para o casa-rito, mas Amparo Moscote se comprometeu a costurar um io vestido em uma semana. Amaranta sentiu-se desfalecer iuelc meio- dia chuvoso em que Amparo entrou em casa en-ta numa espumarada de renda, para que Rebeca fizesse a ma prova do vestido. Perdeu a voz e um fio de suor gela-desceu pelo leito da sua espinha dorsal. Durante longos me-tinha tremido de pavor esperando aquela hora, porque se concebia o obstáculo definitivo para o casamento de Re- = a, estava certa de que no último instante, quando tivessem iado todos os recursos da sua imaginação, teria coragem mvenená-la. Nessa tarde, enquanto Rebeca sufocava de ca-dentro da couraça de cetim que Amparo Moscote ia for-rido no seu corpo com mil alfinetes e uma paciência infini-Amaranta errou várias vezes os pontos do croché e espe-o dedo na agulha, mas decidiu com terrível frieza que a a seria a última sexta-feira antes do casamento, e a manei-;eria uma dose de ópio no café. Um obstáculo maior, tão inevitável quanto imprevisto, igou-os a um novo e indefinido adiamento. Uma semana es da data marcada para o casamento, a pequena Reme-s acordou à meia-noite, ensopada por um caldo quente que ‘lodira nas suas entranhas com uma espécie de arroto ras-1 87 gante, e morreu três dias depois, envenenada pelo próprio san-gue, com um par de gêmeos atravessados no ventre. Amaran-ta sofreu uma crise de consciência. Tinha suplicado a Deus com tanto fervor que algo de pavoroso acontecesse para não ter de envenenar Rebeca que se sentiu culpada pela morte de Remedios. Não era esse o obstáculo por que tinha suplicado tanto. Remedios tinha levado para a casa um sopro de ale-gria. Instalara-se com o marido perto da oficina numa alcova que decorou com as bonecas e brinquedos da sua infância re-cente, e a sua alegre vitalidade transbordava as quatro pare-des da alcova e passava como uma ventania de boa saúde pe-lo corredor das begônias. Cantava desde o amanhecer. Foi ela a única pessoa que se atreveu a servir de mediadora nas dis-cussões entre Rebeca e Amaranta. Tomou a seu cargo a dis-pendiosa tarefa de cuidar de José Arcadio Buendía. Levava-lhe os alimentos, assistia-o nas suas necessidades cotidianas, lavava-o com sabão e bucha, mantinha limpos de piolhos e lêndeas os cabelos e a barba, conservava em bom estado o te-lhadinho de sapé e o reforçava com lonas impermeáveis nos tempos de tempestades. Nos últimos meses tinha conseguido se comunicar com ele por frases em latim rudimentar. Quan-do nasceu o filho de Aureliano e Pilar Temera e foi levado para a casa e batizado em cerimônia íntima com o nome de Aureliano José, Remedios decidiu que fosse considerado co-mo seu filho mais velho. Seu instinto maternal surpreendeu Ursula. Aureliano, por outro lado, encontrou nela a justifi-cativa que lhe faltava para viver. Trabalhava todo o dia na oficina e Remedios lhe levava na metade da manhã uma ca-neca de café sem açúcar. Ambos visitavam todas as noites os Moscote. Aureliano jogava com o sogro intermináveis das de dominó, enquanto Remedios conversava com as irmãs ou tratava com a mãe de assuntos de gente grande. O vínculo com os Buendía consolidou no povoado a autoridade do Sr. Apolinar Moscote. Em freqüentes viagens à capital da pro-víncia, conseguiu que o governo construísse uma escola que a administrasse Arcadio, que tinha herdado o entusias-mo didático do avô. Por meio da persuasão, convenceu a maio-ria dos habitantes de que suas casas deviam ser pintadas de 88 1 para a festa da independência nacional. A instâncias do Ire Nicanor, ordenou a mudança da taberna de Catarino a uma rua afastada e fechou vários lugares de escândalo prosperavam no centro da povoação. Certa vez regressou i seis guardas armados de fuzis a quem encomendou a ma-enção da ordem, sem que ninguém se lembrasse do com-misso original de não ter gente armada no povoado. Au-ano se comprazia com a eficácia do sogro. “Você vai ficar gordo quanto ele”, diziam os amigos. Mas o sedentaris- ,que acentuou as suas maçãs do rosto e concentrou o fui-dos seus olhos, não aumentou o seu peso nem alterou a cimônia do seu temperamento, e pelo contrário endureceu seus lábios a linha reta da meditação solitária e da deci-implacável. Tão profundo era o carinho que ele e sua es-a tinham conseguido despertar na família de ambos que, indo Remedios anunciou que ia ter um filho, até Rebeca maranta fizeram uma trégua para tricotar com lã azul, para aso de vir um menino, e com lã rosa, para o caso de ser ~ina. Foi ela a última pessoa em quem Arcadio pensou, pou-anos depois, diante do pelotão de fuzilamento. Ursula ordenou um luto de portas e janelas fechadas, sem rada nem saída para ninguém a não ser para assuntos in-pensáveis; proibiu falar em voz alta durante um ano, e pôs aguerreótipo de Remedios no lugar em que se velou o ca-rer, com uma fita negra em diagonal e uma lâmpada de azei-icesa para sempre. As gerações futuras, que nunca deixa-~ apagar a lâmpada, haveriam de se desconcertar diante da-~la menina de saia pregueada, botinhas brancas e laço de andi na cabeça, que não conseguiam fazer coincidir com nagem acadêmica de uma bisavó. Amaranta tomou conta Aureliano José. Adotou-o como um filho que haveria de npartilhar da sua solidão e aliviá-la do ópio involuntário jogaram as suas súplicas desatinadas no café de Reme-s. Pietro Crespi entrava na ponta dos pés ao anoitecer, com .a fita negra no chapéu, e fazia uma visita silenciosa a uma beca que parecia perder o sangue dentro do vestido negro n mangas até os punhos. Teria sido tão irreverente a sim-s idéia de pensar em nova data para o casamento que o noi-89 vado se converteu numa relação eterna, um amor de cansaço em que ninguém voltou a pensar, como se os apaixonados que em outros tempos estragavam as lâmpadas para se beijar ti-vessem sido abandonados ao arbítrio da morte. Perdido o ru-mo, completamente desmoralizada, Rebeca voltou a comer terra. De repente — quando o luto existia há tanto tempo que já se tinham retomado as sessões de ponto de cruz — alguém empurrou a porta da rua às duas da tarde, no silêncio mortal do calor, e as colunas estremeceram com tal força nos cimen-tos que Amaranta e suas amigas que bordavam na varanda, Rebeca que chupava o dedo no quarto, Ursula na cozinha, Aureliano na oficina e até José Arcadio Buendía sob o casta-nheiro solitário tiveram a impressão de que um tremor de ter-ra estava desmontando a casa. Chegava um homem descomu-nal. Os seus ombros quadrados mal cabiam nas portas. Tra-zia uma medalhinha da Virgem dos Remedios pendurada no pescoço de búfalo, os braços e o peito completamente borda-dos de tatuagens enigmáticas, e na munheca direita o aperta-do bracelete de cobre dos nhfíos-en-cruz. * Tinha o couro cur-tido pelo sal da intempérie, o cabelo curto e aparado como a crina de uma mula, as mandíbulas férreas e o olhar triste. Usava um cinturão duas vezes mais largo que a barrigueira de um cavalo, botas com polainas e esporas, os saltos refor-çados com chapinhas de metal, e a sua presença dava a im-pressão trepidante de um abalo sísmico. Atravessou a sala de visitas e a sala de estar, carregando na mão uns alforjes meio arrebentados, e apareceu como um trovão na varanda das be-gônias, onde Amaranta e suas amigas estavam paralisadas, com as agulhas no ar. “Olá”, disse a elas com a voz cansada, e atirou os alforjes sobre a mesa de trabalho e passou de largo para o fundo da casa. “Olá”, disse a ele a assustada Rebeca, que o viu passar pela porta do quarto. “Olá”, disse a Aure-liano, que estava com os cinco sentidos alerta na mesa de ou- *Explicação do autor à tradutora: “Segundo uma lenda popular, alguns homens fa- zem abrir o pulso e ali meter uma pequena cruz especial fechando-o depois com uma pulseira de ferro ou cobre. Isto, segundo a lenda, lhes dá uma força extraordinária.” 90 Não se entreteve com ninguém. Foi diretamente pa-e ali parou pela primeira vez, ao fim de uma via- .4 o tinha começado do outro lado do mundo. “Olá”, Ursula ficou uma fração de segundo com a boca aber-nos olhos, lançou um grito e pulou no pescoço itando e chorando de alegria. Era José Arcadio. Volta- pobre como tinha ido, a ponto de Ürsula ter de lhe dar para pagar o aluguel do cavalo. Falava o espanhol com gíria de marinheiros. Perguntaram-lhe onde ‘~ estado, e respondeu: “Por aí.” Pendurou a rede no quar-e lhe designaram e dormiu três dias. Quando acordou, de tomar dezesseis ovos crus, saiu diretamente para de Catarino, onde a sua corpulência monumental um pânico de curiosidade entre as mulheres. Orde-e aguardente para todos, por sua conta. Fez apostas de braço com cinco homens ao mesmo tempo. “E ‘,diziam, ao se convencerem de que não consegui- mover-lhe o braço. “Tem niflos-en-cruz. “Catarino, que acreditava em artifícios de força, apostou doze pesos que movia o balcão. José Arcadio arrancou-o do lugar, ~ equilibrando-o sobre a cabeça e o jogou na rua. necessários onze homens para pó-lo pra dentro de vol- - calor da festa, exibiu sobre o balcão a sua masculini-‘erossímil, inteiramente tatuada num emaranhado azul de letreiros em vários idiomas. Às mulheres que com a sua cobiça, perguntou quem pagava mais. tinha mais ofereceu vinte pesos. Então ele propôs se e todas, a dez pesos cada número. Era um preço exor-porque a mulher mais solicitada ganhava oito pesos noite, mas todas aceitaram. Escreveram os seus nomes em papeizinhos que puseram num chapéu, e cada mu-tirou um. Quando só faltava tirar dois papeizinhos, -se a quem correspondiam. — (mco pesos a mais cada uma — propôs José Arcadio e me reparto entre as duas. Disso vivia. Deu sessenta e cinco vezes a volta ao mun- metido numa tripulação de marinheiros apátridas. As mu-res que se deitaram com ele naquela noite, na taberna de 91 Catarino, trouxeram-no inteiramente nu ao salão de baile, para que vissem que não tinha um milímetro do corpo sem tatuar,, na frente e nas costas, e desde o pescoço até os dedos dos pés. Não conseguia se integrar na família. Dormia o dia inteiro e passava a noite no bairro de tolerância, fazendo apostas de força. Nas escassas ocasiões em que Úrsula pôde sentá-lo àmesa, demonstrou uma simpatia irradiante, sobretudo quan-do contava as suas aventuras em países longínquos. Tinha nau- fragado e permanecido duas semanas à deriva no mar do Ja-pão, alimentando-se com o corpo de um companheiro que su-cumbiu de insolação, cuja carne salgada e tornada a salgar e cozinhada ao sol tinha um sabor granuloso e doce. Num meio-dia radiante do golfo de Bengala, o seu navio vencera um dragão do mar em cujo ventre encontraram o elmo, as fi-velas e as armas de um cruzado. Vira no Caribe o fantasma do navio pirata de Victor Hugues, com o velame solto pelos ventos da morte, os mastros carcomidos pelas baratas do mar, e perdido para sempre da rota de Guadalupe. Ursula chorava na mesa como se estivesse lendo as cartas que nunca chega-ram, nas quais José Arcadio relatava as suas façanhas e des-venturas. “E tanto lugar aqui, meu filho”, soluçava. “E tan-ta comida jogada aos4orcos!” Mas no fundo não podia con-ceber que o rapaz que os ciganos levaram fosse o mesmo alar-ve que comia meio leitão no almoço e cujas ventosidades mur-chavam as flores. Algo de semelhante acontecia com o resto da família. Amaranta não podia dissimular a repugnância que lhe produziam na mesa os seus arrotos bestiais. Arcadio, que nunca conheceu o segredo da sua filiação, mal respondia as perguntas que ele lhe fazia, com o propósito evidente de con- quistar o seu afeto. Aureliano tentou reviver os tempos em que dormiam no mesmo quarto, procurou restaurar a cum-plicidade da infância, mas José Arcadio se esqueceu de tudo porque a vida do mar lhe saturara a memória com coisas de-mais para recordar. Só Rebeca sucumbiu ao primeiro impac-to. Na tarde em que o viu passar diante do seu quarto, pen-sou que Pietro Crespi era um almofadinha magricela junto da- quele protomacho cuja respiração vulcânica se percebia em toda a casa. Procurava estar perto dele sob qualquer pretex. 92 Certa ocasião, José Arcadio olhou para o seu corpo com ção descarada e disse a ela: “Maninha, você é muito mu-~ .“ Rebeca perdeu o domínio de si mesma. Voltou a co-terra e cal das paredes com a avidez dos outros tempos upou o dedo com tanta ansiedade que formou um calo olegar. Vomitou um líquido verde com sanguessugas mor-Passou noites em vigília, tiritando de febre, lutando con-~ o delírio, esperando até que a casa trepidasse com o re-so de José Arcadio ao amanhecer. Uma tarde, quando to-dormiam a sesta, não agüentou mais e foi ao seu quarto. ontrou-o de cuecas, acordado, estendido na rede que pen-~ ara nos ganchos com os cabos de amarrar navio. ressionou-a tanto a sua enorme nudez sarapintada que teve ~peto de retroceder. “Perdão”, se desculpou. “Eu não sabia você estava aqui.” Mas abaixou o tom de vóz para não ~rdar ninguém. “Vem cá”, disse ele. Rebeca obedeceu. teve-se junto da rede, suando gelo, sentindo que se forma-n nós nas tripas enquanto José Arcadio lhe acariciava os nozelos com a polpa dos dedos, e depois a barriga das per-e depois as coxas, murmurando: “Ah, maninha; ah ma-lia.” Ela teve que fazer um esforço sobrenatural para não rrer quando uma potência ciclônica, assombrosamente re-ada, levantou-a pela ‘zintura e despojou-a da sua intimida-com três patadas, e esquartejou-a como a um passarinho. nseguiu dar graças a Deus por ter nascido, antes de perder onsciência no prazer inconcebível daquela dor insuportá-chapinhando no lago fumegante da rede que absorveu co-i um mata-borrão a explosão do seu sangue. Três dias depois, casaram-se na missa das cinco. José Ar-Iio tinha ido no dia anterior à loja de Pietro Crespi. contrara-o dando uma aula de cítara e nem ao menos o cha-u de lado para falar. “Caso-me com Rebeca”, disse. Pie-Crespi ficou pálido, entregou a citara a um dos discípulos eu a aula por encerrada. Quando ficaram sozinhos no sa-abarrotado de instrumentos musicais e brinquedos de cor-Pietro Crespi disse: — Ela é sua irmã. — Não me importa — respondeu José Arcadio. 93 Pietro Crespi enxugou a testa com um lenço impregnado de alfazema. — Ë contranatura — explicou — e, além disso, a lei proibe. José Arcadio se impacientou, não tanto com a argumen-tação como com a palidez de Pietro Crespi. — Estou cagando pra essa tal de natura — disse. — E ve-nho dizer isso a você para que não se dê o trabalho de ir per-guntar nada a Rebeca. Mas o seu comportamento brutal se quebrantou, ao ver que os olhos de Pietro Crespi se umedeciam. — Agora — disse a ele em outro tom — se você gosta éda família, ainda lhe resta Amaranta. O Padre Nicanor revelou, no sermão de domingo, que José Arcadio e Rebeca não eram irmãos. Ursula não perdoou nunca o que considerou como uma inconcebível falta de res-peito, e quando voltaram da igreja proibiu aos recem-casados de voltar a pisar na sua casa. Para ela, era como se estivessem mortos. De modo que alugaram uma casinha defronte do ce-mitério e nela se instalaram sem mais mobília que a rede de José Arcadio. Na noite de núpcias, Rebeca teve o pé mordido por um escorpião que se metera nas suas pantufas. Ficou com a língua dormente, mas isso não impediu que passassem uma lua-de-mel escandalosa. Os vizinhos se assustavam com os gri-tos que acordavam o bairro inteiro até oito vezes por noite, e até três vezes durante a sesta, e rogavam para que uma pai-xão tão desaforada não fosse perturbar a paz dos mortos. Aureliano foi o único que se preocupou com eles. Comprou-lhes alguns móveis e lhes proporcionou dinheiro, até que José Arcadio retomou o sentido da realidade e começou a trabalhar as terras de ninguém que terminavam no quintal da casa. Amaranta, pelo contrário, não conseguiu superar nun-ca o seu rancor contra Rebeca, embora a vida lhe oferecesse uma satisfação com que não havia sonhado: por iniciativa de Úrsula, que não sabia como reparar a vergonha, Pietro Cres-pi continuou almoçando às terças-feiras na sua casa, superior ao fracasso, com uma serena dignidade. Conservou a fita preta no chapéu como um sinal de apreço à família, e se comprazia em demonstrar o seu afeto a Ursula, levando-lhe presentes exó-94 portuguesas, geléia de rosas turcas, e, em certa • um primoroso xale oriental. Amaranta o atendia com diligência. Adivinhava os seus gostos, Lva-lhe os fios descosidos dos punhos da camisa, e bor-dúzia de lenços com as suas iniciais, para o dia do ~ersário. As terças-feiras, depois do almoço, enquan-rdava na varanda, ele lhe fazia uma alegre compa-Pietro Crespi, aquela mulher a quem sempre con-a e tratara como uma menina foi uma revelação. Em- tipo carecesse de graça, possuia uma refinada sen-para apreciar as coisas do mundo, e uma ternura Numa terça-feira, quando ninguém duvidava de que ~ ou mais tarde teria de acontecer, Pietro Crespi pediu- • se casasse com ele. Ela não interrompeu o trabalho. i que passasse o quente rubor das orelhas e imprimiu a serena ênfase de maturidade. ‘- Claro que sim, Crespi — disse — mas quando a gente melhor. Não convém precipitar as coisas. ficou confusa. Apesar do apreço que sentia por ‘respi, não conseguia discernir se a sua decisão era boa ponto de vista moral, depois de prolongado e rui-DiYado com Rebeca. Mas acabou por aceitá-lo como ) sem classificação, porque ninguém compartilhou das idas. Aureliano, que era o homem da casa, confundiu-mais, com a sua enigmática e conclusiva opinião: Não é hora de andar pensando em casamentos. opinião, que Úrsula só compreendeu alguns me-“, era a única que ele podia expressar sinceramente iento, não só no que diz respeito ao casamento, mas - a qualquer assunto que não fosse a guerra. Ele mes-nte do pelotão de fuzilamento, não haveria de enten-to bem como se fora encadeando a série de sutis mas ~‘eis casualidades que o tinham levado a esse ponto. • de Remedios não lhe produzira a comoção que te-mais um surdo sentimento de raiva que paulatina- se dissolveu numa frustração solitária e passiva, seme-que experimentara na época em que estava resignado • sem mulher. Voltou a afundar-se no trabalho, mas con-95 -4 1 servou o costume de jogar dominó com o sogro. Numa casa amordaçada pelo luto, as conversas noturnas consolidaram a amizade dos dois homens. “Case outra vez, Aurelito”, dizia-lhe o sogro. “Tenho seis filhas para você escolher.” Certa oca-sião, às vésperas das eleições, o Sr. Apolinar Moscote voltou de uma das suas freqüentes viagens preocupado com a situa-ção política do país. Os liberais estavam decididos a se lançar à guerra. Como Aurelíano tinha nessa época noções muito con-fusas das diferenças entre conservadores e liberais, o sogro lhe dava lições esquemáticas. Os liberais, dizia, eram maçons; gente de má índole, partidária de enforcar os padres, de instituir o casamento civil e o divórcio, de reconhecer iguais direitos aos filhos naturais e aos legítimos, e de despedaçar o país num sistema federal que despojaria de poderes a autoridade supre. ma. Os conservadores, ao contrário, que tinham recebido o poder diretamente de Deus, pugnavam pela estabilidade da or-dem pública e pela moral familiar; eram os defensores da fé de Cristo, do princípio de autoridade, e não estavam dispos-tos a permitir que o país fosse esquartejado em entidades au- tônomas. Por sentimentos humanitários, Aureliano simpati-zava com a atitude liberal, no que se refere aos direitos dos filhos naturais, mas, de qualquer maneira, não entendia co-mo se chegava ao extremo de fazer uma guerra por coisas que não se podiam tocar com as mãos. Pareceu-lhe um despropâ-sito que o seu sogro fizesse vir para as eleições seis soldados armados com fuzis, sob o comando de um sargento, num po- voado sem paixões políticas. Não só chegaram, mas foram até de casa em casa, confiscando armas de caça, facões e até fa-cas de cozinha, antes de repartir entre os homens maiores de vinte e um anos as cédulas azuis, com os nomes dos candida-tos conservadores, e as cédulas vermelhas, com os nomes dos candidatos liberais. Na véspera das eleições, o próprio Sr. Apo-linar Moscote leu uma ordem que proibia, desde a meia-noite de sábado, e por quarenta e oito horas, a venda de bebidas alcoólicas e a reunião de mais de três pessoas que não fossem da mesma família. As eleições transcorreram sem incidentes. Desde as oito da manhã de domingo, instalou-se na praça a urna de madeira guardada pelos seis soldados. Votou-se com 96 ira liberdade, como pôde comprovar o próprio Aurelia-que esteve quase o dia inteiro com o sogro, vigiando para ninguém votasse mais de uma vez. As quatro da tarde, rufar de tambor na praça anunciou o término da jornada, ~r. Apolinar Moscote selou a urna com uma etiqueta atra-ada pela sua assinatura. Nessa noite, enquanto jogava do-ó com Aureliano, ordenou ao sargento rasgar a etiqueta ~ contar os votos. Havia quase tantas cédulas vermelhas nto azuis, mas o sargento só deixou dez vermelhas e com-ou a diferença com azuis. Depois voltaram a selar a urna i uma etiqueta nova e no dia seguinte cedo levaram-na pa-t capital da província. “Os liberais irão à guerra”, disse eliano. O Sr. Apolinar não abandonou as suas pedras de ninó. “Se você está dizendo isso por causa da troca das ulas, não irão”, disse. “Sempre se deixam algumas ver-bas para não haver reclamação.” Aureliano compreendeu Iesvantagens da oposição. “Se eu fosse liberal”, disse, “iria ierra por causa do negócio das cédulas.” O sogro o olhou cima dos óculos. — Ah, Aureito — disse — se você fosse liberal, ainda que ~e meu genro, não teria visto a troca das cédulas. O que na verdade causou indignação no povoado não foi ~sultado das eleições, mas o fato de os soldados não terem ‘olvido as armas. Um grupo de mulheres falou com Aure-to para que conseguisse do sogro a devolução das facas de inha. O Sr. Apolinar Moscote lhe explicou, muito em par-~lar, que os soldados tinham levado as armas confiscadas no prova de que os liberais estavam se preparando para a rra. Ficou alarmado com o cinismo da declaração. Não fez ihum comentário, mas certa noite em que Gerineldo Már-~z e Magnífico Visbal falavam com outros amigos do mci-ite das facas, perguntaram-lhe se era liberal ou conserva-r. Aureliano não vacilou: — Se fosse preciso de alguma coisa, eu seria liberal — disse porque os conservadores são uns trapaceiros. No dia seguinte, por insistência dos amigos, foi visitar o utor Alirio Noguera para que o curasse de uma pretensa no figado. Não sabia sequer o sentido da patranha. O Dou- 97 tor Alirio Noguera chegara a Macondo poucos anos antes, com uma maleta de comprimidos sem sabor e uma divisa médica que não convenceu ninguém: “Urna doença cura a outra.” Na verdade era um farsante. Detrás da sua inocente fachada de médico sem prestígio, escondia-se um terrorista que tapa-va com polainas de meia-perna as cicatrizes que deixaram nos seus tornozelos cinco anos de cadeia. Capturado na primeira aventura federalista, conseguiu fugir para Curaçao disfarça-do na roupa que mais detestava neste mundo: uma batina. Ao fim de um prolongado desterro, enganado pelas exaltadas no-tícias que os exilados de todo o Caribe traziam a Curaçao, em-barcou numa escuna de contrabandistas e apareceu em Rio-hacha com os vidrinhos de comprimidos que não eram mais que açúcar refinado, e um diploma da Universidade de Leip-zig falsificado por ele mesmo: Chorou de desilusão. O fervor federalista, que os exilados definiam como um estopim já quase aceso, tinha-se dissolvido numa vaga ilusão eleitoral. Amar-gurado pelo fracasso, ansioso por um lugar seguro onde es-perar a velhice, o falso homeopata se refugiou em Macondo. No estreito quartinho abarrotado de frascos vazios que alu-gou num canto da praça, viveu vários anos dos doentes sem esperanças que, depoi~ de terem provado tudo, se consolavam com comprimidos de açúcar. Seus instintos de agitador per-maneceram em repouso enquanto o Sr. Apolinar Moscote foi uma autoridade decorativa. Passava o tempo em recordações e na luta contra a asma. A proximidade das eleições foi o fio que lhe permitiu encontrar de novo o novelo da subversão. Estabeleceu contato com a gente jovem do povoado, que ca-recia de formação política, e se empenhou numa sigilosa cam-panha de instigação. As numerosas cédulas vermelhas que apa-receram na urna, e que foram atribuídas pelo Sr. Apolinar Moscote à mania de novidade da juventude, eram parte do seu plano: obrigou os discípulos a votarem, para convence-los de que as eleições eram uma farsa. “A t~inica coisa eficaz”, dizia, “é a violência.” A maioria dos amigos de Aureliano an-dava entusiasmada com a idéia de liquidar a ordem conserva-dora, mas ninguém tinha se atrevido a incluí-lo nos planos, não só pelos seus vínculos com o delegado, mas também pelo 98 temperamento solitário e evasivo. Era mais que sabido, rn disso, que tinha votado azul por indicação do sogro. De do que foi uma simples casualidade que revelasse os seus timentos políticos, e foi uma mera pontinha de curiosida-o que veio a lhe dar na veneta de visitar o médico, para tar de uma dor que não tinha. Na pocilga cheirando a teia aranha canforada, deu de cara com uma espécie de lagarto poeirado cujos pulmões assoviavam ao respirar. Antes de :er qualquer pergunta, o doutor o levou à janela e exami-u a parte de dentro da pálpebra inferior. “Não é aí”, disse ireliano, conforme tinham ensinado. Apertou o fígado com ~onta dos dedos e acrescentou: “É aqui que tenho a dor que o me deixa dormir.” Então o Doutor Noguera fechou a ja-La sob o pretexto de que havia muito sol, e lhe explicou em mos simples por que era um dever patriótico assassinar os nservadores. Durante vários dias, Aureliano carregou um lrinho no bolso da camisa. Tirava-o de duas em duas ho-~, punha três comprimidos na palma da mão e jogava-os na ca para dissolvê-los lentamente na língua. O Sr. Apohnar oscote caçoou da sua fé na homeopatia, mas os que esta-m no complô reconheceram nele mais um dos seus. Quase dos os filhos dos fundadores estavam implicados, embora nhum soubesse concretamente em que consistia a ação que :s mesmos tramavam. Entretanto, no dia em que o médico velou o segredo a Aureliano, este tirou o corpo fora da cons-ração. Embora estivesse mais do que convencido da urgên-~ de liquidar com o regime conservador, o plano o horrori-u. O Doutor Noguera era um místico do atentado pessoal. seu sistema se reduzia a coordenar uma série de ações mdi-duais que, num golpe de mestre de alcance nacional, liqui-isse com os funcionários do regime e as suas respectivas fa-ílias, sobretudo as crianças, para exterminar o conservado-~mo na semente. O Sr. Apolinar Moscote, sua esposa e suas ‘is filhas, evidentemente, estavam na lista. — O senhor não é liberal coisa nenhuma — disse Aure-mo sem se alterar. — O senhor não passa de um magarefe. — Nesse caso — replicou o doutor com a mesma calma - devolva o vidrinho. Você já não precisa dele. 99 1 Apenas seis meses mais tarde é que Aureliano soube qu o doutor o tinha desacreditado como homem de ação, por um sentimental sem futuro, com um temperamento passiv e uma clara vocação solitária. Trataram de o cercar, temend que denunciasse a conspiração. Aureliano tranquilizou-os: n diria uma palavra, mas na noite em que fossem assassinar família Moscote encontrá-lo-iam defendendo a porta. Demo trou uma decisão tão convincente que o plano foi adiado po tempo indeterminado. Foi por esses dias que Úrsula consul tou a sua opinião sobre o casamento de Pietro Crespi e Ama ranta, e ele respondeu que a época não estava para pensar n tas coisas. Há uma semana que trazia sob a camisa uma pi tola arcaica. Vigiava os amigos. Ia de tarde tomar café co José Arcadio e Rebeca, que começavam a arrumar a sua ca-sa, e desde as sete ficava jogando dominó com o sogro. N hora do almoço conversava com Arcadio, que já era um ado-lescente monumental, e o encontrava cada vez mais exaltado com a iminência da guerra. Na escola, onde Arcadio tinha alu-nos mais velhos que ele, misturados com crianças que mal co meçavam a falar, tinha-se alastrado a febre liberal. Falava-se em fuzilar o Padre Nicanor, converter o templo em escola, implantar o amor liv~e. Aureliano procurou arrefecer os seus ânimos. Recomendou-lhes discrição e prudência. Surdo ao seu raciocínio sereno, ao seu sentido’ da realidade, Arcadio repro-vou em público a sua debilidade de temperamento. Aureliano esperou. Por fim, no início de dezembro, Ursula irrompeu transtornada na oficina. — Rebentou a guerra! Realmente, rebentara há três meses. A lei marcial impe-rava em todo o país. O único a sabê-lo era o Sr. Apolinar Mos-cote, que não deu a noticia nem à sua mulher enquanto não chegava o pelotão do exército que haveria de ocupar o povoado de surpresa. Entraram de mansinho antes do amanhecer, com duas peças de artilharia ligeira puxadas por mulas, e instala-ram o quartel na escola. Impôs- se o toque de recolher às seis da tarde. Fez-se uma revista mais drástica que a anterior, ca-sa por casa, e desta vez levaram até as ferramentas de agricul- tura. Levaram arrastado o Doutor Noguera, amarraram-no 100 uma árvore da praça e o fuzilaram sem qualquer julgamen-O Padre Nicanor tratou de impressionar as autoridades mi-ires com o milagre da levitação e um soldado lhe deu uma ronhada na cabeça. A exaltação liberal se apagou num ter-silencioso. Aureliano, pálido, hermético, continuou jogan-dominó com o sogro. Compreendeu que apesar do seu ti-atual de chefe civil e militar da praça, o Sr. Apolinar Mos-era outra vez uma autoridade decorativa. As decisões tomava era um capitão do exército que todas as manhãs “colhia um tributo extraordinário para a defesa da ordem pú- ~. Quatro soldados, a mando seu, arrebataram de casa uma ulher que tinha sido mordida por um cão raivoso e a mata-m a coronhadas em plena rua. Um domingo, duas semanas ~pois da ocupação, Aureliano entrou na casa de Gerineldo ez e com a sua parcimônia habitual pediu uma caneca cate sem açúcar. Quando os dois ficaram sozinhos na co-Aureliano imprimiu à voz uma autoridade que nunca lhe havia conhecido. “Prepare os rapazes”, disse. “Vamos sara a guerra.” Gerineldo Márquez não acreditou. — Com que armas? — perguntou. — Com as deles — respondeu Aureliano. Na terça-feira, à meia-noite, numa operação treslouca-vinte e um homens menores de trinta anos, chefiados por eliano Buendía, armados com facas de mesa e ferros afia-tomaram de assalto a guarnição, apoderaram-se das ar-2as e fuzilaram no pátio o capitão e os quatro soldados que iham assassinado a mulher. Nessa mesma noite, enquanto se escutavam as descargas do pelotão de fuzilamento, Arcadio foi nomeado chefe civil e militar da praça Os rebeldes casados mal tiveram tempo de despedir das esposas, que abandonaram aos seus próprios sos. Foram embora ao amanhecer, aclamados pela po-liberada do terror, para se unir às forças do general revolucionário Victorio Medina, que, segundo as últimas no-ticias, andava pelo rumo de Manaure. Antes de ir embora, Au-reiano tirou o Sr. Apolinar Moscote de um armário. “O se-nhor fique tranqüilo, meu sogro”, disse a ele. “O novo go- verno garante, sob palavra de honra, a sua segurança pessoal 101 .4 e a da sua família.” O Sr. Apolinar Moscote teve dificuldad de identificar aquele conspirador de botas altas e fuzil pendu rado no ombro com quem tinha jogado dominó até as nov da noite. — Isto é um disparate, Aurelito — exclamou. — Disparate nenhum — disse Aureliano. — E a guerra E não torne a me chamar de Aurelito, porque já sou o Coro nel Aureliano Buendía. .4 102 L 1 1, j O CORONEL Aureliano Buendía promoveu trinta e duas re-voluções armadas e perdeu todas. Teve dezessete filhos varões de dezessete mulheres diferentes, que foram exterminados um por um numa só noite, antes que o mais velho completasse trinta e cinco anos. Escapou de quatorze atentados, setenta e três emboscadas e um pelotão de fuzilamento. Sobreviveu a urna dose de estricnina no café que daria para matar um ca-valo. Recusou a Ordem do Mérito que lhe outorgou o Presi-dente da República. Chegou a ser comandante geral das for-ças revolucionárias, com jurisdição e mando de uma frontei-ra à outra, e o homem mais temido pelo governo, mas nunca permitiu que lhe tirassem uma fotografia. Dispensou a pen-são vitalicia que lhe ofereceram depois da guerra e viveu até a velhice dos peixinhos de ouro que fabricava na sua oficina 103 de Macondo. Embora lutasse sempre à frente dos seus homens, a única ferida que recebeu foi produzida por ele mesmo, de-pois de assinar a capitulação da Neerlândia, que pôs fim a qua-se vinte anos de guerras civis. Desfechou um tiro de pistola no peito e o projétil saiu-lhe pelas costas sem ofender nenhum centro vital. A única coisa que ficou de tudo isso foi uma rua com o seu nome em Macondo. Entretanto, conforme decla-rou poucos anos antes de morrer de velho, nem mesmo isso ele esperava, na madrugada em que partiu com os seus vinte e um homens, para se reunir às forças do General Victorio Medina. — Nós deixamos Macondo aí para você — foi tudo quan-to disse a Arcadio antes de partir. — Nós o deixamos bem, faça com que o encontremos melhor. Arcadio deu uma interpretação muito pessoal à recomen-dação. Inventou para si mesmo um uniforme com galões e dra-gonas de marechal, inspirado nas gravuras de um livro de Mel-quíades, e pendurou no cinto o sabre com borlas douradas do capitão fuzilado. Colocou as duas peças de artilharia na en-trada do povoado, uniformizou os seus antigos alunos, infla-mados pelos seus pronunciamentos incendiários, e deixou-os vagar armados pelas ruas, para dar aos forasteiros uma im-pressão de invulnerabilidade. Foi uma faca de dois gumes, por-que o governo não se atreveu a atacar a praça durante dez me-ses, mas quando o fez, descarregou contra ela uma força tão desproporcional que liquidou com a resistência em meia ho-ra. Desde o primeiro dia de seu mandato Arcadio revelou ser partidário dos decretos. Chegou a baixar até quatro por dia, para ordenar e determinar o que lhe passava pela cabeça. Im-plantou o serviço militar obrigatório a partir dos dezoito anos, declarou de utilidade oública os animais que transitavam pe-las ruas depois das seis da iarde e impôs aos homens maiores de idade a obrigação de usar uma faixa vermelha na manga. Enclausurou o Padre Nicanor na casa paroquial, sob a amea-ça de fuzilamento, e proibiu-o de dizer missa e tocar os sinos, se não fosse para celebrar as vitórias liberais. Para que nin-guém pusesse em dúvida a severidade dos seus propósitos, man-dou que um pelotão de fuzilamento treinasse em praça públi-104 contra um espantalho. No começo, ninguém o le- • ‘•sério. Eram, afinal de contas, os rapazes da escola brin- .4 t de gente grande. Mas certa noite, ao entrar na taberna, o trompetista da banda saudou Arcadio com um de fanfarra que provocou o riso da clientela, e Arcadio fuzilar por falta de respeito à autoridade. Aos que pôs a pão e água, com os tornozelos no tronco - instalara num quarto da escola. “Você é um assassino! “, ava-lhe Ursula cada vez que sabia de alguma nova arbi-riedade. “Quando Aureliano souber disso, vai fuzilar é você smo, e eu vou ser a primeira a me alegrar!” Mas tudo foi Arcadio continuou apertando as cravelhas com um ri- desnecessário, até se converter no mais cruel dos gover-que passaram por Macondo. “Agora sofram a dife-a”, disse o Sr. Apolinar Moscote em certa ocasião. “Isto paraíso liberal.” Arcadio soube. A frente de uma patru- ~ assaltou a casa, quebrou os móveis, açoitou as filhas e le-~u de rastros o Sr. Apolinar Moscote. Quando Ursula irrom-no pátio do quartel, depois de ter atravessado o povoado miando de vergonha e brandindo de raiva um rebenque cheio o próprio Arcadio se dispunha a dar a ordem de ao pelotão de fuzilamento. — Atreva-se, bastardo! — gritou Ürsula. Antes que Arcadio tivesse tempo de reagir, descarregou-primeira vergastada. “Atreva-se, assassino”, gritava. “E mate também, seu filho da mãe. Assim não vou ter olhos ~ra chorar a vergonha de ter criado um monstro.” Açoitando- misericórdia, perseguiu-o até o fundo do pátio, onde ~adio se enrolou como um caracol. O Sr. Apolinar Mosco-‘estava inconsciente, amarrado no poste onde tinham antes espantalho arrebentado pelos tiros de treinamento. Os ra-do pelotão se dispersaram, temerosos de que Úrsula ter-ünasse de se desafogar neles. Mas ela nem sequer lhes diri-olhar. Deixou Arcadio com o uniforme espedaçado, bra- ~ niando de dor e de raiva, e desamarrou o Sr. Apolinar Mos-cote para levá-lo em casa. Antes de abandonar o quartel, sol-tou os presos do tronco. A partir de então, foi ela quem passou a mandar no po-103 voado. Restabeleceu a missa dominical, suspendeu o uso das insígnias vermelhas e invalidou os decretos atrabiliários. Mas apesar da sua força, continuou chorando a infelicidade do seu destino. Sentiu-se tão sozinha que procurou a inútil compa-nhia do marido, esquecido debaixo do castanheiro. “Olha só onde fomos parar”, dizia a ele, enquanto as chuvas de junho ameaçavam derrubar a coberta de sapé. “Olhe só a casa va-zia, nossos filhos espalhados pelo mundo, e nós dois sozinhos outra vez como no princípio.” José Arcadio Buendía, afun-dado num abismo de inconsciência, era surdo aos seus lamen-tos. No começo da sua loucura, anunciava com latinórios ago-niantes as suas urgências cotidianas. Em fugazes clarões de lucidez, quando Amaranta trazia a comida, ele lhe comunica-va os seus pesares mais desagradáveis e se prestava com doci-lidade às suas ventosas e sinapismos. Mas na época em que Úrsula foi se lamentar ao seu lado, já tinha perdido todo o contato com a realidade. Ela o banhava por partes, sentado no banquinho, enquanto lhe dava notícias da família. “Au-reliano foi para a guerra, faz mais de quatro meses, e não sou-bemos mais dele”, dizia, esfregando-lhe as costas com uma bucha ensaboada. “José Arcadio voltou, feito um homenzar-rão mais alto que você e todo bordado em ponto de cruz, mas só veio trazer vergc~nha para a nossa casa.” Acreditou obser-var, entretanto, que o marido se entristecia com as más notí-cias. Então, optou por mentir para ele. “Não acredite no que eu digo”, dizia, enquanto jogava cinzas sobre os excremen-tos, para recolhê-los com a pá. “Deus quis que José Arcadio e Rebeca se casassem, e agora são muito felizes.” Chegou a ser tão sincera no engano que ela mesma acabou se consolan-do com as suas próprias mentiras. “Arcadio já é um homem sério”, dizia, “e muito valente, e muito bonito com o seu uni-forme e o seu sabre.” Era como falar a um morto, porque José Arcadio Buendía já estava fora do alcance de qualquer preocupação. Mas ela insistiu. Via-o tão manso, tão indife-rente a tudo, que decidiu soltá-lo. Ele nem sequer se mexeu do banquinho. Continuou exposto ao sol e à chuva, como se as cordas fossem desnecessárias, porque um domínio superior a qualquer prisão visível o mantinha amarrado ao tronco do 106 anheiro. Pelo mês de agosto, quando o inverno começava eternizar, Ursula pôde por fim lhe dar uma notícia que ecia verdade. • — Veja que a boa sorte continua nos perseguindo — disse e. — Amaranta e o italiano da pianola v~o se casar. Amaranta e Pietro Crespi, na verdade, tinham aprofun-o a amizade, amparados pela confiança de Úrsula, que des-ez não pensou ser necessário vigiar as visitas. Era um na-ro crepuscular. O italiano chegava ao entardecer, com uma d~nia na lapela, e traduzia para Amaranta os sonetos de arca. Permaneciam na varanda sufocada pelo orégão e pe-rosas, ele lendo e ela fazendo renda de bilros, indiferentes sobressaltos e às más notícias da guerra, até que os mos-itos os obrigassem a se refugiar na sala. A sensibilidade de aranta, sua discreta mas envolvente ternura, foram urdindo volta do namorado uma teia invisível que ele tinha que afas-materialmente com os dedos pálidos e sem anéis, para aban-nar a casa às oito. Tinham feito um lindo álbum com os stais que Pietro Crespi recebia da Itália. Eram imagens de aixonados em parques solitários, com vinhetas de corações hados e fitas douradas sustentadas por pombinhos. “Eu bnheço este parque em Florença”, dizia Pietro Crespi repas-indo os postais. “A gente estende a mão e os pássaros des-~m para comer.” As vezes, diante de uma aquarela de Vene-i, a saudade transformava em suaves aromas de flores o cheiro ~ limo e mariscos podres dos canais. Amaranta suspirava, a, sonhava com uma segunda pátria de homens e mulheres )~ITIOSOS que falavam uma língua que parecia de crianças, com dades antigas de cuja passada grandeza restavam apenas os itos entre os escombros. Depois de atravessar o oceano na ia busca, depois de tê-lo confundido com a paixão nas carí-as veementes de Rebeca, Pietro Crespi tinha encontrado o nor. A felicidade trouxe consigo a prosperidade. A sua loja ~upava agora quase um quarteirão, e era um refúgio de fan-sia, com reproduções do campanário de Florença, que da-ia’ as horas num concerto de carrilhões, e caixinhas de mú-~a de Sorrento, e de pó-de-arroz da China que cantavam, se abrir a tampa, toadas de cinco notas, e todos os instru- 107 mentos musicais que se podiam imaginar e todos os artifícios de corda que se podiam conceber. Bruno Crespi, seu irmão mais novo, estava à frente da loja, porque ele já não chegava para atender à escola de música. Graças a ele, a Rua dos Tur-cos, com a sua deslumbrante exposição de quinquilharias, transformou-se num remanso melódico, para esquecer as ar-bitrariedades de Arcadio e o pesadelo remoto da guerra. Quan-do Ürsula determinou a retomada da missa dominical, Pietro Crespi presenteou o templo com um harmônio alemão, orga-nizou um coro infantil e preparou um repertório gregoriano que deu uma nota esplêndida ao ritual taciturno do Padre Ni-canor. Ninguém punha em dúvida que faria de Amaranta uma esposa feliz. Sem apressar os sentimentos, deixando-se arras-tar pela fluidez natural do coração, chegaram a um ponto em que só faltava marcar a data do casamento. Não encontra-riam obstáculos. Ursula se acusava intimamente de ter torci-do com adiamentos repetidos o destino de Rebeca, e não es-tava disposta a acumular remorsos. O rigor do luto pela mor-te de Remedios tinha sido relegado a segundo plano em favor da mortificação da guerra, da ausência de Aureliano, da bru-talidade de Arcadio e da expulsão de José Arcadio e Rebeca. Diante da iminência do casamento, o próprio Pietro Crespi insinuara que Aurellano José, em favor de quem desenvolveu um carinho quase paternal, fosse considerado como seu filho mais velho. Tudo fazia crer que Amaranta se orientava para uma felicidade sem tropeços. Mas ao contrário de Rebeca, ela não revelava a menor ansiedade. Com a mesma paciência com que sarapintava toalhas de mesa, e tecia primores de passa-manaria, e bordava pavões em ponto de cruz, esperou que Pie-tro Crespi não suportasse mais as urgências do coração. Sua hora chegou com as chuvas aziagas de outubro. Pietro Crespi tirou-lhe do colo o cesto de costura e apertou-lhe a mão entre as suas. “Não agüento mais esta espera”, disse a ela. “Nós casamos no mês que vem.” Amaranta não tremeu ao contato das suas mãos de gelo. Retirou a sua, como um animalzinho em fuga e voltou ao trabalho. — Não seja ingênuo, Crespi — sorriu — nem morta eu me caso com você. 108 Pietro Crespi perdeu o domínio de si mesmo~ Chorou sem dor, quase quebrando os dedos de desespero, mas não con-~uiu comovê-la. “Não perca tempo”, foi tudo quanto disse naranta. “Se realmente você me ama tanto, não volte a pi-nesta casa.” Ursula pensou enlouquecer de vergonha. Pietro espi esgotou os recursos da súplica. Chegou a incríveis ex-~nIos de humilhação. Chorou uma tarde inteira no colo de ~sula, que teria vendido a alma para consolá-lo. Em noites chuva, foi visto vagando nas proximidades da casa, com n guarda-chuva de seda, tentando surpreender uma luz no zaflo de Amaranta. Nunca andou tão bem vestido quanto ~ssa época. A sua augusta cabeça de imperador atormenta-adquiriu um estranho ar de grandeza. Importunou as ami-~s de Amaranta, as que iam bordar na varanda, para que ntassem persuadi-la. Descuidou dos negócios. Passava o dia ,s fundos da loja, escrevendo bilhetes desatinados, que fa-~ chegar a Amaranta com membranas de pétalas e borbole-s embalsamadas, e que ela devolvia sem abrir. Trancava-se trante horas e horas tocando cítara. Certa noite cantou. Ma-ndo acordou numa espécie de êxtase, angelizado por uma ~ara que não podia ser deste mundo e uma voz que não se dia conceber que existisse na terra, tão cheia de amor. Pie-~ Crespi viu então a luz acesa em todas as janelas do povoa-, menos na de Amaranta. A dois de novembro, dia de to-~s os mortos, seu irmão abriu a loja e encontrou todas as zes acesas e todas as caixas de músicas abertas e todos os [ágios travados numa hora interminável, e no meio daquele incerto disparatado encontrou Pietro Crespi no escritório dos ndos da loja com os pulsos cortados a navalha e as duas ~os metidas numa bacia de benjoim. Ürsula ordenou que ele fosse velado na sua casa. O Pa-e Nicanor se opunha aos ofícios religiosos e à sepultura no mpo santo. Ursula enfrentou-o. “De uma maneira que nem senhor nem eu podemos entender, esse homem era um san-“, disse. “De modo que vou enterrá-lo, contra a sua vonta- , junto à tumba de Melquíades.” Fé-lo, com o apoio de to- o povo, em funerais magníficos. Amaranta não saiu do iano. Ouviu de sua cama o pranto de Ursula, os passos e 109 1~ murmúrios da multidão que invadiu a casa, os uivos das car-pideiras, e depois um profundo silêncio cheirando a flores pi-sadas. Durante muito tempo continuou a sentir o aroma da lavanda de Pietro Crespi ao entardecer, mas teve forças para não sucumbir ao delírio. Ursula abandonou-a. Nem sequer le-vantou os olhos para se apiedar dela, na tarde em que Ama-ranta entrou na cozinha e pôs a mão nas brasas do fogão, até doer tanto que não sentiu mais a dor, e sim o fedor da sua própria carne chamuscada. Foi uma dose cavalar para o re-morso. Durante vários dias andou pela casa com a mão meti-da numa caneca cheia de claras de ovo, e quando sararam as queimaduras era como se as claras de ovo tivessem cicatriza-do também as úlceras do coração. A única marca externa que lhe deixou a tragédia foi a atadura de gaze negra que pôs na mão queimada, e que haveria, de usar até a morte. Arcadio deu uma rara prova de generosidade, ao procla-mar, mediante um decreto, o luto oficial pela morte de Pietro Crespi. Úrsula interpretou o fato como a volta do cordeiro extraviado. Mas se enganou. Tinha perdido Arcadio, não desde que vestiu o uniforme militar, mas desde sempre. Acreditava tê-lo criado como um filho, como criou Rebeca, sem privilé-gios nem discriminações. Entretanto, Arcadio era um meni-no solitário e assustaTo durante a peste da insônia, em meio à febre utilitária de Úrsula, aos delírios de José Arcadio Buen-día, ao hermetismo de Aureliano, à rivalidade mortal entre Amaranta e Rebeca. Aureliano ensinou-o a ler e escrever, pen-sando em outra coisa, como o teria feito um estranho. Presenteava-o com a sua roupa, para que Visitación a dimi-nuísse, quando já estava boa para jogar fora. Arcadio sofria com os seus sapatos grandes demais, com as suas calças re-mendadas, com as suas nádegas de mulher. Nunca conseguiu se comunicar com ninguém melhor do que o fizera com Visi-tación e Cataure, na língua deles. Melquíades foi o único que na realidade se ocupou dele, que lhe fazia escutar os seus tex-tos incompreensíveis e lhe dava instruções sobre a arte da da-guerreotipia. Ninguém imaginava o quanto chorara a sua morte em segredo e com que desespero tentou revivê-lo no estudo inútil dos seus papéis. A escola, onde lhe prestavam atenção 110 e o respeitavam, e depois o poder, com os seus decretos pe-remptórios e o seu uniforme de glória, livraram-no do peso de uma antiga amargura. Uma noite, na taberna de Catarino, alguém se atreveu a lhe dizer: “Você não merece o sobreno- me que usa.” Ao contrário do que todos esperavam, Arcadio não mandou fuzilá-lo. — Com muita honra — disse — não sou um Buendía. Os que conheciam o segredo da sua filiação pensaram por aquela réplica que também ele estava a par, mas na realidade não o esteve nunca. Pilar Temera, sua mãe, que lhe tinha fei-to ferver o sangue no gabinete de daguerreotipia, foi para ele uma obsessão tão irresistível como tinha sido primeiro para José Arcadio e depois para Aureliano. Apesar de ela haver perdido os encantos e o esplendor do riso, ele a procurava e a encontrava no rastro do seu cheiro de fumo. Pouco antes da guerra, num meio-dia em que ela foi mais tarde que de cos- tume buscar o seu filho mais novo na escola, Arcadio a esta-va esperando no quarto onde costumava fazer a sesta, e onde depois instalou o tronco. Enquanto o menino brincava no pá-tio, ele esperou na rede, tremendo de ansiedade, sabendo que Pilar Temera tinha que passar por ali. Chegou. Arcadio agarrou-a pelo braço e tentou metê-la na rede. “Não posso, não posso”, disse Pilar Temera horrorizada. “Você não ima-gina como eu gostaria de lhe dar prazer, mas Deus é testemu-nha de que não posso.” Arcadio agarrou-a pela cintura com a sua tremenda força hereditária, e sentiu que o mundo se apa-gava ao contato da sua pele. “Não se faça de santa”, dizia. “Afinal, todo mundo sabe que você é uma puta.” Pilar se re-fez do nojo que lhe inspirava o seu miserável destino. — As cnanças vao perceber — murmurou. — E melhor que esta noite você deixe a porta sem trancar. Arcadio esperou-a naquela noite, tiritando de febre na rede. Esperou sem dormir, ouvindo os grilos alvoroçados da madrugada sem fim e o horário implacável dos socós, cada vez mais convencido de que o haviam enganado. De repente, quando a ansiedade já se havia decomposto em raiva, a porta se abriu. Poucos meses depois, diante do pelotão de fuzila-mento, Arcadio haveria de reviver os passos perdidos na sala 111 de aula, os tropeções contra os bancos, e por último a densi-dade de um corpo nas treVas do quarto e as batidas do ar bom-beado por um coração que não era o seu. Estendeu a mão e encontrou outra mão com dois anéis num mesmo dedo, que estava a ponto de naufragar na escuridão. Sentiu a nervação das suas veias, o pulso do seu infortúnio e sentiu a palma úmida com a linha da vida cortada na base do polegar pela estocada da morte. Então compreendeu que não era essa a mulher que esperava, porque não cheirava a fumo, mas a brilhantina de florzinha, e tinha os seios inchados e cegos com mamilos de homem, e o sexo pétreo e redondo como uma noz, e a ternura caótica da inexperiência exaltada. Era virgem e tinha o nome inverossímil de Santa Sofia de la Piedad. Pilar Temera lhe ha-via pago cinqüenta pesos, a metade de suas economias de to-da a vida, para que fizesse o que estava fazendo. Arcadio a vira muitas vezes, atendendo na lojinha de comestíveis dos pais, e nunca tinha prestado atenção nela, porque tinha a rara vir-tude de não existir por completo, a não ser no momento opor-tuno. Mas a partir daquele dia, enroscou-se como um gato no calor da sua axila. Ela ia à escola na hora da sesta, com o con-sentimento dos pais, a quem Pilar Temera havia pago a outra metade das suas economias. Mais tarde, quando as tropas do Governo os desalojaram do local, amavam-se entre as latas de manteiga e os sacos de milho do depósito. Na época em que Arcadio foi nomeado chefe civil e militar, tiveram uma filha. Os únicos parentes que souberam foram José Arcadio e Rebeca, com quem Arcadio mantinha então relações íntimas, baseadas não tanto no parentesco quanto na cumplicidade. José Arcadio tinha dobrado a cerviz ao jugo matrimonial. O temperamento firme de Rebeca, a voracidade do seu ventre, a sua tenaz ambição absorveram a descomunal energia do ma-rido, que de vagabundo e mulherengo se converteu num enor-me animal de trabalho. Tinham uma casa limpa e sempre em ordem. Rebeca a abria de par em par ao amanhecer e o vento das tumbas entrava pelas janelas e saía pelas portas do quin-tal e deixava as paredes caiadas e os móveis curtidos pelo sali-tre dos mortos. A fome de terra, o cloc cloc dos ossos de seus 112 Nq pais, a impaciência do seu sangue diante da passividade de Pie-tro Crespi, estavam relegados ao vão da memória. O dia in-teiro bordava junto à janela, alheia ao desastre da guerra, até que os potes de cerâmica começavam a vibrar no aparador e ela se levantava para esquentar a comida, muito antes de que aparecessem os esquálidos cães de caça e depois o colosso de polainas e esporas, com a espingarda de dois canos, que às vezes trazia um veado ao ombro e quase sempre uma fileira de coelhos ou de patos selvagens. Uma tarde, no princípio do seu governo, Arcadio foi visitá-los de um modo intempesti-vo. Não o viam desde que abandonaram a casa, mas se mos-trou tão carinhoso e familiar que o convidaram a comparti-lhar do ensopado. Só quando tomavam o café foi que Arcadio revelou o mo-tivo da sua visita: tinha recebido uma denúncia contra José Arcadio. Dizia-se que começara arando o seu quintal e tinha continuado direto pelas terras contíguas, derrubando cercas e arrasando ranchos com os seus bois, até se apoderar pela força das melhores propriedades das redondezas. Aos cam-poneses que não tinha espoliado, porque as suas terras não lhe interessavam, impôs uma contribuição que cobrava todos os sábados com os buldogues e a espingarda de dois canos. Não negou. Fundamentava o seu direito no fato de que as ter-ras usurpadas tinham sido distribuídas por José Amcadio Buen-dia nos tempos da fundação, e acreditava possível provar que seu pai já estava louco nesta época, uma vez que dispôs de um patrimônio que na realidade pertencia à família. Era uma alegação desnecessária, porque Arcadio não tinha ido lá para fazer justiça. Ofereceu-se simplesmente para criar um escri-tório de registros de propriedade para que José Arcadio lega-lizasse os títulos da terra usurpada, com a condição de que delegasse ao governo local o direito de cobrar as contribui-ções. Puseram-se de acordo. Anos depois, quando o Coronel Aureliano Buendía examinou os títulos de propriedade, ob-servou que estavam registradas em nome de seu irmão todas as terras que se divisavam desde a colina do seu quintal até o horizonte, inclusive o cemitério, e que, nos onze meses do seu mandato, Arcadio tinha carregado não só com o dinheiro 113 das contribuições, mas também com o que cobrava do povo pelo direito de enterrar os mortos na propriedade de José Arcadio. Ürsula demorou vários meses para saber o que já era do domínio público, porque as pessoas lhe ocultavam o fato, pa-ra não aumentar o seu sofrimento. Começou a suspeitar. “Ar-cadio está construindo uma casa”, confiou com fingido or-gulho ao seu marido, enquanto tentava meter-lhe na boca uma colherada de xarope de flor de cuité. Entretanto, suspirou in-voluntariamente: “Não sei por que, mas isso me cheira mal.” Mais tarde, quando soube que Arcadio não só já havia termi-nado a casa, como também tinha encomendado uma mobília vienense, confirmou a suspeita de que estava dispondo dos fun-dos públicos. “Você é a vergonha da família”, gritou-lhe um domingo depois da missa, quando o viu na casa nova, jogan-do baralho com os seus oficiais. Arcadio não prestou a míni-ma atenção. Só então foi que tJrsula soube que tinha uma fi-lha de seis meses, e que Santa Sofía de la Piedad, com quem vivia sem se casar, estava outra vez grávida. Resolveu escre-ver ao Coronel Aureliano Buendía, em qualquer lugar onde se encontrasse, para pô-lo a par da situação. Mas os aconteci-mentos que se precipitaram naqueles dias não só impediram os seus propósitos coftio também fizeram com que se arrepen-desse de havê-los concebido. A guerra, que até então não ti-nha sido mais que uma palavra para designar uma circuns-tância vaga e remota, concretizou-se numa realidade dramá-tica. No fim de fevereiro, chegou a Macondo uma anciã de aspecto cinzento, montada num burro carregado de vassou-ras. Parecia tão inofensiva que as patrulhas de vigilância deixaram-na passar sem perguntas, como mais um dos ven-dedores que freqüentemente chegavam dos povoados do pan-tanal. Foi diretamente ao quartel. Arcadio a recebeu no local onde antes esteve a sala de aula, e que então estava transfor-mada numa espécie de acampamento de retaguarda, com re-des enroladas e penduradas nas argolas e esteiras amontoa-das nos cantos, e fuzis e carabinas e até espingardas de caça jogados pelo chão. A anciã se endireitou numa saudação mi-litar antes de se identificar: 114 — Sou o Coronel Gregorio Stevenson. Trazia más notícias. Os últimos focos da resistência libe-ral, conforme disse, estavam sendo exterminados. O Coronel Aureliano Buendía, a quem tinha deixado batendo em retira-da pelos lados de Riohacha, encarregara-o da missão de falar com Arcadio. Deveria entregar a praça sem resistência, im-pondo como condição que se respeitasse sob palavra de hon-ra a vida e as propriedades dos liberais. Arcadio examinou com um olhar de comiseração aquele estranho mensageiro que se poderia confundir com uma vovó fugitiva. — O senhor, evidentemente, traz algum papel escrito —disse. — Evidentemente — respondeu o emissário — não tra-go. É fácil entender que, nas atuais circunstâncias, ninguém vai carregar nada de comprometedor. Enquanto falava, tirou a combinaçao e pos na mesa um peixinho de ouro. “Acho que isto é suficiente”, disse. Arca-dio comprovou que realmente era um dos peixinhos feitos pe-lo Coronel Aureliano Buendía. Mas alguém podia tê-lo com-prado antes da guerra, ou tê-lo roubado, e não tinha portan-to nenhum mérito como salvo- conduto. O mensageiro chegou ao extremo de violar um segredo de guerra para fazê-lo crer na sua identidade. Revelou que ia em missão para Curaçao, onde esperava recrutar exilados de todo o Caribe e adquirir armas e petrechos suficientes para tentar um desembarque no fim do ano. Confiando nesse plano, o Coronel Aureliano Buen-día não era partidário de que naquele momento se fizessem sacrifícios inúteis. Mas Arcadio foi inflexível. Fez encarcerar o mensageiro, enquanto comprovava a sua identidade, e re-solveu defender a praça até a morte. Não precisou esperar muito tempo. As notícias do fra-casso liberal eram cada vez mais concretas. No fim de março, numa madrugada de chuvas prematuras, a calma tensa das se-manas anteriores resolveu-se abruptamente com um desespe-rado toque de cometa, seguido de um tiro de canhão que des-truiu a torre do templo. Realmente, a determinação de resis-tencia de Arcadio era uma loucura. Não dispunha de mais de cinqüenta homens mal armados, com uma munição máxima 115 de vinte cartuchos cada um. Mas entre eles, os seus antigos alunos, inflamados por proclamações altissonantes, estavam decididos a sacrificar a pele por uma causa perdida. No meio do tropel de botas, de ordens contraditórias, de tiros de ca-nhão que faziam tremer a terra, de disparos a esmo e de to-ques de cometa sem sentido, o suposto Coronel Stevenson con-seguiu falar com Arcadio. “Poupe-me a indignidade de mor-rer no tronco com estes trapos de mulher”, disse. “Se eu te- nho de morrer, que seja lutando.” Conseguiu convencê-lo. Ar-cadio ordenou que lhe entregassem uma arma com vinte car-tuchos, e o deixaram com cinco homens defendendo o quar-tel, enquanto ele ia, com o seu estado-maior, colocar-se à frente da resistência. Não chegou a alcançar a estrada do pantanal. As barricadas tinham sido espedaçadas e os defensores se ba-tiam a descobérto nas ruas, primeiro até onde lhes chegava a munição dos fuzis, e depois com pistolas contra fuzis e por último, no corpo- a-corpo. Diante da iminência da derrota, al-gumas mulheres se atiraram à rua armadas de paus e facas de cozinha. Naquela confusão, Arcadio encontrou Amaran- ta, que o andava procurando como uma louca, de camisola, com duas velhas pistolas de José Arcadio Buendía. Entregou o seu fuzil a um oficial que tinha sido desarmado na refrega, e fugiu com Amaranta por uma rua transversal, para levá-la em casa. Ursula estava na porta, esperando, indiferente às des-cargas que tinham aberto um buraco na fachada da casa vizi-nha. A chuva cedia, mas as ruas estavam escorregadias e mo-les como sabão derretido, e as pessoas tinham que adivinhar as distâncias no escuro. Arcadio largou Amaranta com Úrsu-la e tentou enfrentar dois soldados que soltaram uma descar-ga cega da esquina. As velhas pistolas guardadas muitos anos no armário não funcionaram. Protegendo Arcadio com o cor-po, Ürsula tentou arrastá-lo até em casa. — Venha, pelo amor de Deus — gritava. — Chega de maluquice! Os soldados apontaram para eles. — Solte esse homem, senhora — gritou um deles — ou não nos responsabilizamos! Arcadio empurrou Ürsula para dentro de casa e se entre- 116 gou. Pouco depois cessaram os disparos e começaram a repi-car os sinos. A resistência tinha sido aniquilada em menos de 4’ meia hora. Nem um só dos homens de Arcadio sobreviveu ao assalto, mas antes de morrer levaram com eles trezentos sol-dados. O último baluarte foi o quartel. Antes de ser atacado, o suposto Coronel Gregorio Stevenson pôs em liberdade os presos e ordenou aos seus homens que saíssem para brigar na rua. A extraordinária mobilidade e a pontaria certeira com que disparou os seus vinte cartuchos pelas diferentes janelas de-ram a impressão de que o quartel estava bem defendido e os atacantes o espedaçaram a tiros de canhão. O capitão que di- rigiu a operação se assombrou ao encontrar os escombros de-sertos e apenas um homem de cuecas, morto, com o fuzil des-carregado, ainda agarrado por um braço que tinha sido ar-rancado do ombro. Tinha uma frondosa cabeleira de mulher enrolada na nuca com um pente, e no pescoço um escapulá-rio com um peixinho de ouro. Ao virá-lo com a ponta da bo-ta para iluminar-lhe a cara, o capitão ficou perplexo. “Mer-da”, exclamou. Outros oficiais se aproximaram. — Vejam onde veio aparecer este sujeito — disse-lhes o capitão. — É Gregorio Stevenson. Ao amanhecer, depois de um conselho de guerra sumá-rio, Arcadio foi fuzilado contra o muro do cemitério. Nas duas últímas horas da sua vida, não conseguiu compreender por que havia desaparecido o medo que o atormentara desde a in- fância. Impassível, sem se preocupar sequer em demonstrar a sua recente coragem, escutou as intermináveis culpas da acu-sação. Pensava em Ursula, que a essa hora devia estar debai-xo do castanheiro tomando café com José Arcadio Buendía. Pensava na sua filha de oito meses, que ainda não tinha no-me, e no que ia nascer em agosto. Pensava em Santa Sofia de la Piedad, a quem na noite anterior deixara salgando um veado para o almoço de sábado, e sentiu saudade do seu ca- belo caído nos ombros e das suas pestanas que pareciam arti-ficiais. Pensava na sua gente, sem sentimentalismos, num se-vero ajuste de contas com a vida, começando a compreender quanto amava na realidade as pessoas que mais odiara. O pre-sidente do Conselho de Guerra iniciou o seu discurso final, 117 antes que Arcadio se desse conta de que haviam transcorrido duas horas. “Ainda que as culpas comprovadas não apresen-tassem méritos mais que suficientes”, dizia o presidente, “a temeridade irresponsável e criminosa com que o acusado em-purrou os seus subordinados para uma morte inútil bastaria para fazê-lo merecer a pena máxima.” Na escola arrebentada onde experimentou pela primeira vez a segurança do poder, a poucos metros do quarto onde conheceu a incerteza do amor, Arcadio achou ridículo o formalismo da morte. Realmente não se importava com a morte, e sim com a vida, por isso a sensa-ção que experimentou quando pronunciaram a sentença não foi uma sensação de medo, mas de nostalgia. Não falou en-quanto não lhe perguntaram qual era a sua última vontade. — Digam à minha mulher — respondeu com voz bem timbrada — que ponha na menina o nome de Ursula. — Fez uma pausa e confirmou: — Ursula, como a avó. E digam-lhe também que se o outro nascer homem, que lhe ponham o no-me de José Arcadio, mas não pelo tio, e sim pelo avô. Antes que o levassem ao paredão, o Padre Nicanor ten-tou assisti-lo. “Não tenho nada de que me arrepender”, disse Arcadio, e se pôs às ordens do pelotão depois de tomar uma xícara de café preto. O çhefe do pelotão, especialista em exe- cuções sumárias, tinha um nome que era muito mais do que uma coincidência: Capitão Roque Carnicero. A caminho do cemitério, sob uma chuvinha insistente, Arcadio observou que no horizonte despontava uma quarta-feira radiante. A triste- za se esvanecia com a névoa e deixava no seu lugar uma imen-sa curiosidade. Só quando lhe ordenaram ficar de costas para o muro foi que Arcadio viu Rebeca, com o cabelo molhado e um vestido de flores rosadas, abrindo a casa de par em par. Fez um esforço para que o reconhecesse. Com efeito, Rebeca olhou casualmente para o muro e ficou paralisada de susto, só podendo reagir para fazer a Arcadio um sinal de adeus com a mão. Arcadio respondeu da mesma forma. Nesse instante, apontaram para ele as bocas fumegantes dos fuzis, e ele ou- viu letra por letra as encíclicas cantadas de Melquíades, e sen-- 4 tiu os passos perdidos de Santa Sofia de la Piedad, virgem, na sala de aula, e experimentou no nariz a mesma dureza de 118 gelo que lhe havia chamado a atenção nas fossas nasais do cadáver de Remedios. “Ah, caralho!”, chegou a pensar, “me esqueci de dizer que se nascesse mulher pusessem Remedios.” Então, numa só pontada dilacerante, voltou a sentir todo o terror que o atormentara na vida. O capitão deu a ordem de fogo. Arcadio mal teve tempo de estufar o peito e levantar a cabeça, sem entender de onde fluía o líquido ardente que lhe queimava as coxas. — Cornos! — gritou. — Viva o Partido Liberal! 119 -7’ EM MAIO terminou a guerra. Duas semanas antes que o go-verno o anunciasse oficialmente, num decreto altissonante que prometia um castigo sem piedade para os promotores da re-belião, o Coronel Aureliano Buendía caiu prisioneiro, quan- do já estava quase alcançando a fronteira ocidental disfarça-do de feiticeiro indígena. Dos vinte e um homens que o segui-ram na guerra, quatorze morreram em combate, seis estavam feridos, e apenas um o acompanhava no momento da derrota final: o Coronel Gerineldo Márquez. A notícia da captura foi dada em Macondo~por uma proclamação extraordinária. “Está vivo”, informou Ursula ao marido. “Roguemos a Deus para que os seus inimigos tenham demência.” Depois de três dias de choro, numa tarde em que batia um doce de leite na co- 120 zinha, ouviu claramente a voz de seu filho muito perto do ou-vido. “E Aureliano”, gritou, correndo para. o castanheiro para dar a notícia ao marido. “Não sei como foi o milagre, mas está vivo e vamos vê-lo muito brevemente. Deu o fato como mais do que certo. Fez lavar o chão da casa e mudar a posi-ção dos móveis. Uma semana depois, um rumor sem origem, que não seria estabelecido pelo decreto, confirmou dramati-camente o presságio. O Coronel Aureliano Buendía havia si-do condenado à morte e a sentença seria executada em Ma-condo, para escarmento da população. Numa segunda-feira, às dez e vinte da manhã, Amaranta estava vestindo Aurelia-no José, quando percebeu um tropel longínquo e um toque de cometa, um segundo antes de que Ursula irrompesse no quarto com um grito: “Já o estão trazendo.” A tropa lutava para dominar a coronhadas a multidão incontida. Ursula e Amaranta correram até a esquina, abrindo passagem aos em- purrões, e então o viram. Parecia um mendigo. Tinha a rou-pa rasgada, o cabelo e a barba emaranhados, e estava descal-ço. Andava sem sentir a poeira escaldante, com as mãos amar-radas nas costas com uma corda que um oficial a cavalo sus- tinha na cabeça da sela. Perto dele, também roto e derrota-do, o Coronel Gerineldo Márquez era levado. Não estavam tristes. Pareciam mais como que perturbados pela multidão, que gritava para a tropa todo tipo de impropérios. — Meu filho! — gritou Ursula no meio da algazarra, e deu uma bofetada no soldado que tentou detê-la. O cavalo do oficial empinou. Então o Coronel Aureliano Buendía se deteve, trêmulo, afastou os braços de sua mãe e fixou-lhe nos olhos um olhar duro. — Vá para casa, mamãe — disse. — Peça permissão às autoridades e venha me ver na prisão. Olhou para Amaranta, que permanecia indecisa dois pas-sos atrás de Ursula, e sorriu para ela ao perguntar: “O que foi que aconteceu com a sua mão?” Amaranta levantou a mão com a atadura negra. “Uma queimadura”, disse, e afastou Ürsula para que não fosse atropelada pelos cavalos. A tropa disparou. Uma guarda especial rodeou os prisioneiros e os le-vou rapidamente para o quartel. 121 Ao entardecer, Ursula visitou o Coronel Aureliano Buen-día na prisão. Tinha tentado conseguir a permissão através do Sr. Apolinar Moscote, mas este perdera toda a autoridade dian-te da onipotência dos militares. O Padre Nicanor estava pros-trado com uma febre hepática. Os pais do Coronel Gerineldo Márquez, que não estava condenado à morte, tinham tenta-do vê-lo e foram expulsos a coronhadas. Diante da impossi-bilidade de conseguir intermediários, convencida de que o fi- lho seria fuzilado ao amanhecer, Úrsula fez um embrulho com as coisas que queria levar para ele e foi sozinha ao quartel. — Sou a mãe do Coronel Aureliano Buendía —anunciou-se. Os sentinelas lhe impediram a passagem. “Vou entrar de qualquer maneira”, LiJrsula advertiu. “De modo que, se têm ordens de disparar, comecem logo.” Afastou um deles com um empurrão e entrou na antiga sala de aula, onde um grupo de soldados nus lubrificava as suas armas. Um oficial de uni-forme de campanha, queimado de sol, com óculos de lentes muito grossas e gestos cerimoniosos, fez aos sentinelas um si-nal para que se retirassem. — Sou a mãe do Coronel Aureliano Buendía — Ursula repetiu. — A senhora estará querendo dizer — corrigiu o oficial com um sorriso amável — que é a senhora mãe do Sr. Aure-liano Buendía. liJrsula reconheceu no seu modo de falar rebuscado a ca-dência lânguida da gente do páramo, os janotas. — Como queira, senhor — admitiu — desde que me per-mita vê-lo. Havia ordens superiores de não permitir visitas aos con-denados à morte, mas o oficial assumiu a responsabilidade de lhe conceder uma entrevista de quinze minutos. Ürsula mos-trou a ele o que trazia no embrulho: uma muda de roupa lim- pa, as botinas que o seu filho usara no casamento, e o doce de leite que guardava para ele desde o dia em que pressentiu o seu regresso. Encontrou o Coronel Aureliano Buendía no quarto dos condenados à morte, estendido num catre e com os braços abertos, porque tinha as axilas cheias de furúncu-122 21 los. Haviam-lhe permitido fazer a barba. O bigode grosso de pontas torcidas acentuava a angulosidade das maçãs do ros-to. Pareceu a Ursula que estava mais pálido que quando fora embora, um pouco mais alto e mais solitário do que nunca. Sabia dos pormenores da casa: o suicídio de Pietro Crespi, as arbitrariedades e o fuzilamento de Arcadio, a impavidez de José Arcadio Buendía debaixo do castanheiro. Sabia que Amaranta tinha consagrado a sua viuvez de virgem à criação de Aureliano José, e que este começava a dar mostras de mui-to bom juízo e lia e escrevia ao mesmo tempo que aprendia a falar. A partir do momento em que entrou no quarto, Ur-sula se sentiu inibida pela maturidade do filho, pela sua aura de domínio, pelo resplendor de autoridade que irradiava a sua pele. Surpreendeu-se de que estivesse tão bem informado. “A senhora já sabe que eu sou adivinho”, ele brincou. E acres-centou seriamente: “Esta manhã, quando me trouxeram, tive a impressão de que já havia passado por tudo isto.” Na ver-dade, enquanto a multidão rugia à sua passagem, ele estava concentrado nos seus pensamentos, assombrado da forma co-mo as pessoas tinham envelhecido em um ano. As amendoei-ras tinham as folhas gastas. As casas pintadas de azul, pinta-das em seguida de vermelho e logo pintadas novamente de azul, acabaram por adquirir uma coloração indefinível. — O que é que você esperava? — Ürsula suspirou. —O tempo passa. — Ë verdade — admitiu Aureliano — mas não tanto. Deste modo, a visita tanto tempo esperada, para a qual ambos haviam preparado as perguntas e inclusive previsto as respostas, foi outra vez a conversa cotidiana de sempre. Quan-do o sentinela anunciou o fim da entrevista, Aureliano tirou de debaixo da esteira do catre um rolo de papéis suados. Eram os seus versos. Os inspirados por Remedios, que tinha levado consigo quando fora embora, e os escritos depois, nas pausas ocasionais da guerra. “Prometa que ninguém vai ler isto”, dis-se. “Esta noite mesmo acenda o forno com eles.” Ürsula pro-meteu e aprumou o corpo para lhe dar um beijo de despedida. — Trouxe um revólver para você — murmurou. O Coronel Aureliano Buendía verificou que o sentinela 123 não estava por perto. “Não me serve de nada”, respondeu em voz baixa. “Mas deixe comigo, para que não a apanhem na saída.” Úrsula tirou o revólver da combinação e ele o pôs debaixo da esteira do catre. “E agora não se despeça”, con-cluiu com uma firmeza calma. “Não suplique a ninguém nem se rebaixe diante de ninguém. Faça de conta que já me fuzila-ram há muito tempo.” Ürsula mordeu os lábios para não chorar. — Ponha pedras quentes nos furúnculos — disse. Deu meia-volta e saiu do quarto. O Coronel Aureliano Buendía permaneceu de pé, pensativo, até que a porta se fe-chou. Então voltou a se deitar com os braços abertos. Desde o princípio da adolescência, quando começou a ser conscien-te dos seus presságios, pensava que a morte se havia de anun-ciar com um sinal definido, inequívoco, irrevogável, mas fal-tavam poucas horas para ele morrer, e o sinal não aparecia. Certa ocasião uma mulher muito bonita entrou no seu acam- pamento de Tucurinca e pediu aos sentinelas que lhe permi-tissem vê-lo. Deixaram-na passar, porque conheciam o fana-tismo de algumas mães que enviavam as filhas ao quarto dos guerreiros mais notáveis, conforme elas mesmas diziam, para melhorar a raça. O Coronel Aureliano Buendía estava naque-la noite terminando~o poema do homem que se extraviara na chuva, quando a moça entrou no quarto. Ele lhe deu as cos-tas para colocar a folha na gaveta com chave onde guardava os seus versos. E então sentiu. Agarrou a pistola na gaveta sem voltar o rosto. — Não dispare, por favor — disse. Quando se virou com a pistola preparada, a moça tinha abaixado a sua e não sabia o que fazer. Assim tinha consegui-do escapar de quatro entre onze emboscadas. Em compensa-ção, alguém que nunca foi capturado entrou certa noite no quartel revolucionário de Manaure e assassinou a punhaladas o seu amigo íntimo, o Coronel Magnífico Visbal, a quem ti-nha cedido o catre para que suasse uma febre. A poucos me-tros, dormindo numa rede no mesmo quarto, ele não se deu conta de nada. Eram inúteis os seus esforços para sistemati-zar os presságios. Apresentavam-se de repente, num çlarão de 124 natural, como uma convicção absoluta e momen-~ea, mas inatingível. Algumas vezes eram tão naturais que os identificava como presságios a não ser quando se cum-iam. Outras vezes eram taxativos e não se realizavam. Com eqüência não eram mais que toques vulgares de superstição. Mas quando o condenaram à morte e lhe pediram que expres-sasse o seu último desejo, não teve a menor dificuldade em identificar o presságio que lhe inspirou a resposta: — Peço que a sentença se cumpra em Macondo — disse. O presidente do tribunal não gostou. — Não banque o vivo — disse. — E um estratagema pa-ra ganhar tempo. — Se não cumprirem a sentença, o problema é de vocês — disse o coronel — mas esta é a minha última vontade. A partir de então os presságios o abandonaram. No dia em que Úrsula o visitou na prisão, depois de muito pensar, chegou à conclusão de que talvez a morte não se anunciasse daquela vez, porque não dependia do acaso e sim da vontade dos verdugos. Passou a noite em claro, atormentado pela dor dos furúnculos. Pouco antes da alvorada ouviu passos no cor-redor. “Já vem”, disse para si, e pensou sem motivo em José Arcadio Buendía, que naquele momento estava pensando ne-le, sob a madrugada lúgubre do castanheiro. Não sentiu me-do nem saudade, mas uma raiva intestinal diante da idéia de que aquela morte artificiosa não lhe permitiria saber do final de tantas coisas que deixava sem terminar. A porta se abriu e entrou o sentinela com uma caneca de café. No dia seguin-te, à mesma hora, ainda estava como então, irritado com a dor nas axilas, e aconteceu exatamente a mesma coisa. Na quinta-feira dividiu o doce de leite com os sentinelas e pôs a roupa limpa, que ficava apertada para ele, e as botinas de ver-mz. Ainda na sexta-feira não tinha sido fuzilado. Na realidade, não se atreviam a executar a sentença. A rebeldia do povo fez os militares pensarem que o fuzilamento do Coronel Aureliano Buendía traria graves conseqüências po-liticas, não só em Macondo, mas em todo o âmbito do panta-nal, de modo que consultaram as autoridades da capital da província. Na noite de sábado, enquanto esperavam a respos-125 ta, o Capitão Roque Carnicero foi com os outros oficiais àtaberna de Catarino. Apenas uma mulher, quase pressionada pór ameaças, atreveu-se a levá-lo ao quarto. “Elas não que-rem se deitar com um homem que sabem que vai morrer”, confessou ela. “Ninguém sabe como vai ser, mas todo mun-do anda dizendo que o oficial que fuzilar o Coronel Aurelia-no Buendía, e todos os soldados do pelotão, um por um, se-rão assassinados sem escapatória, mais cedo ou mais tarde, mesmo que se escondam no fim do mundo.” O Capitão Ro-que Carnicero comentou o fato com os outros oficiais, e estes comentaram com os seus superiores. No domingo, ainda que ninguém tivesse revelado com franqueza, ainda que nenhum ato militar tivesse perturbado a calma tensa daqueles dias, to-do o povo sabia que os oficiais estavam dispostos a escapar, sob toda espécie de pretextos, à responsabilidade da execução. No correio de segunda-feira chegou a ordem oficial: a execu-ção deveria se realizar ao fim de vinte e quatro horas. Naque-la noite os oficiais colocaram num gorro sete papeizinhos com os seus nomes, e o inclemente destino do Capitão Roque Car-nicero apontou para ele com o papelzinho premiado. “O meu azar não escolhe a ocasião”, disse ele com profunda amargu-ra. “Nasci filho da puta e morro filho da puta.’~ As cinco da madrugada escolheu ~ pelotão por sorteio, formou-o no pá-tio, e acordou o condenado com uma frase premonitória: — Vamos, Buendía — disse a ele. — Chegou a nossa hora. — Então era isto — respondeu o coronel. — Estava so-nhando que os furúnculos tinham arrebentado. Rebeca Buendía se levantava às três da madrugada desde que soube que Aureliano seria fuzilado. Ficava no quarto no escuro, vigiando pela janela entreaberta o muro do cemitério enquanto a cama em que estava sentada estremecia com os roncos de José Arcadio. Esperou a semana inteira com a mes-ma obstinação secreta com que em outra época esperava as cartas de Pietro Crespi. “Não vão fuzilar aqui”, dizia-lhe Jo-sé Arcadio. “Vão fuzilá-lo à meia-noite no quartel, para que ninguém saiba quem formou o pelotão, e o enterram lá mes-mo.” Rebeca continuou esperando. “São tão burros que vão 126 L aqui”, dizia. Tão certa estava que tinha previsto a forma abriria a porta para dar-lhe adeus com a mão. “Não trazê-lo pela rua”, insistia José Arcadio, “só com seis sol- -dos assustados, sabendo que o povo está disposto a tudo.” r~diferente à lógica do marido, Rebeca continuava na janela. — Você vai ver já que são burros a esse ponto. Na terça-feira, às cinco da madrugada, José Arcadio ti- tomado cafe e soltado os cachorros, quando Rebeca fe-a janela e se agarrou na cabeceira da cama para não cair. “Já o trazem”, suspirou. “Como está bonito.” José Arcadio chegou-se à janela, e o viu, trêmulo na claridade da alvorada, ~om umas calças que tinham sido suas na juventude. Estava de costas para o muro e tinha as mãos apoiadas na cintura os quistos ardentes das axilas impediam-no de abai-xar os braços. “O sujeito se amola tanto”, murmurava o Co-ronel Aureliano Buendía. “O sujeito se amola tanto para de-pois ser morto por seis maricas sem poder fazer nada.” Repe-tia isso com tanta raiva que quase parecia fervor, e o Capitão Roque Carnicero se comoveu porque pensou que ele estava rezando. Quando o pelotão apontou para ele, a raiva se tinha materializado numa substância viscosa e amarga que lhe ador-meceu a língua e o obrigou a fechar os olhos. Então desapa-receu o resplendor de alumínio do amanhecer e ele voltou a ver-se a si mesmo, bem garoto, de calças curtas e gravata-borboleta, e viu seu pai numa tarde esplêndida conduzindo-o para o interior da tenda, e viu o gelo. Quando ouviu o grito, pensou que era a ordem final do pelotão. Abriu os olhos com uma curiosidade de calafrio, esperando chocar-se com a tra-jetória incandescente dos projéteis, mas só encontrou o Capi-tão Roque Carnicero com as mãos para o alto, e José Arca-dio atravessando a rua com a sua espingarda pavorosa pron-ta para disparar. — Não abra fogo — disse o capitão a José Arcadio. — O senhor vem a mando da Divina Providência. Ali começou outra guerra. O Capitão Roque Carnicero e os seus seis homens foram com o Coronel Aureliano Buen-dia libertar o general revolucionário Victorio Medina, conde-nado à morte em Riohacha. Pensaram ganhar tempo atraves-127 sando a serra pelo caminho que seguira José Arcadio Buen-día para fundar Macondo, mas antes de uma semana se con-venceram de que era uma empresa impossível. De modo que tiveram que percorrer o perigoso caminho das encostas sem mais munição que a do pelotão de fuzilamento. Acampavam perto das aldeias, e um deles, com um peixinho de ouro na mão, entrava disfarçado em pleno dia e estabelecia contato com os liberais em repouso, que na manhã seguinte saíam pa- ra caçar e não voltavam nunca. Quando avistaram Riohacha numa curva da serra, o General Victorio Medina já havia si-do fuzilado. Os homens do Coronel Aureliano Buendía o pro-clamaram chefe das forças revolucionárias do litoral do Cari-be, com a patente de general. Ele assumiu o cargo mas recu-sou a patente e se impôs a condição de não aceitá-la enquanto não derrubasse o regime conservador. Ao fim de três meses tinham conseguido armar mais de mil homens, mas foram ex-terminados. Os sobreviventes alcançaram a fronteira oriental. Na vez seguinte em que se soube deles, tinham desembarcado no Cabo da Vela, procedentes do arquipélago das Antilhas e uma comunicação do governo, divulgada pelo telégrafo e pu-blicada em manchetes jubilosas por todo o país, anunciou a morte do Coronel Aureliano Buendía. Mas poucos dias de- pois, um telegrama-.circular que quase alcançou o anterior anunciava outra rebelião nas planícies do Sul. Assim come-çou a lenda da ubiqüidade do Coronel Aureliano Buendía. In-formações simultâneas e contraditórias declaravam-no vito- rioso em Villanueva, derrotado em Guacamayal, devorado pe-los índios Motilones, morto numa aldeia do pantanal e outra vez sublevado em Urumita. Os dirigentes liberais, que naque-le momento estavam negociando uma participação no Parla- mento, apontaram-no como um aventureiro sem representa-ção de partido. O governo nacional assimilou-o à categoria de bandoleiro e pôs a sua cabeça a um prêmio de cinco mil pesos. Ao fim de dezesseis derrotas, o Coronel Aureliano Buen-dia saiu da Guajira com dois mil indígenas bem armados, e a guarnição surpreendida durante o sono abandonou Rioha-cha. Ali instituiu o seu quartel-general, e proclamou a guerra total contra o regime. A primeira notificação que recebeu do 128 ç governo foi a ameaça de fuzilar o Coronel Gerineldo Márquez ao fim de quarenta e oito horas, se não se retirasse com as suas forcas até a fronteira oriental. O Coronel Roque Carni-cero, que era então o chefe do seu estado-maior, entregou- lhe o telegrama com um gesto de consternaçãO, mas ele o leu com imprevisível alegria. — Que bom! — exclamou. — Já temos telégrafo em Macondo. Sua resposta foi taxativa. Dentro de três meses esperava estabelecer o seu quartel-general em Macondo. Se então não encontrasse vivo o Coronel Gerineldo Márquez, fuzilaria su-mariamente toda a oficialidade que estivesse prisioneira no mo-mento, começando pelos generais, e baixaria ordens aos seus subordinados para que procedessem de igual forma até o fi-nal da guerra. Três meses depois, quando entrou vitorioso em Macondo, o primeiro abraço que recebeu na estrada do pan-tanal foi o do Coronel Gerineldo Márquez. A casa estava cheia de crianças. Ursula tinha acolhido San-ta Sofía de la Piedad, com a filha mais velha e um par de gê-meos que nasceram cinco meses depois do fuzilamento de Ar-cadio. Contra a última vontade do fuzilado, batizou a meni-na com o nome de Remedios. “Estou certa de que foi isso o que Arcadio quis dizer”, alegou. “Não vamos chamá-la de Ursula, porque se sofre muito com esse nome.” Os gêmeos se chamaram José Arcadio Segundo e Aureliano Segundo. Amaranta tomou o encargo de cuidar de todos. Colocou ca-deirinhas de madeira na sala, e instituiu um jardim de infân-cia com outras crianças de famílias vizinhas. Quando o Coro-nel Aureliano Buendía regressou, entre estampidos de fogue-tes e repiques de sinos, um coro infantil lhe deu as boas-vindas na casa. Aureliano José, comprido como o avô, vestido de ofi-cial revolucionário, rendeu- lhe honras militares. Nem todas as notícias eram boas. Um ano depois da fu-gado Coronel Aureliano Buendía, José Arcadio e Rebeca fo-ram viver na casa construída por Arcadio. Ninguém soube da sua intervenção para impedir o fuzilamento. Na casa nova, situada no melhor lugar da praça, à sombra de uma amen-doeira privilegiada com três ninhos de pintassilgos com uma 129 r porta grande para as visitas e quatro janelas para a luz, esta-beleceram um lar aprazível. As antigas amigas de Rebeca, en-tre elas quatro irmãs Moscote que continuavam solteiras, rei-niciaram as sessões de bordado, interrompidas anos antes na varanda das begônias. José Arcadio continuou desfrutando as terras usurpadas, cujos títulos foram reconhecidos pelo Go-verno Conservador. Todas as tardes era visto voltando a ca-valo, com os seus cães monteses e a sua espingarda de dois canos, e uma fieira de coelhos pendurados na sela. Uma tar-de de setembro, diante da ameaça de uma tempestade, voltou para casa mais cedo que de costume. Cumprimentou Rebeca na copa, amarrou os cachorros no quintal, pendurou os coe-lhos na cozinha, para salgá-los mais tarde, e foi para o quar-to trocar de roupa. Rebeca declarou depois que quando o ma-rido entrou no quarto, ela se fechou no banheiro e não perce-beu nada. Era uma versão difícil de acreditar, mas não havia outra mais verossímil, e ninguém pôde conceber um motivo para que Rebeca assassinasse o homem que a tinha feito feliz. Este foi talvez o único mistério que nunca se esclareceu em Macondo. Logo que José Arcadio fechou a porta do quarto, o estampido de um tiro retumbou na casa. Um fio de sangue passou por debaixo da porta, atravessou a sala, saiu para a rua, seguiu reto pelas calçadas irregulares, desceu degraus e subiu pequenos muros, passou de largo pela Rua dos Turcos, dobrou uma esquina à direita e outra à esquerda, virou em ângulo reto diante da casa dos Buendía, passou por debaixo da porta fechada, atravessou a sala de visitas colado às pare-des para não manchar os tapetes, continuou pela outra sala, evitou em curva aberta a mesa da copa, avançou pela varan-da das begônias e passou sem ser visto por debaixo da cadeira de Amaranta, que dava uma aula de Aritmética a Aureliano José, e se meteu pela despensa e apareceu na cozinha onde Ursula se dispunha a partir trinta e seis ovos para o pão. — Ave Maria Puríssima! — gritou Ursula. Seguiu o fio de sangue em sentido contrário, e em busca da sua origem atravessou a despensa, passou pela varanda das begônias onde Aureliano José cantava que três e três são seis e seis mais três são nove, e atravessou a copa e as salas e se-130 guiu em linha reta pela rua, e em seguida dobrou à direita e depois à esquerda até a Rua dos Turcos, sem se lembrar que ainda trazia vestidos o avental de cozinha e as chinelas casei-ras, e saiu para a praça e se meteu pela porta de uma casa on-de não havia estado nunca, e empurrou a porta do quarto e quase se sufocou com o cheiro de pólvora queimada, e encon-trou José Arcadio caído de bruços no chão, sobre as polainas que acabava de tirar, e viu a fonte original do fio de sangue que já havia deixado de fluir do seu ouvido direito. Não en- contraram nenhuma ferida no seu corpo nem puderam locali-zar a arma. Tampouco foi possível tirar o penetrante cheiro de pólvora do cadáver. Primeiro o lavaram três vezes com sa-bão e bucha, depois o esfregaram com sal e vinagre, em se- guida com cinza e limão, e por último o meteram num tonel de água sanitária e o deixaram repousar seis horas. Tanto o esfregaram que os arabescos da tatuagem já começavam a des-botar. Quando conceberam o recurso desesperado de temperá-lo com pimenta e cominho e folhas de louro e ferva-lo um dia inteiro em fogo lento, já começara a se decompor, e tiveram que enterrá-lo às pressas. Fecharam-no hermeticamente num ataúde especial de dois metros e trinta centímetros de compri-mento e um metro e dez centímetros de largura, reforçado por dentro com chapas de ferro e aparafusado com cavilhas de aço, e ainda assim se percebia o cheiro nas ruas por onde pas-sou o enterro. O Padre Nicanor, com o fígado inchado e ten-so como um tambor, benzeu-o da cama. Ainda que nos me-ses seguintes reforçassem a tumba com paredes superpostas e jogassem entre elas cinza socada, serragem e cal viva, o ce-mitério continuou cheirando a pólvora até muitos anos mais tarde, quando os engenheiros da companhia bananeira reco- briram a sepultura com uma couraça de cimento armado. Logo que levaram o cadáver, Rebeca fechou as portas da casa e se enterrou em vida, coberta por uma grossa crosta de desdém que nenhuma tentação terrena conseguiu romper. Saiu à rua numa ocasião, já muito velha, com uns sapatos cor de prata antiga e um chapéu de flores minúsculas, na época em que passou pelo povoado o Judeu Errante e provocou um calor tão intenso que os pássaros varavam as telas das janelas para 131 morrer nos quartos. A última vez que alguém a viu com vida foi quando matou com um tiro certeiro um ladrão que tentou forçar a porta da sua casa. Salvo Argénida, sua criada e con-- fidente, ninguém voltou a ter contato com ela desde então. Em certa ocasião se soube que escrevia cartas para o Bispo, a quem considerava como primo-irmão seu, mas nunca se disse que tivesse recebido resposta. O povo se esqueceu dela. Apesar do seu regresso triunfal, o Coronel Aureliano Buendía não se entusiasmava com as aparências. As tropas do governo abandonavam as praças sem resistência, e isso sus-- :1 citava na população liberal uma ilusão de vitória que não con-- vinha desmentir, mas os revolucionários sabiam da verdade, e mais que ninguém o Coronel Aureliano Buendía. Embora nesse momento mantivesse mais de cinco mil homens sob as suas ordens e dominasse dois estados do litoral, tinha cons-- ciência de estar encurralado contra o mar, e metido numa si-- tuação política tão confusa que quando ordenou restaurar a torre da igreja arrebentada por um tiro de canhão do exérci-- to, o Padre Nicanor comentou no seu leito de enfermo: “Isto é um disparate: os defensores da fé de Cristo destroem o tem-- plo e os maçons mandam consertar.” Procurando uma vál-- vula de escape, passava horas e horas no telégrafo, conferen-- ciando com os chefes de outras praças, e cada vez saía com a impressão mais definida de que a guerra estava estancada. Quando se recebiam notícias de novos triunfos liberais, eles eram proclamados com mensagens de júbilo, mas ele media nos mapas o seu verdadeiro alcance, e compreendia que as suas hostes estavam penetrando na selva, se defendendo da malá-- ria e dos mosquitos, avançando no sentido contrário ao da realidade. “Estamos perdendo tempo”, queixava-se diante dos seus oficiais. “Estaremos perdendo tempo enquanto os cor- nos do partido estiverem mendigando um assento no Congres-- so.” Em noites de insônia, estendido de peito para cima na rede pendurada no mesmo quarto em que esteve condenado à morte, evocava a imagem dos advogados vestidos de negro que abandonavam o palácio presidencial no gelo da madru-gada com a gola das casacas levantada até as orelhas, esfre-gando as mãos, cochichando, refugiando-se nos cafés lúgu-132 L bres do amanhecer, para especular sobre o que quis dizer o presidente quando disse que sim, ou o que quis dizer quando disse que não, e para supor inclusive o que o presidente esta-va pensando quando disse uma coisa inteiramente diferente, enquanto ele espantava os mosquitos a trinta e cinco graus de temperatura, sentindo que se aproximava a madrugada temí-vel em que teria que dar aos seus homens a ordem de se atirar ao mar. Certa noite de incerteza em que Pilar Temera cantava no pátio com a tropa, ele pediu que lesse o seu futuro no bara-lho. “Cuidado com a boca”, foi tudo quanto Pilar Temera tirou a limpo, depois de estender e embaralhar as cartas três vezes. “Não sei o que quer dizer, mas o sinal é muito claro: cuidado com a boca.” Dois dias depois alguém deu a um or-denança uma caneca de café sem açúcar, e o ordenança a pas-sou a outro, e este a outro, até que chegou de mão em mão ao escritório do Coronel Aureliano Buendía. Não tinha pedi-do café, mas já que estava ali, o coronel tomou. Levava uma dose de noz-vômica suficiente para matar um cavalo. Quan-do o levaram para casa, estava duro e curvado e tinha a lín-gua partida entre os dentes. Ursula disputou-o à morte. De-pois de lavar-lhe o estômago com vomitórios, envolveu-o em cobertores quentes e lhe deu claras de ovos durante dois dias, até que o corpo estragado recobrou a temperatura normal. No quarto dia estava fora de perigo. Contra a sua vontade, pres-sionado por Úrsula e os oficiais, permaneceu na cama mais uma semana. Só então soube que não tinham queimado os seus versos. “Não quis me precipitar”, explicou Ursula. “Na-quela noite, quando ia acender o forno, achei que era melhor esperar que trouxessem o cadáver.” Na neblina da convales-cença, rodeado pelas empoeiradas bonecas de Remedios, o Co-ronel Aureliano Buendía evocou na leitura dos seus versos os instantes decisivos da sua existência. Voltou a escrever. Du-rante muitas horas, ao lado dos sobressaltos de uma guerra sem futuro, traduziu em versos rimados as suas experiências na borda da morte. EntAo os seus pensamentos se fizeram tão claros que os pôde examinar pelo direito e pelo avesso. Uma noite perguntou ao Coronel Gerineldo Márquez: 133 — Diga uma coisa, compadre: por que você está brigando? — Por que há de ser, compadre. — respondeu o Coro-nel Gerineldo Márquez — pelo grande Partido Liberal. — Feliz é você que sabe disso — respondeu ele. — Eu, de minha parte, só agora percebo que estou brigando por orgulho. — Isso é ruim — disse o Coronel Gerineldo Márquez. O Coronel Aureliano Buendía se divertiu com o seu so-bressalto. “Naturalmente”, disse. “Mas em todo caso, é me-lhor isso que não saber por que se briga.” Olhou- o nos olhos, e acrescentou sorrindo: — Ou brigar como você, por alguma coisa que não sig-nifica nada para ninguém. Seu orgulho o havia impedido de fazer contatos com os grupos armados do interior do país enquanto os dirigentes do-partido não retificassem em público a sua declaração de que era um bandoleiro. Sabia, entretanto, que logo que deixasse de lado esses escrúpulos quebraria o círculo vicioso da guer-ra. A convalescença permitiu-lhe refletir. Então conseguiu que Ursula lhe desse o resto da herança enterrada e as suas vulto-sas economias: nomeou o Coronel Gerineldo Márquez chefe civil e militar de Ma~ondo, e foi estabelecer contato com os grupos rebeldes do interior. O Coronel Gerineldo Márquez não só era o homem de mais confiança do Coronel Aureliano Buendía, mas também era recebido por CJrsula como se fosse um membro da famí-lia. Frágil, tímido, de uma boa educação natural, estava en- tretanto melhor capacitado para a guerra que para o gover-- no. Os seus assessores políticos o enredavam com facilidade em labirintos teóricos. Mas conseguiu impor em Macondo o ambiente de paz rural com que sonhava o Coronel Aureliano Buendía para morrer de velho, fabricando peixinhos de ouro. Embora vivesse na casa de seus pais, almoçava na de Ürsula duas ou três vezes por semana. Iniciou Aureliano José no ma-- :1 nejo das armas de fogo, deu-lhe uma instrução militar pre-- matura e durante vários meses levou-o para viver no quartel, com o consentimento de Ursula, para que se fosse fazendo ho. 134 ç mem. Muitos anos antes, sendo ainda quase um menino, Ge-rineldo Márquez havia declarado o seu amor a Amaranta. Ela estava na época tão iludida com a sua paixão solitária por Pie-tro Crespi que se riu dele. Gerineldo Márquez esperou. Certa vez enviou da prisão um bilhetinho a Amaranta, pedindo o favor de bordar uma dúzia de lenços de cambraia com as ini-ciais do seu pai. Mandou-lhe o dinheiro. Ao fim de uma se-mana, Amaranta levou-lhe na prisão a dúzia de lenços borda-dos junto com o dinheiro, e ficaram várias horas falando do passado. “Quando eu sair daqui me caso com você”, disse Gerineldo Márquez ao se despedir. Amaranta riu, mas conti-nuou pensando nele enquanto ensinava as crianças a ler, e de-sejou reviver para ele a sua paixão juvenil por Pietro Crespi. Aos sábados, dia de visita aos presos, passava pela casa dos pais de Gerineldo Márquez e os acompanhava à prisão. Um desses sábados, Úrsula se surpreendeu ao vê-la na cozinha, es-perando que saíssem os biscoitos do forno para escolher os melhores e embrulhá-los num guardanapo que bordara espe-cia]inente para a ocasião. — Case com ele — disse a ela. — Dificilmente você en-contrará outro homem como esse. Amaranta fingiu uma reação de desprezo. — Não preciso de andar caçando homens — respondeu. — Levo estes biscoitos para Gerineldo porque me dá pena sa-ber que mais cedo ou mais tarde vão fuzilá-lo. Falou isso sem pensar, mas foi nessa época que o gover-no tornou pública a ameaça de fuzilar o Coronel Gerineldo Márquez se as forças rebeldes não entregassem Riohacha. As visitas foram suspensas. Aniaranta se fechou para chorar, an-gustiada por um sentimento de culpa semelhante ao que a ator-mentara quando da morte de Remedios, como se novamente tivessem sido as suas palavras irrefletidas as responsáveis por unia morte. Sua mãe a consolou. Assegurou-lhe que o Coro-nel Aureliano Buendía faria alguma coisa para impedir o fu- zilainento, e prometeu que ela mesma se encarregaria de atrair Gerineldo Márquez, quando terminasse a guerra. Cumpriu a promessa antes do prazo previsto. Quando Gerineldo Márquez voltou para casa investido da sua nova dignidade de chefe ci- 135 vil e militar, recebeu-o como a um filho, concebeu refinadas gentilezas para retê-lo, e rogou com todo o ânimo do seu co-ração que recordasse o seu propósito de se casar com Ama-ranta. As suas súplicas pareciam certeiras. Nos dias em que ia almoçar lá, o Coronel Gerineldo Márquez passava a tarde na varanda das begônias jogando xadrez chinês com Amaranta. Ürsula levava para eles o café com leite e biscoitos e tomava conta das crianças para que não os incomodassem. Amaran-ta, na realidade, se esforçava por acender no seu coração as cinzas esquecidas da sua paixão juvenil. Com uma ansiedade que chegou a ser intolerável, esperava os dias de almoço, as tardes de xadrez chinês, e o tempo ia voando na companhia daquele guerreiro de nome nostálgico, cujos dedos tremiam imperceptivelmente ao mover as peças. Mas no dia em que o Coronel Gerineldo Márquez lhe reiterou a sua vontade de ca-sar, ela o recusou. — Não vou me casar com ninguém — disse — e ainda menos com você, que ama tanto a Aureliano que vai cásar co-migo porque não pode casar com ele. O Coronel Gerineldo Márquez era um homem paciente. “Voltarei a insistir”, disse. “Mais cedo ou mais tarde ela se convence.” Continuou freqüentando a casa. Trancada no quar-to, remoendo um pPanto secreto, Amaranta tapava os ouvi-dos com os dedos para não escutar a voz do pretendente que contava a Ursula as últimas notícias da guerra, e apesar dc estar morrendo de vontade de vê-lo, teve forças para não sair ao seu encontro. O Coronel Aureliano Buendía dispunha então de tempo para enviar de quinze em quinze dias um informe pormenori-zado a Macondo. Mas apenas uma vez, quase oito meses de-pois de ter partido, Ürsula lhe escreveu. Um emissário espe-cial trouxe em casa um envelope lacrado, dentro do qual ha-via um papel escrito com a caligrafia preciosa do coronel: To-mem muito cuidado com papai porque ele vai morrer. Ürsula se alarmou. “Se Aureliano está dizendo, Aureliano sabe”, dis-se. E pediu ajuda para levar José Arcadio Buendía para o seu quarto. Não só estava tão pesado como sempre, mas também na sua prolongada estadia debaixo do castanheiro tinha de-136 senvolvido a faculdade de aumentar de peso voluntariamen-te, a ponto de sete homens não poderem com ele e terem de levá-lo arrastado para a cama. Um bafo de fungos novos, de orelha-de-pau, de antiga e concentrada intempérie impregnou o ar do quarto quando começou a respirá-lo o velho colossal macerado pelo sol e pela chuva. No dia seguinte não amanhe-ceu na cama. Depois de procurá-lo por todos os quartos, Ur-sula o encontrou outra vez debaixo do castanheiro. Então o amarraram na cama. Apesar da sua força intacta, José Arca-dio Buendía não estava em condições de lutar. Tanto fazia para ele. Se voltou ao castanheiro não foi por vontade, mas por um costume do corpo. Úrsula cuidava dele, dava-lhe de co- mer, levava-lhe notícias de Aureliano. Mas na realidade, a úni-ca pessoa com quem ele podia ter contato, há muito tempo já, era Prudencio Aguilar. Já quase pulverizado pela profun-da decrepitude da morte, Prudencio Aguilar vinha duas vezes por dia conversar com ele. Falavam de galos. Prometiam fa-zer uma criação de animais magníficos, não tanto para des-frutar umas vitórias que no momento já não lhes fariam fal-ta, mas para ter alguma coisa com que se distrair nos tediosos domingos da morte. Era Prudencio Aguilar quem o limpava, quem lhe dava de comer e quem lhe levava notícias esplêndi-das de um desconhecido que se chamava Aureliano e que era coronel na guerra. Quando só, ele se consolava com o sonho dos quartos infinitos. Sonhava que se levantava da cama, abria a porta e passava para outro quarto igual, com a mesma ca-ma de cabeceira de ferro batido, a mesma poltrona de vime e o mesmo quadrinho da Virgem dos Remedios na parede do fundo. Desse quarto passava para outro exatamente igual, cuja porta abria para passar para outro exatamente igual, e em se-guida para outro exatamente igual, até o infinito. Gostava de ir de quarto em quarto, como numa galeria de espelhos para-lelos, até que Prudencio Aguilar lhe tocava o ombro. Então voltava de quarto em quarto, acordando para trás, percorrendo o caminho inverso, e encontrava Prudencio Aguilar no quar-to da realidade. Uma noite, porém, duas semanas depois de o terem levado para a cama, Prudencio Aguilar tocou-lhe o ombro num quarto intermediário, e ele ficou ali para sempre, 137 pensando que era o quarto real. Na manhã seguinte, Ürsula lhe levava o café quando viu se aproximar um homem pelo corredor. Era pequeno e atarracado, com um terno de fazen-da negra e um chapéu também negro, enorme, enterrado até os olhos taciturnos. “Meu Deus”, pensou Ursula. “Eu teria jurado que era Melquíades.” Era Cataure, o irmão de Visita-ción, que havia abandonado a casa fugindo da peste da insô-nia, e de quem nunca se tornou a ter notícia. Visitación perguntou-lhe por que tinha voltado, e ele respondeu na sua língua solene: — Vim ao funeral do rei. Então entraram no quarto de José Arcadio Buendía, sacudiram-no com toda a força, gritaram-lhe ao ouvido, pu-seram um espelho diante das fossas nasais, mas não puderam despertá-lo. Pouco depois, quando o carpinteiro tomava as medidas para o ataúde, viram pela janela que estava caindo uma chuvinha de minúsculas flores amarelas. Caíram por to-da a noite sobre o povoado, numa tempestade silenciosa, e cobriram os tetos e taparam as portas, e sufocaram os ani-mais que dormiam ao relento. Tantas flores caíram do céu que as ruas amanheceram atapetadas por uma colcha compacta, e eles tiveram que abrir caminho com pás e ancinhos para que o enterro pudesse passar. 138 SENTADA na cadeira de balanço de vime, com o traba-lho interrompido no colo, Amaranta contemplava Aureliano José, que tinha o queixo coberto de espuma e afiava a nava-lha numa correia para se barbear pela primeira vez. Sangrou as espinhas, cortou o lábio superior tentando modelar um bi-gode de pelos louros, e depois de tudo ficou igual a antes, mas o trabalhoso processo deixou em Amaranta a impressão de que naquele instante tinha começado a envelhecer. — Voce está igual a Aureliano quando tinha a sua idade — disse. — Já é um homem. Já o era há muito tempo, desde o dia longínquo em que Amaranta acreditou que ainda era um menino e continuou se despindo no banheiro diante dele, como fizera sempre, como 139 ‘4 se acostumara a fazer desde que Pilar Temera o entregou a ela para que acabasse de criá-lo. Na primeira vez em que ele a viu, a única coisa que lhe chamou a atenção foi a profun-da depressão entre os seios. Era na época tão inocente que perguntou o que havia acontecido, e Amaranta fingiu ca-var o peito com a ponta dos dedos e respondeu: “Tiraram fa tias e fatias e fatias.” Tempos depois, quando ela se restabe leceu do suicídio de Pietro Crespi e voltou a se banhar com Aureliano José, este já não se fixou na depressão, e sim expe-rimentou um estremecimento desconhecido diante da visão dos seios esplêndidos de mamilos arroxeados. Continuou a examiná-la, descobrindo palmo a palmo o milagre da sua in-timidade, e sentiu que a sua pele se arrepiava na contempla-ção, como se arrepiava a pele dela ao contato da água. Desde bem garoto tinha o costume de abandonar a rede para ama-nhecer na cama de Amaranta, cujo contato tinha a virtude de dissipar o medo do escuro. Desde o dia, porém, em que to-mou consciência da sua nudez, não era o medo do escuro que o impulsionava a se meter no seu mosquiteiro e sim o desejo de sentir a respiração morna de Amaranta ao amanhecer. Certa madrugada, na época em que ela recusou o Coronel Gerinel-do Márquez, Aureliano José acordou com a sensação de falta de ar. Sentiu os ded.s de Amaranta como uns vermezinhos quentes e ansiosos que procuravam o seu ventre. Fingindo dor-mir mudou de posição para eliminar toda e qualquer dificul-dade, e então sentiu a mão sem a atadura negra mergulhando como um molusco cego entre as algas da sua ansiedade. Em-bora aparentassem ignorar o que ambos sabiam, e o que cada um sabia que o outro sabia, a partir daquela noite, ficaram mancomunados por uma cumplicidade inviolável. Aureliano José não podia conciliar o sono enquanto não escutava a val-sa das doze no relógio da sala, e a madura donzela cuja pele começava a entristecer não tinha um só instante de sossego enquanto não sentia deslizar no mosquiteiro aquele sonâm-bulo que ela tinha criado, sem pensar que seria um paliativo para a sua solidão. Então, não só dormiram juntos, nus, tro-cando carícias extenuantes, como também se perseguiam pe-los cantos da casa e se fechavam nos quartos a qualquer ho-140 ra, num permanente estado de exaltação sem alívio. Quase fo-ram surpreendidos por Úrsula, uma tarde em que ela entrou na despensa quando eles começavam a se beijar. “Você gosta muito da sua tia?” perguntou ela de um modo inocente a Au- reliano José. Ele respondeu que sim. “Faz bem”, concluiu Ür-sula e acabou de medir a farinha para o pão e voltou à cozi-nha. Aquele episódio tirou Amaranta do delírio. Percebeu que tinha ido longe demais, que já não estava brincando com uma criança aos beijinhos, e sim chafurdando numa paixão outo-nal, perigosa e sem futuro, e cortou tudo de uma vez. Aure-liano José, que na época terminava o serviço militar, acabou por admitir a realidade e foi dormir no quartel. Aos sábados ia com os soldados à taberna de Catarino. Consolava-se da sua abrupta solidão, da sua adolescência prematura, com mulhe-res que cheiravam a flores mortas e que ele idealizava nas tre-vas e transformava em Amaranta, através de ansiosos esfor-ços de imaginação. Pouco depois, começaram a chegar notícias contraditó-rias da guerra. Enquanto o próprio governo admitia os pro-gressos da rebelião, os oficiais de Macondo tinham informa-ções confidenciais da iminência de uma paz negociada. No prin- cípio de abril, um emissário especial se identificou diante do Coronel Gerineldo Márquez. Confirmou-lhe que, na verda-de, os dirigentes do partido tinham estabelecido contato com chefes rebeldes do interior, e estavam às vésperas de entrar num acordo para o armistício, em troca de três ministérios para os liberais, uma representação minoritária no Parlamento e a anistia geral para os rebeldes que depusessem as armas. O emissário trazia uma ordem altamente confidencial do Coro-nel Aureliano Buendía, que não estava de acordo com os ter- mos do armistício. O Coronel Gerineldo Márquez devia sele-cionar cinco dos seus melhores homens e se preparar para aban-donar com eles o país. A ordem foi cumprida dentro do mais absoluto segredo. Uma semana antes que se anunciasse o acor-do, e no meio de uma saraivada de boatos contraditórios, o Coronel Aureliano Buendía e dez oficiais de confiança, entre eles o Coronel Roque Carnicero, chegaram sigilosamente a Ma-condo depois da meia-noite, dispersaram a guarnição, enter-141 raram as armas e destruíram os arquivos. Ao amanhecer, já haviam abandonado o povoado com o Coronel Gerineldo Mar-quez e os seus cinco oficiais. Foi uma operação tão rápida e confidencial que Úrsula não soube de nada a não ser na últi-ma hora, quando alguém deu umas pancadinhas na janela do seu quarto e murmurou: “Se a senhora quer ver o Coronel Aureliano Buendía, chegue na porta agora.” Ursula pulou da cama e saiu na porta de camisola, e só conseguiu perceber o galope da cavalaria, que abandonava o povoado no meio de uma silenciosa poeirada. Apenas no dia seguinte veio a saber que Aureliano José havia ido embora com o pai. Dez dias depois que um comunicado conjunto do gover-no e da oposição anunciou o fim da guerra, veio a notícia do primeiro levante armado do Coronel Aureliano Buendía na fronteira ocidental. Suas forças escassas e mal armadas foram desbaratadas em menos de uma semana. Mas no decurso do ano, enquanto liberais e conservadores procuravam fazer o país acreditar na reconciliação, ele tentou mais sete rebeliões. Certa noite bombardeou Riohacha de uma escuna, e a guar- nição, em represália, tirou da cama os quatorze liberais mais conhecidos da povoação e os fuzilou. Durante mais de quinze dias, Aureliano ocupou uma alfândega de fronteira, e dali di-rigiu à nação um chamad’o à guerra geral. Outra das suas ex-pedições perdeu três meses na selva, numa disparatada tenta- tiva de atravessar mais de mil e quinhentos quilômetros de ter-ritórios virgens para proclamar a guerra nos subúrbios da ca-pital. Certa ocasião, esteve a menos de vinte quilômetros de Macondo, e foi obrigado pelas patrulhas do governo a se in-ternar nas montanhas, muito perto da região encantada onde o seu pai encontrara muitos anos antes o fóssil de um galeão espanhol. Nessa época, morreu Visitación. Deu-se ao luxo de mor-rer de morte natural, depois de haver renunciado a um trono por medo da insônia, e a sua última vontade foi que desenter-rassem de debaixo da sua cama o ordenado economizado por mais de vinte anos, e o mandassem ao Coronel Aureliano Buen-dia, para que continuasse a guerra. Ursula, porém, não se deu ao trabalho de tirar esse dinheiro, porque naqueles dias corria 142 boato de que o Coronel Aureliano Buendía tinha sido mor-num desembarque perto da capital da província. A notícia )flcial — a quarta em menos de dois anos — foi tida como rerdadeira durante quase seis meses pois nada se voltou a sa-dele. De repente, quando Ursula e Amaranta já haviam ~rposto um novo luto aos anteriores, chegou uma notícia linária. O Coronel Aureiano Buendía estava vivo, mas tinha desistido de fustigar o governo do seu país, se havia agregado ao federalismo triunfante em outras re-do Caribe. Aparecia com nomes diferentes, cada vez longe da sua terra. Depois se haveria de saber que a idéia -~ então o animava era a unificação das forças federalistas ~Ainérica Central, para varrer os regimes conservadores, do Masca à Patagônia. A primeira notícia direta que Ursula re-cebeu dele, vários anos depois de ter partido, foi uma carta amassada e apagada que andou de mão em mão, enviada de Santiago de Cuba. — Nós o perdemos para sempre — exclamou Úrsula ao la-la. — Nesse andar, vai passar o Natal no fim do mundo. A pessoa a quem o disse, que foi a primeira a quem mos-trou a carta, era o general conservador José Raquel Monca-da, alcaide de Macondo desde que terminou a guerra. “Esse Aureliano”, comentou o General Moncada, “pena que nao seja conservador.” Admirava-o de verdade. Como muitos ci-vis conservadores, José Raquel Moncada tinha feito a guerra em defesa do seu partido e alcançado o título de general no campo de batalha, embora carecesse de vocação militar. Pelo contrário, como acontecia a muitos dos seus correligionários, era antimilitarista. Considerava o pessoal de armas como va-gabundos sem princípios, intrigantes e ambiciosos, especialistas em enfrentar os civis para cair na desordem. Inteligente, sim-pático, sanguíneo, bom garfo e fanático por brigas de galo, foi em certo momento o adversário mais temível do Coronel Aureliano l3uendía. Conseguiu impor a sua autoridade sobre os militares de carreira num amplo setor do litoral. Certa vez em que se viu forçado, por conveniências estratégicas, a aban-donar uma praça às forças do Coronel Aureliano Buendía, deixou-lhe duas cartas. Numa delas, muito extensa, convidava- 143 -4 boato de que o Coronel Aureliano Buendía tinha sido mor-num desembarque perto da capital da província. A notícia ~flcial — a quarta em menos de dois anos — foi tida como ‘erdadeira durante quase seis meses pois nada se voltou a sa-dele. De repente, quando Ursula e Amaranta já haviam erposto um novo luto aos anteriores, chegou uma notícia linária. O Coronel Aureliano Buendía estava vivo, mas tinha desistido de fustigar o governo do seu país, se havia agregado ao federalismo triunfante em outras re-do Caribe. Aparecia com nomes diferentes, cada vez longe da sua terra. Depois se haveria de saber que a idéia então o animava era a unificação das forças federalistas ~América Central, para varrer os regimes conservadores, do Masca à Patagônia. A primeira notícia direta que Ursula re-cebeu dele, vários anos depois de ter partido, foi uma carta amassada e apagada que andou de mão em mão, enviada de Santiago de Cuba. — Nós o perdemos para sempre — exclamou Úrsula ao la-la. — Nesse andar, vai passar o Natal no fim do mundo. A pessoa a quem o disse, que foi a primeira a quem mos-trou a carta, era o general conservador José Raquel Monca-da, alcaide de Macondo desde que terminou a guerra. “Esse Aureliano”, comentou o General Moncada, “pena que nao seja conservador.” Admirava-o de verdade. Como muitos ci-vis conservadores, José Raquel Moncada tinha feito a guerra em defesa do seu partido e alcançado o título de general no campo de batalha, embora carecesse de vocação militar. Pelo contrário, como acontecia a muitos dos seus correligionários, era antimilitarista. Considerava o pessoal de armas como va-gabundos sem princípios, intrigantes e ambiciosos, especialistas em enfrentar os civis para cair na desordem. Inteligente, sim-pático, sanguíneo, bom garfo e fanático por brigas de galo, foi em certo momento o adversário mais temível do Coronel Aureliano Buendía. Conseguiu impor a sua autoridade sobre os militares de carreira num amplo setor do litoral. Certa vez em que se viu forçado, por conveniências estratégicas, a aban-donar uma praça às forças do Coronel Aureliano Buendía, deixou-lhe duas cartas. Numa delas, muito extensa, convidava-143 4 o a participar de uma campanha em conjunto para humani-zar a guerra. A outra carta era para a sua esposa, que vivia em território liberal, e a deixou com o pedido de fazê-la che-gar ao seu destino. A partir de então, mesmo nos períodos mais encarniçados da guerra, os dois comandantes combina-ram tréguas para trocar prisioneiros. Eram pausas com um certo ambiente festivo e que o General Moncada aproveitava para ensinar o Coronel Aureliano Buendía a jogar xadrez. Tornaram-se grandes amigos. Chegaram inclusive a pensar na possibilidade de coordenar os elementos populares de ambos os partidos para acabar com a influência dos militares e com os políticos profissionais, e instaurar um regime humanitário que aproveitasse o melhor de cada doutrina. Quando termi-nou a guerra, enquanto o Coronel Aureliano Buendía esca-pulia pelos desfiladeiros da subversão permanente, o General Moncada foi nomeado interventor de Macondo. Vestiu o seu traje civil, substituiu os militares por agentes da policia de-sarmados, fez respeitar as leis de anistia e auxiliou algumas das famílias dos liberais mortos em campanha. Conseguiu que Macondo fosse promovido a município e foi o seu primeiro alcaide, e criou um ambiente de confiança que fez com que se pensasse na guerra como num absurdo pesadelo do passa-do. O Padre Nicanor, consumido pelas febres hepáticas, foi substituído pelo Padre Coronel, a quem chamavam O Cachor-rinhzo,* veterano da primeira guerra federalista. Bruno Cres- *Ë interessante observar que esta mesma alcunha é a por que se faz conhecida uma das imagens de Cristo de maior devoção (El Cachorro), em Sevilha, na época da Se-mana Santa. Muitas são as lendas que correm para explicar tal apelido, mas nenhu-ma delas é suficientemente expiicita. Cumpre apenas notar que cachorro, em espa. nhol, significa fundamentalmente filhote (de cão, lobo, leão etc....). Por outro lado, uma das figuras que a superstição traz para o diabo é exatamente o cão. A dose de ironia que haveria na alcunha do padre torna-se mais densa, se o opusermos ao sa-cerdote anterior de Macondo, a cada momento provando a sua participação divina através do chocolate — beber chocolate é outro hábito espanhol de cunho popular. Ê bom não esquecer também a base militarista da Igreja espanhola, a ordem dos je-suítas, fundada por Santo inácio de Loyola, antigo guerreiro que transpós a discipli-na militar à situação eclesiástica. A América Espanhola foi colonizada basicamente por religiosos-guerreiros, na velocidade adquirida da Reconquista da Penfnsula aos árabes. “...Padre Coronel a quem chamavam O Cachorrinho”, portanto, é mais que explicável como caricatura cultural de linha espanhola. (N. T.) 144 pi, casado com Amparo Moscote, e cuja loja de brinquedos e instrumentos musicais não parava de prosperar, construiu um teatro, que as companhias espanholas incluíram nos seus itinerários. Era um vasto salão ao ar livre, com bancos de ma-deira, uma cortina de veludo com máscaras gregas, e três gui-chês em forma de cabeça de leão por cujas bocas abertas se vendiam os bilhetes. Foi também por esta época que se res-taurou o edifício da escola. Encarregou-se dela o Sr. Melchor Escalona, um velho mestre enviado ao pantanal, que fazia os alunos vadios caminharem de joelhos no pátio de pedrinhas, e os malcriados comerem pimenta, com a total complacência dos pais. Aureliano Segundo e José Arcadio Segundo, os vo-luntariosos gêmeos de Santa Sofia de la Piedad, foram os pri- meiros a se sentar na sala de aula, com sua lousa e seu giz e os copinhos de alumínio marcados com os seus nomes. Re-medios, herdeira da beleza pura da sua mãe, começava a ser conhecida como Remedios, a bela. Apesar do tempo, dos lu-tos superpostos e dos aborrecimentos acumulados, Ursula se recusava a envelhecer. Ajudada por Santa Sofía de la Piedad, tinha dado um novo impulso à sua indústria de doces, e não só recuperou em poucos anos a fortuna que o filho gastou na guerra como também voltou a entupir de ouro puro as caba-ças enterradas no quarto. “Enquanto Deus me der vida”, cos-tumava dizer, “não há de faltar dinheiro nesta casa de lou-cos.” Assim estavam as coisas quando Aureliano José deser-tou das tropas federalistas da Nicarágua, engajou-se na tri-pulação de um navio alemão e apareceu na cozinha da casa, forte como um touro, negro e cabeludo como um índio, e com a secreta determinação de se casar com Amaranta. Quando Amaranta o viu entrar, sem que ele houvesse di-to nada, soube imediatamente por que tinha voltado. Na me-sa, não se atreviam a se encarar. Duas semanas depois do re-gresso, porém, estando Úrsula presente, ele fixou os olhos nos dela e disse: “Eu sempre pensava muito em você.” Amaranta fugia dele. Prevenia-se contra os encontros casuais. Procura-va não se separar de Remedios, a bela. Indignou-se com o ru-bor que lhe dourou as faces no dia em que o sobrinho lhe per-guntou até quando pensava usar a atadura negra na mão, por-145 que interpretou a pergunta como uma alusão a sua virginda-de. Quando ele chegou, ela passou a chave no quarto, mas durante tantas noites ouviu os seus roncos pacíficos no quar-to contíguo que descuidou da precaução. Certa madruga-da, quase dois meses depois do regresso, sentiu-o entrar no quarto. Então, em vez de fugir, em vez de gritar como havia previsto, deixou-se saturar por uma suave sensação de descan-so. Sentiu-o deslizar para dentro do mosquiteiro, como o fi- zera quando era garoto, como o fizera sempre, e não pôde reprimir o suor gelado e o chocalhar dos dentes quando repa-rou que ele estava completamente nu. “Vai embora”, mur murou, sufocando de curiosidade. “Vai embora ou eu come-ço a gritar.” Mas Aureliano José sabia então o que tinha que fazer, porque já não era um menino assustado pela escuridão, e sim um animal de acampamento. Desde aquela noite se rei-niciaram as surdas batalhas sem conseqüências que se prolon-gavam até o amanhecer. “Eu sou sua tia”, murmurava Ama-ranta esgotada. “É quase como se eu fosse sua mãe, não só pela idade, mas também porque a única coisa que faltou foi dar a você de mamar.” Aureliano fugia ao alvorecer e volta-va na madrugada seguinte, cada vez mais excitado pela com-provação de que ela não se trancava. Não deixara de desejá-la um só instante. Encontrava-a nos escuros quartos das al-deias vencidas, sobretudo nos mais abjetos, e a materializava no bafo de sangue seco das ataduras dos feridos, no pavor instantâneo do perigo da morte, a toda hora e em toda parte. Fugira dela, tentando aniquilar a sua lembrança, não só com a distância mas também com um encarniçamento confuso que os companheiros de armas qualificavam de temeridade; quanto mais, porém, pisoteava a sua imagem na estrumeira da guer-ra, mais a guerra se parecia com Amaranta. Sofreu assim no exílio, procurando a maneira de matá-la com a sua própria morte, até que ouviu alguém contar a velha história do ho-mem que se casou com uma tia que, além disso, era sua pri-ma, e cujo filho acabou sendo avô de si mesmo. — Uma pessoa pode casar com a própria tia? — pergun-tou, assombrado. — Pode, e não só isso — respondeu-lhe um soldado —146 pois estamos fazendo esta guerra contra os padres para que a pessoa possa se casar até com a própria mãe. Quinze dias depois desertou. Encontrou Amaranta mais enfeitada que na lembrança, mais melancólica e pudica, e já dobrando na realidade o último cabo da maturidade, porém mais febril que nunca nas trevas do quarto e mais desafiante que nunca na agressividade da sua resistência. “Você é bo-bo”, dizia Amaranta, acossada pelos seus cães de caça. “Não é verdade que se possa fazer isso com uma pobre tia, a não ser com licença especial do Papa.” Aureliano José prometia ir a Roma, prometia percorrer a Europa de joelhos e beijar as sandálias do Sumo Pontífice só para que ela baixasse a ponte levadiça. — Não é só isso — rebatia Amaranta. — É que os filhos nascem com rabo de porco. Aureliano José era surdo para todos os argumentos. — Mesmo que nasçam tatus — suplicava. Certa madrugada, vencido pela dor insuportável da viri-lidade reprimida, foi à taberna de Catarino. Encontrou uma mulher de seios flácidos, carinhosa e barata, que lhe apazi-guou o ventre por algum tempo. Tentou aplicar a Amaranta o tratamento do desprezo. Via-a na varanda, cosendo numa máquina de manivela que aprendera a manejar com habilida-de admirável, e nem sequer lhe dirigia a palavra. Amaranta se sentiu livre de um peso, e ela mesma não compreendeu por que voltou a pensar então no Coronel Gerineldo Márquez, por que evocava com tanta nostalgia as tardes de xadrez chinês, e por que chegou inclusive a desejá- lo como homem de cama. Aureliano José não imaginava o quanto havia perdido terre-no, na noite em que não pôde suportar mais a farsa da indife-rença e voltou ao quarto de Amaranta. Ela o repeliu com uma determinação inflexível, inequívoca, e passou a chave para sem-pre no quarto. Poucos meses depois do regresso de Aureliano José, apresentou-se na casa uma mulher exuberante, perfumada de jasmim, com um menino de uns cinco anos. Afirmou que era filho do Coronel Aureliano Buendía e o trazia para que Ursu-la o batizasse. Ninguém pôs em dúvida a origem daquele me- 147 -4 fino sem nome: era igual ao coronel na época em que o leva-ram para conhecer o gelo.. A mulher contou que tinha nasci-do de olhos abertos espiando as pessoas com juízo de gente grande, e que a assustava a sua maneira de fixar o olhar nas coisas sem pestanejar. “E idêntico”, disse Úrsula. “A única coisa que está faltando é que faça as cadeiras rodarem só de olhar para elas.” Batizaram-no com o nome de Aureliano, e com o sobrenome da mãe, porque a lei não permitia usar o sobrenome do pai enquanto este não o reconhecesse. O Gene-ral Moncada serviu de padrinho. Embora Amaranta insistis-se para que o deixassem com ela para acabar de criar, a mãe se opos. Úrsula ignorava na época o costume de mandar donzelas aos quartos dos guerreiros, do mesmo modo como se solta-vam galinhas para os galos finos, mas no decurso desse ano veio a saber: mais nove filhos do Coronel Aureliano Buendía foram trazidos à casa para serem batizados. O mais velho, um estranho moreno de olhos verdes que nada tinha que ver com a família paterna, já passara dos dez anos. Trouxeram crian-ças de todas as idades, de todas as cores, mas todos varões, e todos com um ar de solidão que não permitia pôr em dúvi-da o parentesco. Apenas dois se distinguiram do resto. Um, grande demais para a’ sua idade, que transformou em cacos as floreiras e várias peças da louça, porque as suas mãos pa-reciam possuir a propriedade de espedaçar tudo o que toca-vam. O outro era um lourinho com os mesmos olhos garços da mãe, cujo cabelo tinha sido- deixado comprido e cheio de cachos, como de uma mulher. Entrou na casa com muita fa-miliaridade, como se tivesse sido criado nela, e foi diretamen-te para uma arca do quarto de Úrsula, e exigiu: “Eu quero a bailarina de corda.” Ursula se assustou. Abriu a arca, re-mexeu os antiquados e poeirentos objetos do tempo de Mel-quíades e encontrou embrulhada num par de meias a bailari-na de corda que certa vez Pietro Crespi trouxera, e da qual ninguém tinha voltado a se lembrar. Em menos de doze anos batizaram com o nome de Aureliano, e com o sobrenome da mãe, a todos os filhos que disseminou o coronel ao longo e ao largo dos seus territórios de guerra: dezessete. No princí-148 pio, Ursula lhes enchia os bolsos de dinheiro e Amaranta ten-tava ficar com eles. Mas terminaram por se limitar a fazer-lhes um presente e servirem de madrinhas. “Batizando-os, cum-primos com a obrigação”, dizia Úrsula, anotando numa ca-derneta o nome e o endereço das mães e o lugar e a data de nascimento das crianças. “Aureliano deve cuidar bem da sua vida, de modo que será ele quem tomará as decisões quando voltar.” Durante um almoço, comentando com o General Moncada aquela desconcertante proliferação, expressou o de-sejo de que o Coronel Aureliano Buendía voltasse alguma vez para reunir todos os seus filhos em casa. — Não se preocupe, comadre — disse enigmaticamente o General Moncada. — Ele virá mais cedo do que a senhora imagina. O que o General Moncada sabia, e que não quis revelar no almoço, era que o Coronel Aureliano Buendía já estava a caminho, para se pôr à frente da rebelião mais prolongada, radical e sangrenta de quantas tinham sido tentadas até então. A situação voltou a ser tão tensa como nos meses que pre-cederam a primeira guerra. As brigas de galo, animadas pelo próprio alcaide, foram suspensas. O Capitão Aquiles Ricar-do, comandante da guarnição, assumiu na prática o poder mu-nicipal. Os liberais o apontaram como um provocador. “Ai-guma coisa terrível vai acontecer”, dizia Úrsula a Aureliano José. “Não saia na rua depois das seis da tarde.” Eram súpli-cas inúteis. Aureliano José, igual a Arcadio em outra época, deixara de lhe pertencer. Era como se o regresso a casa, a pos-sibilidade de existir sem se incomodar com as urgências coti-dianas tivessem despertado nele a vocação concupiscente e pre-guiçosa do seu tio José Arcadio. A sua paixão por Amaranta se extinguiu sem deixar cicatrizes. Andava um pouco à deri-va, jogando bilhar, entretendo a solidão com mulheres oca-sionais, saqueando os buracos onde Úrsula esquecia o dinhei. ro escondido. Acabou por não voltar em casa a não ser para mudar de roupa. “São todos iguais”, Ürsula se lamentava. “No começo são fáceis de criar, obedientes e sinceros, e pare-cem incapazes de matar uma mosca; mal aponta a barba se atiram à perdição.” Ao contrário de Arcadio, que nunca soube 149 da sua verdadeira origem, ele veio a saber que era filho de Pi-lar Temera, que tinha pendurado uma rede para que ele fi-zesse a sesta na sua casa. Eram, mais que mãe e filho, cúmpli-ces na solidão. Pilar Temera havia perdido a sombra de qual-quer esperança. O seu riso tinha adquirido tonalidades de ór-gãos, os seus seios tinham sucumbido ao tédio das carícias even-tuais, o seu ventre e as suas coxas tinham sido vitimas do seu irrevogável destino de mulher partilhada, mas o seu coraçao envelhecia sem amargura. Gorda, desbocada, com vaidades de matrona em decadência, renunciou à ilusão estéril das cartas e encontrou um refrigério de consolo nos amores alheios. Na casa onde Aureliano José dormia a sesta, as moças da vizi-nhança recebiam os seus amantes casuais. “Você me empres-ta o quarto, Pilar”, diziam simplesmente, quando já estavam dentro dele. “Claro”, dizia Pilar. E se alguém estivesse pre-sente, explicava: — Fico feliz sabendo que as pessoas estão felizes na cama. Jamais cobrava o serviço. Jamais negava o favor, como não o negara aos inumeráveis homens que a procuraram até o crepúsculo da sua maturidade, sem lhe proporcionar nem dinheiro nem amor, apenas, algumas vezes, prazer. As suas cinco filhas, herdeiras de uma semente fogosa, perderam-se pelos caminhos da viZla desde a adolescencia. Dos dois varões que chegou a criar, um morreu lutando nas hostes do Coro-nel Aureliano Buendía e o outro foi ferido e capturado aos quatorze anos, quando tentaVa roubar um engradado de gali-nhas num povoado do pântano. De certo modo, Aureliano José foi um homem alto e moreno que durante meio século lhe foi anunciado pelo rei de copas, e que como todos os en-viados pelo baralho chegou ao seu coração quando já estava marcado pelo signo da morte. Ela viu isso nas cartas. — Não saia esta noite — disse a ele. — Fique para dor-mir aqui, que a Carmelita Montiel já cansou de me implorar para que a ponha no seu quarto. Aureliano José não captou o profundo sentido de súpli-ca que tinha aquela oferta. — Diga a ela que me espere à meia-noite — disse. Foi ao teatro, onde uma companhia espanhola anuncia- 150 va O Punhal do Zorro, que na realidade era o obra de Zorril-la com o nome trocado por ordem do Capitão Aquiles Ricar-do, porque os liberais chamavam de godos os conservadores.* Apenas no momento de entregar o bilhete na entrada é que Aureliano José percebeu que o Capitão Aquiles Ricardo, com dois soldados armados de fuzis, estava passando em revista a platéia. “Cuidado, capitão”, advertiu Aureliano José. “Ain-da não nasceu o homem que vai botar as mãos em cima de mim.” O capitão tentou revistá-lo à força, e Aureliano José, que estava desarmado, saiu correndo. Os soldados desobede-ceram a ordem de atirar. “E um Buendía”, explicou um de-les. Cego de raiva, o capitão lhe arrancou o fuzil, abriu espa-ço no meio da rua, e apontou. — Cornos! — chegou a gritar. — Oxalá fosse o Coronel Aureliano Buendía. Carmelita Montiel, uma virgem de vinte anos, acabava de se banhar em água de flor de laranjeira e estava esparra-mando folhas de alecrim na cama de Pilar Temera, quando soou o disparo. Aureliano José estava destinado a conhecer com ela a felicidade que lhe negara Ainaranta, a ter sete fi-lhos e a morrer de velhice nos seus braços, mas a bala de fuzil que lhe entrou pelas costas e lhe despedaçou o peito estava dirigida por uma má interpretação das cartas. O Capitão Aqui-les Ricardo, que era na verdade quem estava destinado a morrer nessa noite, morreu realmente quatro horas antes de Aurelia-no José. Mal soou o disparo, foi derrubado por dois balaços simultâneos cuja origem não se aclarou nunca, e um grito da multidão estremeceu a noite. — Viva o Partido Liberal! Viva o Coronel Aureliano Buendía! À meia-noite, quando Aureliano José acabou de sangrar e Carmelita Montiel encontrou em branco as cartas do seu fu-~José Zorrilla é um dramaturgo romântico espanhol, autor, entre outras, de duas peças de muito êxito de bilheteria até hoje: D. Juan Tenorio e Ei Puflal dei Godo. A mudança para Zorro traz também a evocação dos bang-bang senados, versão mo-derna do capa e espada romântico. (N. T.) 151 turo, mais de quatrocentos homens já haviam desfilado dian-te do teatro e descarregado os seus revólveres contra o cadá-ver abandonado do Capitão Aquiles Ricardo. Foi necessária uma patrulha para colocam sobre uma carreta o corpo pesado de chumbo, que se decompunha como um pão molhado. Contrariado pelas impertinências do exército regular, o General José Raquel Moncada mobilizou as suas influências políticas, voltou a vestir o uniforme e assumiu a chefatura ci-vil e militar de Macondo. Não esperava, entretanto, que a sua atitude conciliatória pudesse impedir o inevitável. As notícias de setembro foram contraditórias. Enquanto o governo anun-ciava que mantinha o controle de todo o país, os liberais rece-biam informações secretas de levantes armados no interior. O regime não admitiu o estado de guerra enquanto não se pro-clamou num decreto que se havia reunido um conselho de guer-ra, na ausência do Coronel Aureliano Buendía, e que ele ha-via sido condenado à morte. Ordenava-se que a primeira guar-nição que o capturasse cumprisse a sentença. “Isto quer dizer que ele voltou”, alegrou-se Ursula diante do General Monca-da. Mesmo ele, porém, não sabia ao certo. Na realidade, o Coronel Aureliano Buendía já estava no país havia mais de um mês. Precedido por boatos contraditó-rios, sabido ao mesmo tempo nos lugares mais afastados, o próprio General Moncada não acreditou na sua volta a não ser quando se anunciou oficialmente que ele se havia apode-rado de dois estados do litoral. “Parabéns, comadre”, disse a Ürsula, mostrando o telegrama. “Dentro em breve há de tê-lo aqui.” Úrsula se preocupou então pela primeira vez. “E o senhor, que é que vai fazer, compadre?”, perguntou. O Ge-neral Moncada já se havia interrogado sobre isto muitas vezes. — O mesmo que ele, comadre: — respondeu — cumprir com o meu dever. No dia primeiro de outubro, ao amanhecer, o Coronel Aureliano Buendía, com mil homens bem armados, atacou Ma-condo, e a guarnição recebeu ordem de resistir até o fim. Ao meio-dia, enquanto o General Moncada almoçava com Ursu-la, um tiro de canhão rebelde, que retumbou pelo povoado inteiro, reduziu a pó a fachada da tesouraria municipal. “Eles 152 estão tão bem armados quanto nós”, suspirou o General Mon-cada, “e além disso lutam com mais vontade.” Às duas da tarde, enquanto a terra tremia com os tiros de canhão de am-bos os lados, despediu-se de Úrsula com a certeza de que es-tava lutando uma batalha perdida. — Rogo a Deus que esta noite você ainda não tenha Au-reliano em casa — disse. — Se acontecer, dê a ele um abraço meu, porque não espero tornar a vê-lo nunca mais. Nessa mesma noite foi capturado, quando tentava fugir de Macondo, depois de escrever uma extensa carta ao Coro-nel Aureliano Buendía, na qual lhe recordava os propósitos comuns de humanizar a guerra e lhe desejava uma vitória de- finitiva contra a corrupção dos militares e as ambições dos po-líticos de ambos os partidos. No dia seguinte o Coronel Aure-liano Buendía almoçou com ele na casa de Ursula, onde ele tinha sido posto em custódia até que um conselho de guerra revolucionário decidisse o seu destino. Foi uma reunião fami-liar. Mas enquanto os adversários esqueciam a guerra para evo-car lembranças do passado, Úrsula teve a sombria impiessão de que o seu filho era um intruso. Tivera-a desde que o vira entrar protegido por um ruidoso aparato militar que revirou os quartos pelo direito e pelo avesso até se convencer de que não havia nenhum risco. O Coronel Aureliano Buendía não só aceitou a situação como também distribuiu ordens de uma severidade extrema, e não permitiu que ninguém se aproximasse a menos de três metros de sua pessoa, nem sequer Ursula, en-quanto os membros da sua escolta não acabavam de distri-buir as patrulhas em volta da casa. Vestia um uniforme de brim ordinário, sem insígnias de qualquer espécie, e umas botas al-tas com esporas lambuzadas de barro e sangue seco. Levava no cinto uma pistola com o coldre desabotoado, e a mão sem-pre apoiada na coronha revelava a mesma tensão vigilante e resoluta do olhar. A sua cabeça, agora com entradas profun-das, parecia cozinhada em fogo lento. O seu rosto gretado pelo sol do Caribe tinha adquirido uma dureza metálica. Estava pre-servado da velhice iminente por uma vitalidade que tinha al-guma coisa que ver com a frieza das entranhas. Estava mais alto do que quando partiu, mais pálido e ósseo, e manifesta- 153 -o va os primeiros sintomas de resistência à saudade. “Meu Deus”, disse Ürsula para si, alarmada. “Agora parece um ho-mem capaz de tudo.” E era. A manta asteca que trouxe para Amaranta, as recordações que emitiu no almoço, as diverti-das anedotas que contou, eram meros resíduos do seu humor de outros tempos. Nem bem se cumpriu a ordem de enterrar os mortos na fossa comum, designou o Coronel Roque Car-nicero para a missão de apressar os julgamentos de guerra, e ele próprio então se empenhou na extenuante tarefa de im-por as reformas radicais que não deixassem pedra sobre pe-dra da restabelecida estrutura do regime conservador. “Nós temos que nos antecipar aos políticos do partido”, dizia aos seus assessores. “Quando abrirem os olhos para a realidade, encontrarão os fatos consumados.” Foi então que decidiu re-ver os títulos de propriedade da terra, até cem anos atrás, e descobriu as violências legalizadas do seu irmão José Arca-dio. Anulou os registros de uma assentada. Num último ges-to de cortesia, abandonou as suas ocupações por uma hora e visitou Rebeca para pô-la ao corrente da sua determrnaçaO. Na penumbra da casa, a viúva solitária que um dia fora a confidente dos seus amores reprimidos, e cuja obstinação lhe salvara a vida, era um espectro do passado. Fechada de negro até os punhos, com o coração convertido em cinzas, mal tinha notícia da guerra. O Coronel Aureliano Buendía teve a impressão de que a fosforescência dos seus ossos transpassa-va a pele, e que ela se movia através de uma atmosfera de fogos-fátuos, num ar estancado onde ainda se percebia um discreto cheiro de pólvora. Começou por aconselhá-la a que moderas-se o rigor do luto, que ventilasse a casa, que perdoasse ao mun-do a morte de José Arcadio. Mas Rebeca já estava a salvo de qualquer vaidade. Depois de procurá-la inutilmente no sabor da terra, nas cartas perfumadas de Pietro Crespi, na cama tem-pestuosa do marido, encontrara a paz naquela casa onde as lembranças se materializaram pela força da evocação impla-cável, e passeavam como seres humanos pelos quartos fecha-dos. Erecta na sua cadeira de balanço de vime, olhando para o Coronel Aureliano Buendía como se fosse ele quem pare-cesse um espectro do passado, Rebeca nem sequer se como- 154 veu com a notícia de que as terras usurpadas por José Arca- -o dio seriam restituídas aos seus legítimos donos. — Será feito o que você mandar, Aureliano — suspirou. — Sempre acreditei, e confirmo agora, que você é um desnaturado. A revisão dos títulos de propriedade terminou ao mesmo tempo que os julgamentos sumários, presididos pelo Coronel Geríneldo Márquez, e que concluíram com o fuzilamento de toda a oficialidade do exército regular prisioneira dos revolu- cionários. O último tribunal de guerra foi o do General José Raquel Moncada. Ürsula interveio. “E o melhor governante que tivemos em Macondo”, disse ao Coronel Aureliano Buen-día. “Não tenho mesmo nada a dizer do seu bom coração, do afeto que nos dedica, porque você o conhece melhor que ninguém.” O Coronel Aureliano Buendía fixou nela um olhar de reprovação: — Não posso me arrogar o direito de administrar justi-ça — respondeu. — Se a senhora tem alguma coisa a dizer, faça-o diante do tribunal de guerra. Ürsula não só o fez como também levou para testemu-nharem todas as mães dos oficiais revolucionários que viviam em Macondo. Uma por uma, as velhas fundadoras do povoa-do, várias tendo participado da temerária travessia da serra, exaltaram as virtudes do General Moncada. Úrsula foi a últi-ma da fila. A sua dignidade patética, o peso do seu nome, a convincente veemência da sua declaração fizeram vacilar por um momento o equilíbrio da justiça. “Os senhores levaram muito a sério esta brincadeira horrível, e fizeram bem, por-que estão cumprindo com o seu dever”, disse aos membros do tribunal. “Mas não se esqueçam de que, enquanto Deus nos der vida, nós continuamos sendo mães, e por muito revo-lucionários que vocês sejam temos o direito de lhes abaixar as calças e dar uma boa coça diante da primeira falta de res-peito.” O júri se retirou para deliberar quando ainda ressoa-vam estas palavras no âmbito da escola transformada em quar-tel. A meia-noite, o General José Raquel Moncada foi conde- nado à morte. O Coronel Aureliano Buendía, apesar das vio-lentas recriminações de Úrsula, negou-se a comutar-lhe a pe-155 na. Pouco antes do amanhecer, visitou o condenado no quar-to do tronco. — Lembre-se, compadre — disse a ele — que não sou eu quem o está fuzilando, e sim a revolução. O General Moncada nem sequer se levantou do catre ao vê-lo entrar. — Vá à merda, compadre — respondeu. Até aquele momento, desde a sua volta, o Coronel Aure-llano Buendía não se permitira uma oportunidade de olhá-lo com o coração. Assombrou-se de quanto tinha envelhecido, do tremor das suas mãos, da resignação um pouco rotineira com que esperava a morte, e então experimentou um profun-do desprezo por si mesmo, que confundiu com um princípio de misericórdia. — Você sabe melhor que eu — disse — que todo tribu-nal de guerra é uma farsa, e que na verdade você vai pagar os crimes dos outros, porque desta vez nós vamos ganhar a guerra a qualquer preço. Você no meu lugar não teria feito a mesma coisa? O General Moncada endireitou o corpo para limpar os grossos óculos de tartaruga com as fraldas da camisa. “Pro-vavelmente”, disse. “Mas o que me preocupa não é que você me fuzile, porque afinal para gente como nós esta é a morte natural.” Colocou os óculos sobre a cama e tirou o relógio de bolso. “O que me preocupa”, acrescentou, “é que de tan-to odiar os militares, de tanto combatê-los, de tanto pensar neles, você acabou por ficar igual a eles. E não há ideal na vida que mereça tanta baixeza.” Tirou a aliança e a medalha da Virgem dos Remedios e pôs junto com os óculos e o relógio. — Nesse ritmo — concluiu — você não só será o ditador mais despótico e sanguinário da nossa história como também acabará por fuzilar a minha comadre Ürsula, tentando apazi-guar a sua consciência. O Coronel Aureliano Buendía permaneceu impassível, O General Moncada entregou- lhe então os óculos, a medalha, o relógio e a aliança, e mudou de tom. — Mas eu não fiz você vir aqui para repreendê-lo — dis-156 se. — Queria pedir a você o favor de enviar estas coisas a mi-nha mulher. O Coronel Aureliano Buendía guardou-as nos bolsos. — Continua em Manaure? — Continua em Manaure — confirmou o General Mon-cada — na mesma casa atrás da igreja para onde você enviou aquela carta. — Farei com muito gosto, José Raquel — disse o Coro-nel Aureliano Buendía. Quando saiu na brisa azul da neblina, o rosto se lhe ume-deceu como no outro amanhecer do passado, e só então com-preendeu por que determinara que a sentença se cumprisse no pátio, e não no muro do cemitério. O pelotão, formado dian-te da porta, rendeu-lhe as honras de chefe de Estado. — Já podem trazê-lo — ordenou. 157 1 O CORONEL Gerineldo Márquez foi o primeiro que percebeu o vazio da guerra. Na sua condição de chefe civil e militar de Macondo, mantinha duas vezes por semana conversas telegrá-ficas com o Coronel Aureliano Buendía. No princípio, essas entrevistas determinavam o curso de uma guerra de carne e osso, cujos contornos perfeitamente definidos permitiam es-tabelecer a qualquer momento o ponto exato em que se en-contrava e prever os seus rumos futuros. Embora nunca se dei-xasse arrastar para o terreno das confidências, nem sequer pelos seus amigos mais íntimos, o Coronel Aureliano Buendía con-servava na época o tom familiar que permitia identificá-lo no outro extremo da linha. Muitas vezes prolongou a conversa 158 1 além do tempo previsto e a deixou derivar para comentários de caráter doméstico. Pouco a pouco, no entanto, e à medida a guerra ia se intensificando e estendendo, a sua imagem foi se apagando num universo de irrealidade. Os pontos e tra-da sua voz eram cada vez mais remotos e incertos, e se uniam e se combinavam para formar palavras que paulatina-~tIente foram perdendo todo o sentido. O Coronel Gerineldo limitava-se então a escutar, assustado pela impres-são de estar em contato telegráfico com um desconhecido do outro mundo. — Entendido, Aureliano — concluía no manipulador. —Viva o Partido Liberal! Acabou por perder todo o contato com a guerra. O que em outros tempos fora uma atividade real, uma paixão irre-sistível da sua juventude, converteu-se para ele numa referên-cia remota: um vácuo. O seu único refúgio era o quarto de costura de Amaranta. Visitava-a todas as tardes. Gostava de contemplar as suas mãos enquanto franzia babados de cam-braia na máquina de manivela que Remedios, a bela, fazia gi-rar. Ficavam muitas horas sem falar, satisfeitos com a com-panhia recíproca, mas enquanto Amaranta se alegrava inti-mamente por manter vivo o fogo da sua devoção, ele ignora-va quais eram os secretos desígnios daquele coração indeci-frável. Quando se teve notícia da sua volta, Amaranta sufo-cou de ansiedade. Quando o viu entrar em casa, porém, con-fundido com a ruidosa escolta do Coronel Aureliano Buen-dia, e o viu maltratado pelo rigor do desterro, envelhecido pela idade e pelo esquecimento, sujo de suor e poeira, cheirando a estábulo, feio, com o braço esquerdo na tipóia, sentiu-se des-falecer de desilusão. “Meu Deus”, pensou, “não era este que eu esperava.” No dia seguinte, entretanto, ele voltou à casa barbeado e limpo, com o bigode perfumado de água de alfa-zema e sem a tipóia ensangüentada. Trazia-lhe um breviário de capa nacarada. — Como os homens são esquisitos! — ela disse, porque não encontrava outra coisa para dizer. — Levam a vida lu-tando contra os padres e dão livros de oração de presente. A partir de então, mesmo nos dias mais críticos da guer-159 ra, ele a visitava todas as tardes. Muitas vezes, quando Reme-dios, a bela, não estava presente, era ele quem tocava a má-quina de costura. Amaranta se sentia perturbada pela perse-verança, pela lealdade, pela submissão daquele homem inves-tido de tanta autoridade e que no entanto se despojava das armas na sala para entrar indefeso no quarto de costura. Mas durante quatro anos ele lhe reiterou o seu amor, e ela encon-trou sempre a maneira de recusá-lo sem feri-lo, porque, em-bora não conseguisse amá-lo, já não podia viver sem ele. Re-medios, a bela, que parecia indiferente a tudo, e de quem se pensava que era débil mental, não foi insensível a tanta devo-ção, e interveio em favor do Coronel Gerineldo Márquez. Ama-ranta descobriu de repente que aquela menina que havia cria-do, que mal despertava para a adolescência, já era a criatura mais bela que se havia visto em Macondo. Sentiu renascer no seu coração o rancor que em outra época experimentara con-tra Rebeca, e rogando a Deus que não a arrastasse até o ex- tremo de lhe desejar a morte, expulsou-a do quarto de costu-ra. Foi por essa época que o Coronel Gerineldo Márquez co-meçou a sentir o fastio da guerra. Apelou para as suas reser-vas de persuasão, para a sua imensa e reprimida ternura, dis-posto a renunciar poiiAmaranta a uma glória que lhe tinha custado o sacrifício dos seus melhores anos. Mas não conse-guiu convencê-la. Uma tarde de agosto, agoniada pelo peso insuportável da sua própria obstinação, Amaranta se trancou no quarto para chorar a sua solidão até morrer, depois de dar a resposta definitiva ao seu pretendente tenaz: — Vamos esquecer isso para sempre — disse a ele — já somos velhos demais para estas coisas. O Coronel Gerineldo Márquez atendeu naquela tarde a um chamado telegráfico do Coronel Aureliano Buendía. Foi uma conversa de rotina que não havia de abrir nenhuma bre-cha para a guerra estancada. Ao terminar, o Coronel Geri-neldo Márquez contemplou as ruas desoladas, a água cristali-zada nas amendoeiras, e se encontrou perdido na solidão. — Aureliano — disse tristemente no manipulador — es-tá chovendo em Macondo. Houve um longo silêncio na linha. De repente, os apare- 160 lhos saltaram com os signos desapiedados do Coronel Aure-liano Buendia. — Não seja boboca, Gerineldo — disseram os signos. —É natural que esteja chovendo em agosto. Fazia tanto tempo que não se viam que o Coronel Geri-neldo Márquez se desconcertou com a agressividade daquela reação. Entretanto, dois meses depois, quando o Coronel Au-reliano Buendía voltou a Macondo, o desconcerto se trans- formou em espanto. Até Úrsula se surpreendeu com o quan-to havia mudado. Chegou na calada, sem escolta, embrulha-do numa manta apesar do calor, e com três amantes que ins-talou numa mesma casa, onde passava a maior parte do tem-po estendido numa rede. Mal lia os informes telegráficos que falavam de operações de rotina. Certa ocasião o Coronel Ge-rineldo Márquez lhe pediu instruções para a evacuação de uma localidade fronteiriça que ameaçava se converter num confli- to internacional. — Não me aborreça com coisinhas miúdas — ordenou ele. — Consulte a Divina Providência. Era talvez o momento mais crítico da guerra. Os proprie-tários de terra liberais, que no princípio apoiavam a revolu-ção, entraram em aliança secreta com os proprietários de ter-ra conservadores para impedir a revisão dos títulos de pro-priedade. Os políticos que capitalizavam a guerra já desde o exílio haviam repudiado publicamente as determinações drás-ticas do Coronel Aureliano Buendía, mas até mesmo essa de-sautorização parecia deixá-lo sem preocupações. Não voltara a ler os seus versos, que ocupavam mais de cinco tomos e que permaneciam esquecidos no fundo do baú. De noite, ou na hora da sesta, chamava à rede uma das suas mulheres e obti-nha dela uma satisfação rudimentar, e logo dormia com um sono de pedra que não era perturbado pelo mais leve indício de preocupação. Só ele sabia, naquele tempo, que o seu atur-dido coração estava condenado para sempre à incerteza. A princípio, embriagado pela glória do regresso, pelas vitórias inverossímeis, bordejara o abismo da grandeza. Satisfazia-se com trazer à cabeceira o Duque de Marlborough, seu grande mestre nas artes da guerra, cujo aparato de peles e unhas de 161 tigre produzia o respeito dos adultos e o assombro das crian-ças. Foi então que decidiu que nenhum ser humano se aproxi-masse dele a menos de três metros. No centro do círculo de giz que os seus ajudantes de campo traçavam onde quer que ele chegasse, e no qual apenas ele podia entrar, decidia com ordens breves e inapeláveis o destino do mundo. Na primeira vez em que esteve em Manaure depois do fuzilamento do Ge-neral Moncada, apressou-se em cumprir a última vontade da sua vítima, e a viúva recebeu os óculos, a medalha, o relógio e a aliança, mas não lhe permitiu passar da porta de entrada. — Não entre, coronel — disse a ele. — O senhor pode mandar na sua guerra, mas na minha casa mando eu. O Coronel Aureliano Buendía não deu mostras de ran-cor, mas o seu espírito só encontrou sossego quando a sua guar-da pessoal saqueou e reduziu a cinzas a casa da viúva. “Cui-de do coração, Aureliano”, dizia-lhe então o Coronel Geri- neldo Márquez. “Você está apodrecendo vivo.” Por essa épo-ca, convocou uma segunda assembléia dos principais coman-dantes rebeldes. Encontrou de tudo: idealistas, ambiciosos, aventureiros, ressentidos sociais e até delinqüentes comuns. Havia inclusive um antigo funcionário conservador, refugia-do na revolta para ~ugir a um julgamento por desvio de fun-dos. Muitos não sabiam sequer por que lutavam. No meio da-quela multidão heterogênea, cujas diferenças de critério esti-veram a ponto de provocar uma explosão interna, destacava-se uma autoridade tenebrosa: o General Teófilo Vargas. Era um índio puro, selvagem, analfabeto, dotado de uma malícia taciturna e de uma vocação messiânica que provocava nos seus homens um fanatismo demente. O Coronel Aureliano Buen-día convocou a reunião com o propósito de unificar o poder rebelde contra as manobras dos políticos. O General Teófilo Vargas adiantou-se às suas intenções: em poucas horas des-baratou a coligação dos comandantes melhor qualificados e se apoderou do poder central. “E uma fera digna de cuida-do”, disse o Coronel Aureliano Buendía aos seus oficiais. “Pa. ra nós, esse homem é mais perigoso que o Ministro da Guer-ra.” Então, um capitão muito jovem que sempre se havia dis- tinguido pela timidez levantou o dedo cauteloso: 162 — É muito simples, coronel — propôs — nós temos de matá-lo. O Coronel Aureliano Buendía não se assustou com a frieza da proposta, e sim com a forma como ela se antecipou uma fração de segundo ao seu próprio pensamento. — Não esperem que eu dê essa ordem — disse. E não a deu, realmente. Mas quinze dias depois o Gene-ral Teófilo Vargas foi despedaçado a golpes de facão numa emboscada, e o Coronel Aureliano Buendía assumiu o poder central. Na mesma noite em que a sua autoridade foi reco-nhecida por todos os comandos rebeldes, acordou sobressal-tado, pedindo aos gritos uma manta. Um frio interior que lhe rachava os ossos e o mortificava inclusive em pleno sol impediu-lhe de dormir bem por vários meses, até que se trans-formou num hábito. A embriaguez do poder começou a se de-compor em faixas de tédio. Procurando um remédio contra o frio, mandou fuzilar o jovem oficial que propôs o assassi-nato do General Teófilo Vargas. As suas ordens eram cum-pridas antes de serem anunciadas, mesmo antes que ele as con-cebesse, e sempre iam muito mais longe do que ele se atreve-ria a fazê-las chegar. Extraviado na solidão do seu imenso po-der, começou a perder o rumo. Incomodava-o o povo que o aclamava nas aldeias vencidas, e que lhe parecia o mesmo que aclamava o inimigo. Em toda parte encontrava adolescentes que o olhavam com os próprios olhos, que falavam com a sua própria voz, que o cumprimentavam com a mesma descon-fiança com que ele os cumprimentava, e que diziam ser seus filhos. Sentiu-se jogado, repelido, e mais solitário do que nun- ca. Teve a certeza de que os seus próprios oficiais lhe men-tiam. Brigou com o Duque de Marlborough. “O melhor ami-go,” costumava dizer então, “é o que acaba de morrer.” Cansou-se da incerteza, do círculo vicioso daquela guerra eter-na que sempre o encontrava no mesmo lugar, só que cada vez mais velho, mais acabado, mais sem saber por que, nem co-mo, nem até quando. Sempre havia alguém fora do círculo de giz. Alguém que precisava de dinheiro, que tinha um filho com coqueluche ou que queria ir dormir para sempre porque já não podia suportar na boca o gosto de merda da guerra e 163 -4 que, entretanto, reunia as suas últimas reservas de energia para informar: “Tudo normal, coronel.” E a normalidade era pre-cisamente o mais terrível daquela guerra infinita: não aconte-cia nada. Sozinho, abandonado pelos presságios, fugindo do frio que havia de acompanhá-lo até a morte, procurou um úl-timo refúgio em Macondo, ao calor das recordações mais an-tigas. Era tão grave a sua inércia que quando lhe anunciaram a chegada de uma comissão do seu partido, credenciada para discutir a encruzilhada da guerra, ele se mexeu na rede sem acordar de todo. — Levem-nos às putas — disse. Eram seis advogados de paletó e chapéu que suportavam com duro estoicismo o bravo sol de novembro. Ursula hospedou-os em casa. Passavam a maior parte do dia tranca-dos no quarto, em conciliábulos herméticos, e ao anoitecer pe-diam uma escolta e um conjunto de acordeões e tomavam conta da taberna de Catarino. “Não os incomodem”, ordenava o Coronel Aureliano Buendía. “Afinal, eu sei o que querem.” No início de dezembro, a entrevista longamente esperada, que muitos tinham previsto como uma discussão interminável, resolveu..se em menos de uma hora. Na abafada sala de visitas, junto ao espectro da pianola amortalhada com uni’ lençol branco, o Coronel Aureliano Buendía não se sentou desta vez dentro do círculo de giz que traçaram os seus ajudantes de campo. Ocupou uma cadeira entre os seus assessores políticos, e embrulhado na manta de lã escutou em silêncio as breves propostas dos emissários. Pe-diam, em primeiro lugar, renunciar à revisão dos títulos de propriedade da terra para recuperar o apoio dos proprietários liberais. Pediam, em segundo lugar, renunciar à luta contra a influência clerical para obter o suporte do povo católico. Pe-diam, por último, renunciar às aspirações de igualdade de di-reitos entre os filhos naturais e os legítimos para preservar a integridade dos lares. — Quer dizer — sorriu o Coronel Aureliano Buendía quando terminou a leitura — que só estamos lutando pelo poder. — São reformas táticas — respondeu um dos delegados. 164 — No momento, o essencial é ampliar a base popular da guer-ra. Depois se vê. Um dos assessores políticos do Coronel Aureliano Buen-día se apressou a intervir. — É um contra-senso — disse. — Se estas reformas são boas, quer dizer que bom é o regime conservador. Se com elas conseguimos ampliar a base popular da guerra, como dizem os senhores, quer dizer que o regime tem uma ampla base po-pular. Quer dizer, em suma, que durante quase vinte anos es-tivemos lutando contra os sentimentos da nação. Ia continuar, mas o Coronel Aureliano Buendía o inter-rompeu com um sinal. “Não perca tempo, doutor”, disse. “O importante é que a partir deste momento só lutamos pelo po-der.” Sem deixar de sorrir, tomou os papéis que lhe entrega-ram os delegados e se dispôs a assinar. — Já que é assim — concluiu — não temos nenhum in-conveniente em aceitar. Os seus homens se olharam consternados. — Desculpe, coronel — disse suavemente o Coronel Ge-rineldo Márquez — mas isto é uma traição. O Coronel Aureliano Buendía deteve no ar a pena com tinta, e descarregou sobre ele todo o peso de sua autoridade. — Entregue as suas armas — ordenou. O Coronel Gerineldo Márquez se levantou e pôs as ar-mas na mesa. — Apresente-se no quartel — ordenou-lhe o Coronel Au-reliano Buendía. — O senhor fica à disposição dos tribunais revolucionários. Assinou logo a declaração e entregou os papéis aos emis-sários, dizendo: — Senhores, aí têm o documento. Sirvam-se dele. Dois dias depois, o Coronel Gerineldo Márquez, acusa-do de alta traição, foi condenado à morte. Refestelado na re-de, o Coronel Aureliano Buendía foi insensível às súplicas de demência. Na véspera da execução, desobedecendo à ordem de não ser incomodado, Ursula o visitou no seu quarto. De luto fechado, investida de uma estranha solenidade, perma-165 -4 neceu de pé os três minutos da entrevista. “Sei que você vai fuzilar Gerineldo”, disse serenamente, “e eu não posso fazer nada para impedir. Mas uma coisa eu aviso: logo que eu veja o cadáver, juro pelos ossos de meu pai e de minha mãe, pela memória de José Arcadio Buendía, juro diante de Deus, que vou tirá-lo de onde você se meter e matá-lo com as minhas próprias mãos.” Antes de abandonar o quarto, sem esperar nenhuma resposta, concluiu: — E a mesma coisa que eu teria feito se você tivesse nas-cido com rabo de porco. Naquela noite interminável, enquanto o Coronel Gerinel-do Márquez evocava as suas tardes mortas no quarto de cos-tura de Amaranta, o Coronel Aureliano Buendía arranhou du-rante muitas horas, tentando rompê-la, a dura casca da sua solidão. Os seus únicos momentos felizes, desde a tarde re-mota em que seu pai o levara para conhecer o gelo, haviam transcorrido na oficina de ourivesaria, onde passava o tempo armando peixinhos de ouro. Tivera que promover 32 guerras, e tivera que violar todos os seus pactos com a morte e fuçar como um porco na estrumeira da glória, para descobrir com quase quarenta anos de atraso os privilégios da simplicidade. Ao amanhecer, m~ído pela atormentada vigília, apare-ceu no quarto do condenado uma hora antes da execução. “Terminou a farsa, compadre”, disse ao Coronel Gerineldo Márquez. “Vamos embora daqui antes que os mosquitos te executem.” O Coronel Gerineldo Márquez não pôde reprimir o desprezo que lhe inspirava aquela atitude. — Não, Aureliano — replicou. — Mais vale estar morto que ver você transformado num general de cbanfalho. — Você não vai me vçr assim — disse o Coronel Aure-liano Buendía. — Ponha os sapatos e me ajude a acabar com esta guerra de merda. Ao dizer isto, não imaginava que era mais fácil começar uma guerra que terminá- la. Precisou de quase um ano de ri-gor sanguinário para forçar o governo a propor condições de paz favoráveis aos rebeldes, e outro ano para persuadir os seus partidários da conveniência de aceitá-las. Chegou a inconce-bíveis extremos de crueldade para sufocar as rebeliões dos seus 166 próprios oficiais, que resistiam a mercadejar a vitória, e ter-minou se apoiando em forças inimigas para acabar de subjugá-los. Nunca foi melhor guerreiro do que então. A certeza de que finalmente lutava pela sua própria libertação e não por ideais abstratos, por ordens que os políticos podiam virar pa-ra o direito e para o avesso segundo as circunstâncias, infundiu-lhe um entusiasmo apaixonado. O Coronel Gerineldo Már-quez, que lutou pelo fracasso com tanta convicção e tanta leal-dade como antes lutara pelo triunfo, reprovava a sua temeri-dade inútil. “Não se preocupe”, sorria ele. “Morrer é muito mais difícil do que se acredita.” No seu caso era verdade. A certeza de que o seu dia estava marcado investiu-o de uma imu-nidade misteriosa, uma imortalidade a prazo fixo que o fez invulnerável aos riscos da guerra, e lhe permitiu finalmente conquistar uma derrota que era muito mais difícil, muito mais sangrenta e custosa que a vitória. Em quase vinte anos de guerra, o Coronel Aureliano Buen-día tinha estado muitas vezes em casa, mas o estado de urgên-cia em que chegava sempre, o aparato militar que o acompa-nhava a toda parte, a aura de lenda que dourava a sua pre- sença e à qual nem a própria Úrsula foi insensível, termina-ram por convertê-lo num estranho. Na última vez que esteve em Macondo e ocupou uma casa com as suas três concubi-nas, não foi visto na sua a não ser duas ou três vezes, quando teve tempo para aceitar convites para comer. Remedios, a be-la, e os gêmeos, nascidos em plena guerra, mal o conheciam. Amaranta não conseguia conciliar a imagem do irmão que pas-sara a adolescência fabricando peixinhos de ouro com a do guerreiro mítico que havia interposto entre ele e o resto da hu-manidade uma distância de três metros. Mas quando se sou-be da proximidade do armistício e se pensou que ele regressa-va outra vez convertido num ser humano, resgatado por fim para o coração dos seus, os afetos familiares adormecidos por tanto tempo renasceram com mais força do que nunca. — Finalmente — disse Ursula — vamos ter outra vez um homem em casa. Amaranta foi a primeira a suspeitar de que o haviam per-167 dido para sempre. Uma semana antes do armistício, quando ele entrou em casa sem escolta, precedido por dois ordenan-ças descalços que depositaram no corredor os arreios da mula e o baú dos versos, saldo único da sua antiga bagagem impe-rial, ela o viu passar em frente do quarto de costura e o cha-mou. O Coronel Aureliano Buendía pareceu ter dificuldade em reconhecê-la. — Sou Amaranta — disse ela de bom humor, feliz pela sua volta, e lhe mostrou a mão com a atadura negra. —Olhe. O Coronel Aureliano Buendía dirigiu-lhe o mesmo sorri-so da primeira vez em que a viu com a atadura, na remota manhã em que voltou a Macondo sentenciado à morte. — Que horror — disse — como o tempo passa! O exército regular teve que proteger a casa. Ele chegara escarnecido, cuspido, acusado deter endurecido a guerra ape-nas para vendê-la mais cara. Tremia de febre e de frio e tinha outra vez as axilas cheias de furúnculos. Seis meses antes, quan-do ouviu falar do armistício, Ursula abriu e varreu a alcova nupcial, e queimou mirra nos cantos, pensando que ele regres-saria disposto a envelhecer devagar entre as mofadas bonecas de Remedios. Mas na4verdade, nos dois últimos anos ele pa-gara as suas quotas finais à vida, inclusive a do envelhecimento. Ao passar diante da oficina de ourivesaria, que Ürsula tinha preparado com especial cuidado, nem sequer percebeu que as chaves estavam postas no cadeado. Não notou os minúsculos e profundos estragos que o tempo fizera na casa e que depois de uma ausência tão prolongada teriam parecido um desastre a qualquer homem que conservasse vivas as suas recordações. Não o magoou a cal descascada nas paredes, nem os sujos al-godões de teia de aranha nos cantos, nem a poeira das begô-nias, nem os túneis do cupim nas vigas, nem o musgo das do- bradiças, nem nenhuma das armadilhas insidiosas que lhe es-tendia a saudade. Sentou-se na varanda, embrulhado na manta e sem tirar as botas, como que esperando apenas que estiasse, e permaneceu a tarde inteira vendo a chuva cair sobre as be-gônias. Ursula compreendeu então que não o teria em casa por muito tempo. “Se não é a guerra”, pensou, “só pode ser 168 a morte.” Foi uma suposição tão nítida, tão convincente, que ela a identificou como um presságio. Nessa noite, no jantar, o suposto Aureliano Segundo par-tiu opão com a mão direita e tomou a sopa com a esquerda. Seu irmão gêmeo, o suposto José Arcadio Segundo, partiu o pão com a mão esquerda e tomou a sopa com a direita. Era tão precisa a coordenação dos seus movimentos que não pa-reciam dois irmãos sentados um em frente ao outro, e sim um artifício de espelhos. O espetáculo que os gêmeos tinham con-cebido desde que tomaram cc~nsciência de que eram iguais foi repetido em honra do recém-chegado. Mas o Coronel Aure-liano Buendía não percebeu. Parecia tão alheio a tudo que nem sequer prestou atenção a Remedios, a bela, que passou despi-da para o quarto. Ursula foi a única que se atreveu a pertur-bar a sua abstração. — Se você vai embora outra vez — disse-lhe no meio do jantar — pelo menos trate de se lembrar de como éramos esta noite. Então o Coronel Aureliano Buendía se deu conta, sem espanto, de que Ursula era o único ser humano que tinha con-seguido desentranhar a sua miséria, e pela primeira vez em mui-tos anos se atreveu a olhá-la na cara. Tinha a pele gretada, os dentes carcomidos, o cabelo minguado e sem cor, e o olhar atônito. Comparou-a com a lembrança mais antiga que tinha dela, na tarde em que ele tivera o presságio de que uma pane-la de sopa fervendo ia cair da mesa, e a encontrou espedaça-da. Num instante descobriu os arranhões, os vergões, os ca-los, as úlceras e as cicatrizes que deixara nela mais de meio seculo de vida cotidiana e comprovou que estes estragos não provocavam nele sequer um sentimento de piedade. Fez en-tão um último esforço para procurar no seu coração o lugar onde se haviam apodrecido os afetos e não conseguiu encontrá-lo. Em outra época, pelo menos, experimentava um confuso sentimento de vergonha quando surpreendia na sua própria pele o cheiro de Ürsula, e em mais de uma ocasião sentira os seus pensamentos interferidos pelo pensamento dela. Mas tu-do isso tinha sido arrasado pela guerra. A própria Remedios, sua esposa, era naquele momento a imagem apagada de ai- 169 guém que podia ter sido sua filha. As inumeráveis mulheres que conhecera no deserto do amor, e que espalharam a sua semente em todo o litoral, não tinham deixado nenhum rasto nos seus sentimentos. A maioria delas entrava no quarto na escuridão e ia embora antes da alvorada, e no dia seguinte era apenas um pouco de tédio na memória corporal. O único afe-to que prevalecia contra o tempo e a guerra foi o que sentiu pelo seu irmão José Arcadio quando ambos eram crianças, e não estava baseado no amor, mas na cumplicidade. — Perdão — desculpou-se diante do pedido de Ursula. — É que esta guerra acabou com tudo. Nos dias subseqüentes ocupou-se em destruir todas as mar-cas da sua passagem pelo mundo. Reduziu a oficina de ouri-vesaria até deixar apenas os objetos impessoais, deu as suas roupas aos ordenanças e enterrou as suas armas no quintal com o mesmo sentido de penitência com que o seu pai havia enterrado a lança que dera morte a Prudencio Aguilar. Con-servou somente uma pistola, e com uma bala apenas. Úrsula não interveio. A única vez que se meteu foi quando ele estava se preparando para destruir o retrato de Remedios que se con-servava na sala, iluminado por uma lâmpada eterna. “Esse retrato deixou de pertencer a você há muito tempo”, disse a ele. “É uma relíquia de família.” Na véspera do armistício, quando já não havia em casa um só objeto que permitisse recordá-lo, levou ã padaria da casa o baú com os versos, no momento em que Santa Sofía de la Piedad se preparava para acender o forno. — Acenda com isto — disse a ela, entregando-lhe o pri-meiro rolo de papéis amarelados. — Arde melhor, porque são coisas muito antigas. Santa Sofía de la Piedad, a silenciosa, a condescendente, a que nunca contrariara nem os próprios filhos, teve a impres-são de que aquele era um ato proibido. — São papéis importantes — disse. — Nada disso — disse o coronel. — São coisas que uma pessoa escreve para si mesma. — Então — ela disse — queime o senhor mesmo, coronel. Não apenas o fez, mas espedaçou também o baú com uma 170 machadinha e jogou os cavacos no fogo. Horas antes, Pilar Temera o visitara. Depois de tantos anos sem vê-La, o Coro-nel Aureliano Buendía se assombrou de quanto havia enve-lhecido e engordado, e de quanto havia perdido o esplendor do seu riso; mas também se assombrou da profundidade que havia atingido na leitura das cartas. “Cuidado com a boca”, disse ela, e ele se perguntou se da outra vez em que dissera, no apogeu da glória, não havia sido uma visãc surpreenden- temente antecipada do seu destino. Pouco depois, quando o seu médico pessoal acabou de lhe extirpar o~ furúnculos, ele perguntou sem demonstrar interesse particular qual era o lu-gar exato do coração. O médico o auscultou e pintou-lhe em seguida um círculo no peito com um algodão sujo de iodo. A terça-feira do armistício amanheceu fresca e chuvosa. O Coronel Aureliano Buendía apareceu na cozinha antes das cinco e tomou o seu café sem açúcar habitual. “Num dia co-mo este você veio ao mundo”, Ursula disse a ele. “Todos se assustaram com os seus olhos abertos.” Ele não lhe prestou atenção, porque estava alerta aos preparos da tropa, aos to-ques de cometa e às vozes de comando que estragavam a al-vorada. Ainda que depois de tantos anos de guerra estes ruí- dos lhe devessem parecer familiares, desta vez sentiu o mes-mo desalento nos joelhos, e o mesmo arrepio da pele que ti-nha sentido na juventude, em presença de uma mulher nua. Pensou confusamente, enfim capturado numa armadilha da saudade, que talvez se tivesse se casado com ela teria sido um homem sem guerra e sem glória, um artesão sem nome, um animal feliz. Esse estremecimento tardio, que não figurava nas suas previsões, amargou-lhe o café da manhã. As sete horas, quando o Coronel Gerineldo Márquez foi procurá-lo em com-panhia de um grupo de oficiais rebeldes, encontrou-o mais ta-citurno do que nunca, mais pensativo e solitário. Úrsula tra-tou de jogar-lhe sobre os ombros uma manta nova. “O que é que o governo vai pensar”, disse a ele. “Vão imaginar que você se rendeu porque já não tinha nem com que comprar uma manta.” Mas ele não a aceitou. Já na porta, vendo que a chuva continuava, deixou que lhe pusessem um velho chapéu de fel-tro de José Arcadio Buendía. 171 — Aureliano — Ürsula disse a ele então — prometa-me que se você encontrar por aí com a hora difícil, você vai pen-sar na sua mãe. Ele lhe deu um sorriso distante, levantou a mão com to-dos os dedos estendidos, e sem dizer uma palavra abandonou a casa e enfrentou os gritos, vitupérios e blasfêmias que have-riam de persegui-lo até a saída do povoado. Úrsula colocou a tranca no portão, decidida a não tirá-la durante o resto da vida. “Nós vamos apodrecer aqui dentro”, pensou. “Nós va-mos nos transformar em cinza nesta casa sem homens, mas não vamos dar a este povo miserável o gosto de nos ver cho-rar.” Passou a manhã inteira procurando uma lembrança do filho nos cantos mais escondidos e não conseguiu encontrar. O ato se realizou a vinte quilômetros de Macondo, à som-bra de uma paineira gigantesca, em torno da qual se haveria de fundar mais tarde o povoado de Neerlândia. Os delegados do governo e os do partido e a comissão rebelde que entregou as armas foram recebidos por um buliçoso grupo de noviças de hábitos brancos, que pareciam uma revoada de pombas as-sustadas pela chuva. O Coronel Aureliano Buendía chegou nu-ma mula enlameada. Estava barbado, mais atormentado pela dor dos furúnculos1que pelo imenso fracasso dos seus sonhos, pois tinha chegado ao fim de qualquer esperança, além da gló-ria e da saudade da glória. De acordo com o determinado por ele mesmo, não houve música, nem foguetes, nem sinos de júbilo, nem placas comemorativas, nem nenhuma outra ma-nifestação que pudesse alterar o caráter triste do armistício. Um fotógrafo ambulante, que tirou o único retrato seu que poderia ser conservado, foi obrigado a destruir o filme sem o revelar. O ato durou apenas o tempo indispensável para que se pusessem as assinaturas. Ao redor da rústica mesa colocada no centro de uma remendada barraca de circo onde sentaram os delegados, estavam os últimos oficiais que permaneceram fiéis ao Coronel Aureliano Buendía. Antes de recolher as as- sinaturas, o delegado pessoal do Presidente da República ten-tou ler em voz alta a ata da rendição, mas o Coronel Aureia-no Buendía se opôs. “Não vamos perder tempo com formali-172 dades”, disse, e se dispôs a assinar os papéis sem os ler. Um dos oficiais, então, rompeu o silêncio soporífero da tenda. — Coronel — disse — faça-nos o favor de não ser o pri-meiro a assinar. O Coronel Aureliano Buendía concedeu. Quando o do-cumento deu a volta completa à mesa, em meio a um silêncio tão nítido que seria possível decifrar as assinaturas pelo puro floreio da pena no papel, o primeiro lugar ainda estava em branco. O Coronel Aureliano Buendía se dispôs a ocupá-lo. — Coronel — disse então outro dos seus oficiais — o se-nhor ainda tem tempo para ficar bem. Sem se perturbar, o Coronel Aureliano Buendía assinou a primeira cópia. Ainda não tinha acabado de assinar a últi-ma quando apareceu na porta da tenda um coronel rebelde, trazendo pelo cabresto uma mula carregada com dois baús. Apesar da sua extrema juventude, tinha um aspecto árido e uma expressão paciente. Era o tesoureiro da revolução na cir-cunscrição de Macondo. Fizera uma penosa viagem de seis dias, arrastando a mula morta de fome, para chegar em tempo ao armistício. Com uma calma exasperante descarregou os baús, abriu-os, e foi colocando na mesa, uma por uma, setenta e duas barras de ouro. Ninguém se lembrava da existência da-quela fortuna. Na desordem do ano anterior, quando o po-der central se partiu em pedaços e a revolução degenerou nu-ma sangrenta rivalidade de caudilhos, era impossível determi-nar qualquer responsabilidade. O ouro da rebelião, fundido em blocos que foram logo cobertos de barro cozido, ficou fo-ra de qualquer controle. O Coronel Aureliano Buendía fez com que se incluíssem as setenta e duas barras de ouro no inventá-rio da rendição, e fechou o ato sem permitir dircursos. O es-quálido adolescente permaneceu diante dele, olhando-o nos olhos com os seus serenos olhos cor de caramelo. — Alguma coisa mais? — perguntou-lhe o Coronel Au-rellano Buendía. O jovem coronel trincou os dentes. — O recibo — disse. O Coronel Aureliano Buendía estendeu-lhe um, feito do seu próprio punho e letra. Em seguida, tomou um copo de 173 -4 limonada e comeu um pedaço de biscoito que as noviças ser-viram, e se retirou para uma tenda de campanha que lhe ha-viam preparado para quando quisesse descansar. Ali tirou a camisa, sentou-se na beira do catre e, às três e quinze da tar-de, desferiu um tiro de pistola no círculo de iodo que o seu médico particular lhe pintara no peito. A essa hora, em Ma-condo, Ursula destampou a panela do leite no fogão, estra-nhando que demorasse tanto a ferver, e encontrou-a cheia de vermes. — Mataram Aureliano! — exclamou. Olhou para o quintal, obedecendo a um costume da sua solidão, e viu José Arcadio Buendía, ensopado, triste de chu-va e muito mais velho do que quando morreu. “Mataram-no à traição”, precisou Ursula, “e ninguém fez a caridade de lhe fechar os olhos.” Ao anoitecer viu através das lágrimas os rá-pidos e luminosos discos alaranjados que cruzaram o céu co-mo uma exalação, e pensou que era um sinal da morte. Esta-va ainda debaixo do castanheiro, soluçando nos joelhos do marido, quando trouxeram o Coronel Aureliano Buendía em-brulhado na manta dura de sangue seco e com os olhos aber-tos de raiva. Estava fora de perigo. O projétil seguira uma trajetória tão desimpedida que o médico lhe enfiou um cordão molha-do de iodo pelo peito e tirou-o pelas costas. “Esta é a minha obra-prima”, disse a ele satisfeito. “Era o único ponto por onde podia passar uma bala sem atingir nenhum centro vital.” O Coronel Aureliano Buendía se viu rodeado de noviças mi-sericordiosas que entoavam salmos desesperados pelo eterno descanso da sua alma, e então se arrependeu de não ter dado o tiro no céu da boca como tinha previsto, só para enganar o prognóstico de Pilar Temera. — Se eu “inda tivesse autoridade — disse ao médico —mandava fuzilar o senhor sem julgamento. Não por me ter salvo a vida, mas por me fazer cair no ridículo. O fracasso da morte lhe devolveu em poucas horas o pres-tígio perdido. Os mesmos que inventaram a lorota de que ven-dera a guerra por um aposento cujas paredes estavam cons-truídas com tijolos de ouro definiram a tentativa de suicídio 174 como um ato de honra e o proclamaram mártir. Em seguida, ando recusou a Ordem do Mérito que o Presidente da Re-“ lhe outorgou, até os seus rivais mais encarniçados des-filaram no seu quarto, pedindo que desconhecesse os termos do armistício e promovesse uma nova guerra. A casa se en-cheu de presentes de solidariedade. Tardiamente impressionado com o apoio maciço dos seus antigos companheiros de armas, Coronel Aureliano Buendía não descartou a possibilidade de satisfazê-los. Pelo contrário, em dado momento pareceu tão entusiasmado com a idéia de uma nova guerra que o Co-ronel Gerineldo Márquez pensou que ele só esperava um pre-texto para proclamá-la. O pretexto se ofereceu, efetivamente, quando o Presidente da República se negou a conceder as pen-sões de guerra aos antigos combatentes, liberais ou conserva-dores, enquanto cada processo não fosse revisto por uma co-missão especial e a lei das concessões aprovada pelo Congres-so. “Isto é uma confusão”, trovejou o Coronel Aureliano Buendía. “Vão morrer de velhice esperando o correio.” Aban-donou pela primeira vez a cadeira de balanço que Úrsula com-prara para a sua convalescença e, andando de um lado para o outro na alcova, ditou uma mensagem taxativa para o Pre-sidente da República. Nesse telegrama, que nunca foi publi-cado, denunciava a primeira violação do Tratado de Neerlân-dia e ameaçava proclamar a guerra de morte se a concessão das pensões não fosse resolvida ao fim de quinze dias. Era tão justa a sua atitude que permitia contar, inclusive, com a ade-são dos antigos combatentes conservadores. Mas a única res-posta do governo foi o reforço da guarda militar que coloca-ra na porta da sua casa com o pretexto de protegê-la e a proi-bição de toda e qualquer espécie de visitas. Medidas similares foram adotadas em todo o país, com outros caudilhos de cui-dado. Foi uma operação tão oportuna, drástica e eficaz que dois meses depois do armistício, quando o Coronel Aurelia-no Buendía teve alta, os seus instigadores mais decididos já estavam mortos ou expatriados ou haviam sido assimilados para sempre pela administração pública. O Coronel Aureliano Buendía abandonou o quarto em dezembro, e bastou dar uma olhada na varanda para não vol-175 -4 tar a pensar na guerra. Com uma vitalidade que parecia im-possível na sua idade, Úrsula voltou a rejuvenescer a casa. “Agora vão ver quem sou eu”, disse quando soube que o fi-lho viveria. “Não haverá uma casa melhor, nem mais aberta a todo o mundo, que esta casa de loucos.” Mandou-a lavar e pintar, trocou os móveis, restaurou o jardim e semeou flo-res novas, e abriu as portas e janelas para que entrasse até os quartos a deslumbrante claridade do verão. Decretou o fim dos numerosos lutos superpostos e ela mesma mudou os ve-lhos trajes rigorosos por roupas juvenis. A música da pianola voltou a alegrar a casa. Ao ouvi-la, Amaranta se lembrou de Pietro Crespi, da sua gardênia crepuscular e do seu cheiro de lavanda, e no fundo do seu murcho coração floresceu um ran-cor limpo, purificado pelo tempo. Uma tarde em que tentava pôr em ordem a sala, Ursula pediu ajuda aos soldados que custodiavam a casa. O jovem comandante da guarda concedeu-lhes a permissão. Pouco a pouco, Úrsula lhes foi designando novas tarefas. Convidava-os para almoçar, presenteava-lhes roupas e calçados e os ensinava a ler e a escrever. Quando o governo suspendeu a vigilância, um deles ficou morando na casa, e esteve a seu serviço por muitos anos. No dia de Ano- Novo, enlouquecido pelas grosserias de Remedios, a bela, o jovem comandante~da guarda amanheceu morto de amor junto à sua janela. 176 -4 ANOS depois, em seu leito de agonia, Aureliano Segundo ha-veria de se lembrar da chuvosa tarde de junho em que entrou no quarto para conhecer o seu primeiro filho. Embora fosse lânguido e chorão, sem nenhum traço dos Buendía, não pre- cisou pensar duas vezes para lhe dar o nome. — Vai se chamar José Arcadio — disse. Fernanda dei Carpio, a formosa mulher com quem se ca-sara no ano anterior, concordou. Ursula, pelo contrário, não pôde esconder um vago sentimento de derrota. Na longa his-tória da família, a tenaz repetição dos nomes permitira que ela tirasse conclusões que lhe pareciam definitivas. Enquanto os Aurelianos eram retraídos, mas de mentalidade lúcida, os 177 Josés Arcadios eram impulsivos e empreendedores, mas esta-vam marcados por um signo trágico. Os únicos casos de clas-sificação impossível eram os de José Arcadio Segundo e Au-reliano Segundo. Foram tão parecidos e travessos durante a infância que nem a própria Santa Sofía de la Piedad os podia distinguir. No dia do batizado, Amaranta colocou neles as pul-seiras com os respectivos nomes e vestiu-os com roupas de cores diferentes, marcadas com as iniciais de cada um, mas quando começaram a ir à escola optaram por trocar a roupa e as pul-seiras e a se chamarem eles mesmos com os nomes ao contrá-rio. O mestre Melchor Escalona, acostumado a conhecer J0-sê Arcadio Segundo pela camisa verde, perdeu as estribeiras quando descobriu que este trazia a pulseira de Aureliano Se-gundo, e que o outro dizia que se chamava, entretanto, Aure-liano Segundo, apesar de vestir a camisa branca e trazer a pul-seira marcada com o nome de José Arcadio Segundo. A par-tir daí não se sabia mais com certeza quem era quem. Mesmo quando cresceram e a vida os tornou diferentes, Ursula conti-nuava a se perguntar se eles mesmos não teriam cometido um erro em algum momento do seu intrincado jogo de equívocos e não teriam ficado trocados para sempre. Até o princípio da adolescência, foram dQis mecanismos sincrônicos. Acordavam ao mesmo tempo, tinham vontade de ir ao banheiro na mes-ma hora, sofriam as mesmas alterações de saúde e até sonha-vam as mesmas coisas. Em casa, onde se acreditava que coor- denavam os seus atos pelo mero desejo de confundir, ninguém percebeu a realidade até que um dia Santa Sofía de la Piedad deu a um deles um copo de limonada e este demorou mais pa-ra prová-lo do que o outro para dizer que estava faltando açú-car. Santa Sofía de la Piedad, que realmente se esquecera de pôr açúcar na limonada, contou o fato a Úrsula. “Todos são assim”, disse ela sem surpresa. “Loucos de nascença.” O tem-po acabou de desarrumar as coisas. O que nos jogos de equí-voco ficou com o nome de Aureliano Segundo tornou-se mo-numental como o avô, e o que ficou com o nome de José Ar-cadio Segundo tornou-se ósseo como o coronel, e a única coi-sa que conservavam de comum foi o ar solitário da família. Talvez tenha sido esse entrecruzamento de estaturas, nomes 178 e temperamentos o que fez Úrsula pensar que estavam emba-ralhados desde a infância. A diferença decisiva se relevou em plena guerra, quando José Arcadio Segundo pediu ao Coronel Gerineldo Márquez que o levasse para ver os fuzilamentos. Contra o parecer de Ursula, os seus desejos foram satisfeitos. Aureliano Segun- do, pelo contrário, estremeceu diante da pura idéia de presen-ciar uma execução. Preferia ficar em casa. Aos doze anos per-guntou a Ursula o que havia no quarto trancado. “Papéis”, ela respondeu. “São os livros de Melquíades e as coisas es- quisitas que ele escrevia nos seus últimos anos.” A resposta, em vez de o tranqüilizar, aumentou a sua curiosidade. Insis-tiu tanto, prometeu com tanto empenho não estragar as coi-sas, que Ursula lhe deu as chaves. Ninguém tornara a entrar no quarto desde que levaram o cadáver de Melquíades e puse-ram na porta o cadeado cujas peças se soldaram com a ferru-gem. Mas quando Aureliano Segundo abriu as janelas, entrou uma luz familiar que parecia acostumada a iluminar o quarto todos os dias, e não havia nele a menor sombra de poeira ou teia de aranha, e sim estava tudo varrido e limpo, mais bem varrido e mais limpo do que no dia do enterro, e a tinta não secara no tinteiro nem o óxido alterara o brilho dos metais, nem se extinguira a brasa do alambique onde José Arcadio Buendía vaporizara o mercúrio. Nas prateleiras estavam os li-vros encadernados de uma matéria acartonada e pálida como pele humana curtida, e estavam os manuscritos intactos. Ape-sar de fechado por muitos anos, o ar parecia mais puro do que no resto da casa. Tudo era tão recente que várias sema-nas depois, quando Úrsula entrou no quarto com um balde de água e uma vassoura para lavar o chão, não teve nada pa-ra fazer. Aureliano Segundo estava absorto na leitura de um livro. Embora estivesse sem capa e o título não aparecesse em lugar nenhum, o menino se divertia com a história de uma mu-lher que se sentava na mesa e só comia grãos de arroz que apa-nhava com alfinetes, e com a história do pescador que pediu emprestado ao vizinho um peso para a sua rede e o peixe com que o recompensou mais tarde tinha um diamante no estôma-go, e com a lâmpada que satisfazia os desejos e os tapetes que 179 -4 voavam. Assombrado, perguntou a Úrsula se aquilo tudo era verdade, e ela respondeu que sim, que muitos anos antes os ciganos traziam a Macondo as lâmpadas maravilhosas e os ta-petes voadores. — O que acontece — suspirou — é que o mundo vai se acabando pouco a pouco e essas coisas já não vêm. Quando acabou o livro, muitos de cujos contos estavam inconclusos porque faltavam páginas, Aureliano Segundo se deu o trabalho de decifrar os manuscritos. Foi impossível. As letras pareciam roupas postas para secar num arame e se as-semelhavam mais à escrita musical que à literária. Um meio-dia ardente, enquanto perscrutava os manuscritos, sentiu que não estava sozinho no quarto. Contra a reverberação da ja-nela, sentado com as mãos nos joelhos, estava Melquíades. Não tinha mais de quarenta anos. Usava o mesmo casaco ana- crônico e o chapéu de asas de corvo e pelas suas têmporas pá-lidas gotejava a gordura do cabelo derretida pelo calor, como fora visto por Aureliano e José Arcadio quando eram crian-ças. Aureliano Segundo reconheceu-o imediatamente, porque aquela lembrança hereditária se havia transmitido de geração em geração e tinha chegado a ele partindo da memória do seu avô. -4 — Salve — disse Aureliano Segundo. — Salve, jovem — disse Melquíades. A partir de então, durante vários anos, viram-se quase todas as tardes. Melquíades lhe falava do mundo, tentava infundir-lhe a sua velha sabedoria, mas se negou a traduzir os manuscritos. “Ninguém deve conhecer a sua mensagem en- quanto não se passarem cem anos”, explicou. Aureliano Se-gundo guardou para sempre o segredo daquelas entrevistas. Certa ocasião sentiu que o seu mundo privado se desmorona-va, porque Ursula entrou no momento em que Melquíades es- tava no quarto. Mas ela não o viu. — Com quem você está falando? — perguntou a ele. — Com ninguém — disse Aureliano Segundo. — O seu bisavô era assim — disse Úrsula. — Ele tam-bém falava sozinho. José Arcadio Segundo, enquanto isso, satisfizera o dese. 180 jo de ver um fuzilamento. Recordaria pelo resto da vida o fo-garéu lívido dos seis disparos simultâneos e o eco do estampi-do que se estilhaçou pelos montes, e o sorriso triste e os olhos perplexos do fuzilado, que permaneceu erecto enquanto a ca-misa se ensopava de sangue, e que continuava sorrindo mes-mo quando o desamarraram do poste e o jogaram num cai-xote cheio de cal. “Está vivo”, pensou ele. “Vão enterrá-lo vivo. “Impressionou-se tanto que desde então detestou as prá-ticas militares e a guerra, não pelas execuções em si, mas pelo horrível costume de enterrar os fuzilados vivos. Ninguém soube então quando começou a tocar os sinos na torre e a ajudar missa para o Padre Antonio Isabel, sucessor de O Cachorri-nho, e a cuidar dos galos de briga no quintal da casa sacerdo-tal. Quando o Coronel Gerineldo Márquez foi informado, repreendeu-o duramente por estar aprendendo ofícios repu-diados pelos liberais. “O problema”, respondeu, “é que eu acho que saí conservador.” Acreditava como se fosse uma de- terminação da fatalidade. O Coronel Gerineldo Márquez, es-candalizado, contou a Ursula. — Melhor — aprovou ela. — Tomara que fosse padre, para que finalniente Deus entre nesta casa. Muito em breve se soube que o Padre Antonio Isabel o estava preparando para a primeira comunhão. Ensinava-lhe o catecismo enquanto raspava o pescoço dos galos. Explicava com exemplos simples, enquanto colocavam nos ninhos as ga- linhas chocas, como ocorrera a Deus, no segundo dia da cria-ção, que os pintos se formassem dentro do ovo. Já então o pároco manifestava os primeiros sintomas do delírio senil que o levou a dizer, anos mais tarde, que provavelmente o diabo tinha ganho a rebelião contra Deus e que era aquele quem es-tava sentado no trono celeste sem revelar a sua verdadeira iden-tidade para enganar os incautos. Insuflado pela intrepidez do seu preceptor, José Arcadio Segundo chegou em poucos me-ses a ser tão sábio em artimanhas teológicas para confundir o demônio como experimentado nas trapaças da rinha. Ama-ranta fez para ele um terno de linho com colarinho e gravata, comprou-lhe um par de sapatos brancos e gravou o seu nome com letras douradas no laço do círio. Duas noites antes da 181 -4 primeira comunhão, o Padre Antonio Isabel se fechou com ele na sacristia para confessá-lo, com a ajuda de um dicioná-rio de pecados. Era uma lista tão comprida que o velho páro-co, acostumado a se deitar às seis horas, adormeceu na pol-trona antes de terminar. O interrogatório foi para José Arca-dio Segundo uma revelação. Não o surpreendeu que o padre lhe perguntasse se havia feito coisa feia com mulher, e res-pondeu honradamente que não, mas se desconcertou quando lhe perguntou se tinha feito com animais. Na primeira sexta-feira de maio comungou torturado pela curiosidade. Mais tarde fez a pergunta a Petronio, o sacristão doente que vivia na tor-re e que conforme diziam se alimentava de morcegos, e Pe-tronio respondeu: “É que há cristãos corrompidos que fazem das suas com as burras.” José Arcadio Segundo continuou demonstrando tanta curiosidade, pediu tantas explicações, que Petronio perdeu a paciência. — Eu vou às terças-feiras à noite — confessou. — Se você promete que não conta a ninguém, na próxima terça-feira vai comigo. Na terça-feira seguinte, realmente, Petronio desceu da tor-re com um banquinho de madeira que ninguém soubera até então para que servia, e levou José Arcadio Segundo a uma chácara próxima. Ó rapaz gostou tanto daquelas incursões no-turnas que passou muito tempo sem aparecer na taberna de Catarino. Fez-se criador de galos. “Leve estes animais para outro lugar”, ordenou-lhe Ursula na primeira vez em que o viu entrar com os seus finos animais de briga. “Os galos já trou-xeram amarguras demais a esta casa para que você agora ve-nha nos trazer outras.” José Arcadio Segundo levou-os sem discussão, mas continuou a criá-los na casa de Pilar Temera, sua avó, que pôs à sua disposição quanto precisava, em troca de tê-lo em casa. Demonstrou logo na rinha a sabedoria que lhe infundira o Padre Antonio Isabel, e dispôs de dinheiro su-ficiente não só para ampliar a sua criação, mas também para procurar prazeres de homem. Ursula comparava-o naquele tempo com o irmão e não podia entender como os dois g~-meos que pareciam uma pessoa só na infância acabaram sen-do tão diferentes. A perplexidade não durou muito tempo, por-182 que muito brevemente Aureliano Segundo começou a dar mos-tras de malandragem e dissipação. Enquanto esteve fechado no quarto de Melquíades foi um homem ensimesmado, como o fora o Coronel Aureliano Buendía na juventude. Pouco an-tes, porém, do Tratado de Neerlândia, uma casualidade o ar-rancou do seu ensimesmamento e o colocou diante da reali-dade do mundo. Uma mulher jovem, que andava vendendo números para a rifa de um acordeão, cumprimentou-o com muita familiaridade. Aureliano Segundo não se surpreendeu porque acontecia com freqüência confundirem-no com o ir-mão. Mas não esclareceu o equívoco, nem sequer quando a moça tratou de lhe amolecer o coração com choramingos, e acabou por levá-lo para o seu quarto. Despertou-lhe tanto cari-nho desde aquele primeiro encontro que ela fez trapaça na ri-fa para que ele ganhasse o acordeão. Ao fim de duas sema-nas, Aureliano Segundo percebeu que a mulher estava dor- mindo alternadamente com ele e com o irmão, acreditando que eram o mesmo homem, e em vez de esclarecer a situação deu um jeito de prolongá-la. Não voltou ao quarto de Mel-quíades. Passava as tardes no quintal, aprendendo a tocar de ouvido o acordeão, apesar dos protestos de Úrsula, que na-quele tempo havia proibido a música em casa por causa dos lutos e que além disso menosprezava o acordeão como um ins-trumento próprio dos vagabundos herdeiros de Francisco, o Homem. Entretanto, Aureliano Segundo chegou a ser um vir-tuose do acordeão e continuou sendo depois que se casou e teve filhos e passou a ser um dos homens mais respeitados de Macondo. Durante quase dois meses partilhou a mulher com o ir-mão. Vigiava-o, desmanchava os seus planos, e quando esta-va certo de que José Arcadio Segundo não visitaria essa noite a amante comum, ia dormir com ela. Certa manhã descobriu que estava doente. Dois dias depois encontrou o irmão apoia-do numa viga do banheiro, alagado de suor e chorando de cair lágrimas, e então compreendeu. Seu irmão confessou que a amante o repudiara por lhe haver trazido o que ela chamava de uma doença de mulher da vida. Contou-lhe também como Pilar Temera tentava curá- lo. Aureliano Segundo submeteu- 183 se às escondidas às ardentes lavagens de permanganato e às águas diuréticas, e ambos se curaram separadamente após tres meses de sofrimentos secretos. José Arcadio Segundo não vol-tou a ver a mulher. Aureliano Segundo obteve o seu perdão e ficou com ela até a morte. Chamava-se Petra Cotes. Chegada a Macondo em plena guerra, com um marido ocasional que vivia de rifas, e, quan-do o homem morreu, ela continuou com o negócio. Era uma mulata limpa e jovem, com uns olhos amarelos e amendoa-dos que lhe davam ao rosto a ferocidade de uma pantera, mas tinha um coração generoso e uma magnífica vocação para o amor. Quando Ursula soube que José Arcadio Segundo era criador de galos e Aureliano Segundo tocava acordeão nas fes-tas ruidosas da sua concubina, pensou que ia enlouquecer de confusão. Era como se ambos tivessem concentrado os defei-tos da família e nenhuma das suas virtudes. Decidiu então que ninguém mais tornaria a se chamar Aureliano e José Arca-dio. Entretanto, quando Aureliano Segundo teve o seu pri-meiro filho, não se atreveu a contrariá- lo. — Concordo — disse Úrsula — mas com uma condição: eu me encarrego de criá-lo. Embora fosse centenária e estivesse quase cega por causa da catarata, cons&vava intactos o dinamismo físico, a inte-gridade do caráter e o equilíbrio mental. Ninguém melhor do que ela para formar o homem virtuoso que haveria de restau-rar o prestígio da família, um homem que nunca tivesse ouvi-do falar da guerra, dos galos de briga, das mulheres da vida e das empresas delirantes, quatro calamidades que, conforme pensava Ursula, tinham determinado a decadência de sua es-tirpe. “Este será padre”, prometeu solenemente. “E se Deus me der vida bastante~há de chegar a ser Papa.” Todos riram ao ouvi-la, não apenas no quarto, mas em toda a casa, onde estavam reunidos os barulhentos companheiros de Aureliano Segundo. A guerra, relegada ao desvão das más recordações, foi momentaneamente evocada com os estouros da champanha. — A saúde do Papa — brindou Aureliano Segundo. Os convidados brindaram em coro. Em seguida o dono 184 da casa tocou acordeão, soltaram-se foguetes e se ordenaram batucadas de júbilo para o povo. De madrugada, os convida-dos encharcados de champanha sacrificaram seis vacas e as puseram na rua à disposição da multidão. Ninguém se escan- dalizou. Desde que Aureliano Segundo passou a ser o chefe da casa, aquelas festividades eram coisa corrente, mesmo que não existisse um motivo tão justo como o nascimento de um Papa. Em poucos anos, sem esforço, por puros golpes de sor-te, acumulara uma das maiores fortunas do pantanal, graças à proliferação sobrenatural dos seus animais. As suas éguas pariam trigêmeos, as galinhas botavam duas vezes por dia, e os porcos engordavam de forma tão desenfreada que ninguém podia explicar uma fecundidade tão desordenada a não ser por artes de magia. “Economize agora”, dizia Úrsula ao seu bis-neto aturdido. “Esta sorte não vai durar toda a vida.” Mas Aureliano Segundo não lhe prestava atenção. Quanto mais abria champanha para encharcar os amigos, mais loucamen-te pariam os seus animais, e mais se convencia ele de que a sua boa estrela não era ligada ao seu comportamento e sim à influência de Petra Cotes, sua concubina, cujo amor tinha a virtude de exasperar a natureza. Tão convencido estava de que era essa a origem da sua fortuna que nunca possuiu Petra Cotes longe da sua criação, e, mesmo quando se casou e teve filhos, continuou vivendo com ela com o consentimento de Fernanda. Sólido, monumental como os seus avós, mas com um gosto pela vida e uma simpatia irresistível que eles não ti-veram. Aureliano Segundo mal tinha tempo de vigiar o seu gado. Bastava levar Petra Cotes aos estábulos, e passeá-la a cavalo pelas suas terras, para que todo animal marcado com o seu ferro sucumbisse à peste irremediável da proliferação. Como todas as coisas boas que aconteceram na sua lon-ga vida, aquela fortuna atabalhoada teve origem na casuali-dade. Até o final das guerras, Petra Cotes continuava se sus-tentando com o produto das suas rifas, e Aureliano Segundo dava um jeito de saquear de vez em quando os cofres de Ur-sula. Formavam um casal frívolo, sem mais preocupações que a de se deitarem juntos todas as noites, mesmo nas datas proi-bidas, e se divertiam na cama até o amanhecer. “Essa mulher 185 tem sido a sua perdição”, gritava Úrsula para o bisneto quando o via entrar em casa como um sonambulo. “Traz você tão em-beiçado que qualquer dia destes vou vê-lo se torcendo de cóli-ca, com um sapo metido na barriga.” José Arcadio Segundo, que demorou muito tempo para descobrir que tinha sido su-plantado, não conseguia entender a paixão do irmão. Lembrava-se de Petra Cotes como uma mulher convencional, um tanto preguiçosa na cama e completamente desprovida de recursos para o amor. Surdo ao clamor de Ursula e à troça do irmão, Aureliano Segundo só pensava então em encontrar um ofício que lhe permitisse sustentar uma casa para Petra Cotes, e morrer com ela, sobre ela e debaixo dela, numa noite de exaltação febril. Quando o Coronel Aureliano Buendía vol-tou a abrir a oficina, seduzido por fim pelos encantos pacífi-cos da velhice, Aureliano Segundo pensou que seria um bom negócio dedicar-se à fabricação de peixinhos de ouro. Ficou muitas horas no quartinho encalorado vendo como as duras lâminas de metal, trabalhadas pelo coronel com a paciência inconcebível do desengano, iam-se convertendo pouco a pou-co em escamas douradas. O ofício lhe pareceu tão trabalho-so, e era tão persistente e urgente a lembrança de Petra Cotes que ao fim de três se~nanas desapareceu da oficina. Foi por essa época que Petra Cotes cismou de rifar coelhos. Reproduziam-se e se tornavam adultos com tanta rapidez que mal davam tempo para vender os números da rifa. No início, Aureliano Segundo não percebeu as alarmantes proporções da proliferação. Mas certa noite, quando já ninguém mais do po-voado queria ouvir falar das rifas de coelhos, ouviu um estar-dalhaço na parede do quintal. “Não se assuste”, disse Petra Cotes. “São os coelhos.” Não puderam dormir mais, ator-mentados pelo tráfego dos animais. Ao amanhecer, Aurelia-no Segundo abriu a porta e viu o quintal entupido de coelhos, azuis no resplendor da alvorada. Petra Cotes, morta de rir, não resistiu à tentação de fazer uma brincadeira. — Esses são os que nasceram esta noite — disse. — Que horror! — disse ele. — Por que é que você não experimenta com as vacas? Poucos dias depois, tratando de desafogar o quintal, Pe-186 tra Cotes trocou os coelhos por uma vaca, que dois meses mais tarde pariu trigêmeos. Assim começaram as coisas. Da noite para o dia, Aureliano Segundo se fez dono de terras e gado, e mal tinha tempo de ampliar as cavalariças e chiqueiros su-perlotados. Era uma prosperidade de delírio que a ele mesmo causava riso e não podia fazer outra coisa senão assumir ati-tudes extravagantes para descarregar o seu. bom humor. “Afastem-se, vacas, que a vida é curta”, gritava. Úrsula se perguntava em que trapalhadas se metera, se não estaria rou- bando, se não acabara por se transformar em ladrão de gado, e cada vez que o via abrindo champanha pelo puro prazer de jogar espuma na cabeça, reprovava aos berros o desperdício. Aborreceu-o tanto que, um dia em que Aureliano Segundo amanheceu com a paciência esgotada, apareceu com um cai-xote de dinheiro, uma lata de cola e uma brocha, e cantando a plenos pulmões as velhas cantigas de Francisco, o Homem, empapelou a casa por dentro e por fora, e de cima até embai- xo, com notas de um peso. A antiga mansão, pintada de branco desde o tempo em que trouxeram a pianola, adquiriu o aspec-to equívoco de uma mesquita. Em meio ao alvoroço da famí-lia, ao escândalo de Ürsula, ao júbilo do povo que encheu a rua para presenciar a glorificação do esbanjamento, Aurelia-no Segundo acabou empapelando tudo, da fachada até a co-zinha, inclusive os banheiros e os quartos, e jogou as notas que sobraram no quintal. — Agora — disse finalmente — espero que ninguém nesta casa venha me falar de dinheiro. Assim foi. Ursula mandou tirar as notas aderidas às gran-des placas de cal, e voltou a pintar a casa de branco. “Meu Deus”, suplicava. “Faça-nos tão pobres como éramos quan-do fundamos este povoado, para que na outra vida não nos cobrem este desperdício.” As suas súplicas foram escutadas em sentido contrário. Realmente, um dos trabalhadores que descolava as notas tropeçou por descuido num enorme São José de gesso que alguém tinha deixado na casa nos últimos anos da guerra e a imagem oca se despedaçou contra o chão. Estava entupida de moedas de ouro. Ninguém se lembrava quem trouxera aquele santo de tamanho natural. “Três ho-187 mens o trouxeram”, explicou Amaranta. “Pediram-me que o guardássemos enquanto a chuva passava e eu lhes disse que o pusessem aí no canto, onde ninguém fosse tropeçar nele, e aí o puseram com o maior cuidado, e aí ficou desde então, porque nunca mais voltaram para buscá-lo.” Nos últimos tem-pos, Ursula lhe acendera velas e se ajoelhara diante dele, sem suspeitar que em lugar de um santo estava adorando quase duzentos quilos de ouro. A comprovação tardia do seu invo. luntário paganismo agravou o seu desconsolo. Cuspiu no es-petacular montão de moedas, meteu-o em três sacos de lona e o enterrou num lugar secreto, à espera de que mais cedo ou mais tarde os três desconhecidos viessem reclamá-las. Muito depois, nos anos difíceis da sua decrepitude, Úrsula costuma-va intervir nas conversas dos numerosos viajantes que então passavam pela casa, e lhes perguntava se durante a guerra não tinham deixado ali um São José de gesso para que o guardas-sem enquanto passava a chuva. Estas coisas, que tanto consternavam Úrsula, eram co muns naquele tempo. Macondo naufragava numa prosperi-dade de milagre. As casas de sopapo e pau-a-pique dos f~un-dadores tinham sido substituídas por construções de tijolo, com persianas de madeira e chão de cimento, que tornavam mais suportável o calor srifocante das duas da tarde. Da antiga al-deia de José Arcadio Buendía só restavam agora as amendoei-ras empoeiradas, destinadas a resistir às circunstâncias mais árduas, e o rio de águas diáfanas cujas pedras pré-históricas foram pulverizadas pelas enlouquecidas picaretas de José Ar-cadio Segundo, quando se empenhou em preparar o leito pa-ra instituir um serviço de navegação. Foi um sonho delirante, comparável apenas aos do seu bisavô, porque o leito pedre-goso e os numerosos obstáculos da correnteza impediam o trân-sito de Macondo até o mar. Mas José Arcadio Segundo, num imprevisto impulso de temeridade, obstinou-se no projeto. Até então não dera nenhuma amostra de imaginação. Salvo a sua precária aventura com Petra Cotes, nunca se soube de nenhum caso seu com mulher. Úrsula o tinha em conta do exemplar mais apagado que a família produzira em toda a sua história, incapaz de se destacar sequer como animador de rinhas, quan-188 do o Coronel Aureliano Buendía lhe contou a história do ga-leão espanhol encalhado a doze quilômetros do mar, cuja car-caça carbonizada ele mesmo vira durante a guerra. O relato, que para tanta gente durante tanto tempo parecera fantásti-co, foi uma revelação para José Arcadio Segundo. Acabou com os galos em favor do melhor arrematante, recrutou ho-mens e comprou ferramentas, e se empenhou na descomunal empresa de quebrar pedras, escavar canais, limpar escolhos eaté nivelar cataratas. “Isto eu já sei de cor e salteado”, gri-tava Úrsula. “Ë como se o tempo desse voltas sobre si mesmo e tivéssemos voltado ao princípio.” Quando considerou o rio navegável, José Arcadio Segundo fez ao irmão uma exposi-ção pormenorizada dos seus planos, e este lhe deu o dinheiro que faltava para a empresa. Desapareceu por muito tempo. Já se tinha dito que o seu projeto de comprar um navio não era mais que o conto-do-vigário para dar o fora com o dinheiro do irmão quando se divulgou a notícia de que uma estranha nave se aproximava do povoado. Os habitantes de Macondo, que já não se lembravam das empresas colossais de José Ar-cadio Buendía, precipitaram-se para a margem do rio e viram de olhos pasmados de incredulidade a chegada do primeiro e último navio que alguma vez atracou no povoado. Não era mais que uma balsa de troncos, arrastada mediante grossos cabos por vinte homens que caminhavam pela margem. Na proa, com um brilho de satisfação nos olhos, José Arcadio Segundo dirigia a dispendiosa manobra. Junto com ele che-gava um grupo de matronas esplêndidas que se protegiam do sol abrasador com vistosas sombrinhas e traziam nos ombros lindos xales de seda e ungüentos coloridos no rosto e flores naturais no cabelo e serpentes de ouro nos braços e diaman-tes nos dentes. A balsa de troncos foi o único veículo que Jo-sé Arcadio Segundo pôde levar até Macondo, e somente uma vez, mas nunca reconheceu o fracasso da sua empresa e sim proclamou a sua façanha como uma vitória da força de von-tade. Apresentou contas escrupulosas ao irmão e muito em breve voltou a se enterrar na rotina dos galos. A única coisa que ficou daquela desventurada iniciativa foi o sopro de re-novação que trouxeram as matronas da França, cujas artes 189 magníficas mudaram os métodos tradicionais do amor, e cujo senso de bem-estar social arrasou com a antiquada taberna de Catarino e transformou a rua num bazar de lâmpadas ja-ponesas e realejos nostálgicos. Foram elas as promotoras do carnaval sangrento que durante três dias afogou Macondo no delírio, e cuja única conseqüência perdurável foi ter dado a Aureliano Segundo a oportunidade de conhecer Fernanda dei Carpio. Remedios, a bela, foi proclamada rainha. Úrsula, que es-tremecia diante da beleza inquietante da bisneta, não pôde im-pedir a eleição. Até então conseguira que ela não saísse à rua, a não ser para ir à missa com Amaranta, mas a obrigava a cobrir a cara com uma mantilha negra. Os homens menos pie-dosos, os que se fantasiavam de padres para dizer missas sa-críiegas na taberna de Catarino, iam à igreja com o único pro-pósito de ver, ainda que fosse por um só instante, o rosto de Remedios, a bela, de cuja beleza lendária se falava com um fervor recolhido em todo o âmbito do pantanal. Muito tem-po se passou antes de que o conseguissem, e mais lhes teria valido se a ocasião não tivesse chegado nunca, porque a maioria deles nunca mais pôde recuperar a placidez do sono. O ho-mem que tornou o fato possível, um forasteiro, perdeu para sempre a serenidade2enredOu-Se nas areias movediças da ab-jeção e da miséria, e anos depois foi espedaçado por um trem noturno quando adormeceu sobre os trilhos. Desde o momento em que foi visto na igreja, com um traje de pelúcia verde e um casaco bordado, ninguém pôs em dúvida que vinha de mui-to longe, talvez de uma remota cidade do exterior, atraído pela fascinação mágica de Remedios, a bela. Era tão bonito,. tão galhardo e sereno, de uma excelência tão bem distribuída, que Pietro Crespi junto dele pareceria uma criança prematura, e muitas mulheres murmuraram entre sorrisos de despeito que era ele quem verdadeiramente merecia a mantilha. Não con-versou com ninguém em Macondo. Aparecia nas manhãs de domingo, como um príncipe de contos de fada, num cavalo com estribos de prata e manta de veludo, e abandonava o po-voado depois da missa. Era tal o poder da sua presença que, desde a primeira vez 190 foi visto na igreja, todo mundo deu por certo que entre Remedios, a bela, se estabelecera um duelo calado e ten- - um pacto secreto, um desafio irrevogável cuja culminân-não podia ser somente o amor, mas também a morte. No domingo, o cavaleiro apareceu com uma rosa amarela mão. Ouviu a missa de pé, como fazia sempre, e no final interpôs no caminho de Remedios, a bela, e ofereceu-lhe rosa solitária. Ela a recebeu com um gesto natural, como estivesse preparada para aquela homenagem, e então des- o rosto por um instante e agradeceu com um sorriso. tudo quanto fez. Mas não apenas para o cavaleiro, como todos os homens que tiveram o infeliz privilégio de vivê-aquele foi um instante eterno. O cavaleiro instalava, a partir de então, a banda de mú-junto da janela de Remedios, a bela, e às vezes até o ama-Aureliano Segundo foi o único que sentiu por ele uma ompaixãO cordial e tentou abalar a sua perseverança. “Não mais tempo”, disse a ele uma noite. “As mulheres des-casa são piores do que as mulas.” Ofereceu-lhe a sua ami-convidou-o para tomar um banho de champanha, ten- fazê-lo entender que as fêmeas da família tinham entra-de pedra, mas não conseguiu vulnerar a sua obstinação. ~erado pelas intermináveis noites de música, o Coronel ureliano Buendía ameaçou-o de lhe curar o sofrimento a ti- de pistola. Nada o fez desistir, salvo o seu próprio e la-nentável estado de desmoralização. De garboso e impecável vil e esfarrapado. Corria o boato de que abandonara ‘e fortuna na sua terra distante, embora na verdade nunca Dubesse da sua origem. Tornou-se homem de briga, arrua-de bar, e amanheceu emborcado nas suas próprias ex- na taberna de Catarino. O mais triste do seu drama era que Remedios, a bela, não lhe dava atenção nem mesmo quando ele se apresentava na igreja vestido de príncipe. Rece-bera a rosa amarela sem a menor malícia, apenas divertida pela extravagância do gesto, e levantara a mantilha para ver me-lbor a cara dele, e não para lhe mostrar a sua. Realmente, Remedios, a bela, não era um ser deste mun-do. Até com a puberdade já bem avançada, Santa Sofía de 191 ‘1 la Piedad teve de lhe dar banho e mudar de roupa, e mesmo quando já se pôde valer sozinha, tinha que vigiá-la para que não pintasse animaizinhos nas paredes com uma varinha lam-buzada com o seu próprio cocô. Atingiu os vinte anos sem aprender a ler e escrever, sem se servir dos talheres na mesa, passeando nua pela casa, porque a sua natureza reagia contra qualquer espécie de convencionalismo. Quando o jovem co-mandante da guarda lhe declarou o seu amor, recusou-o sim-plesmente porque se assombrou com a sua frivolidade. “Olha que bobo que ele é”, disse a Amaranta. “Diz que está mor-rendo por minha causa, como se eu fosse uma cólica misere-re.” Quando na verdade o encontraram morto junto à sua ja-nela, Remedios, a bela, confirmou a sua impressão inicial. — Vejam só — comentou. — Era um bobo total. Era como se uma lucidez penetrante lhe permitisse ver a realidade das coisas além de qualquer formalismo. Este era pelo menos o ponto de vista do Coronel Aureliano Buendía, para quem Remedios, a bela, não era de modo algum retar-dada mental, como se acreditava, e sim exatamente o contrá-rio. “E como se viesse de volta de vinte anos de guerra”, cos-tumava dizer. Ursula, por seu lado, agradecia a Deus que ti-vesse premiado a família com uma criatura de uma pureza ex-cepcional, mas ao mesmo tempo a perturbava a sua beleza, porque lhe parecia uma virtude contraditória, uma armadi-lha diabólica, no centro da sua candidez. Foi por isso que de-cidiu separá-la do mundo, preservá-la de toda tentação terre-na, sem saber que Remedios, a bela, já desde o ventre de sua mae estava a salvo de qualquer contágio. Nunca lhe passou pela cabeça a idéia de que a elegessem rainha da beleza no pan-demônio de um carnaval. Mas Aureliano Segundo, animadís-simo com a inspiração súbita de se fantasiar de tigre, trouxe o Padre Antonio Isabel em casa para que convencesse Úrsula de que o carnaval não era uma festa pagã, como ela dizia, mas uma tradição católica. Finalmente convencida, embora ros-nando de má vontade, deu o consentimento para a coroação. A notícia de que Remedios Buendía ia ser a soberana do festival transbordou em poucas horas os limites do pantanal, chegou até longínquos territórios onde se ignorava o imenso 192 prestígio da sua beleza e provocou a inquietação dos que ain-da consideravam o seu sobrenome como um símbolo da sub-versão. Era uma inquietação sem fundamento. Se havia al-guém inofensivo naquele tempo, era o envelhecido e desiludi-do Coronel Aureliano Buendía, que pouco a pouco fora per-dendo todo o contato com a realidade da nação. Fechado na sua oficina, a sua única relação com o resto do mundo era o comércio de peixinhos de ouro. Um dos antigos soldados que vigiaram a sua casa nos primeiros dias da paz ia venda-los nas povoações do pantanal e voltava carregado de moe-das e notícias. Que o governo conservador, dizia, com o apoio dos liberais, estava reformando o calendário para que cada presidente estivesse cem anos no poder. Que finalmente se havia assinado o acordo com a Santa Sé, e que tinha vindo de Ro-ma um cardeal com uma coroa de diamantes e um trono de ouro maciço, e que os ministros liberais se fizeram fotografar de joelhos no ato de lhe beijar o anel. Que a corista principal de uma companhia espanhola, de passagem pela capital, fora seqüestrada no seu camarim por um grupo de mascarados e no domingo seguinte dançara nua na casa de verão do Presi- dente da República. “Não fale de política”, dizia-lhe o coro-nel. “O que nos interessa é vender peixinhos.” O falatório pú-blico de que não queria mais saber da situação do país por-que estava ficando rico com a oficina provocou as gargalha-das de Úrsula, quando chegou aos seus ouvidos. Com o seu incrível senso prático, ela não podia entender o comércio do coronel, que trocava os peixinhos por moedas de ouro, e em seguida transformava as moedas de ouro em peixinhos, e as-sim sucessivamente, de modo que tinha que trabalhar cada vez mais à medida que vendia, para satisfazer um círculo vicioso exasperante. Na verdade, o que interessava a ele não era o ne-gócio e sim o trabalho. Precisava de tanta concentração para engastar escamas, incrustar minúsculos rubis nos olhos, lami- nar barbatanas e montar nadadeiras que não sobrava um só vazio para encher com a desilusão da guerra. Tão absorvente era a atenção que lhe exigia o preciosismo da artesania que em pouco tempo envelheceu mais do que em todos os anos de guerra, e a posição lhe entortou a espinha dorsal e a miii-193 metria lhe gastou a vista, mas a concentração implacável o pr miou com a paz de espírito. A última vez em que foi visto ater der a algum assunto relacionado com a guerra, foi quando ur grupo de veteranos de ambos os partidos solicitou o seu apoi para a aprovação das pensões vitalícias, sempre prometida e sempre no ponto de partida. “Esqueçam isso”, disse a eles “Não vêem que eu recusei a minha pensão para evitar a tor tura de ficar esperando até a morte?” No começo, o Cororn Gerineldo Márquez o visitava à tardinha e os dois se senta vam na porta da rua para evocar o passado. Mas Amarant. não pôde suportar as lembranças que lhe suscitava aquele ho mem cansado cuja calvície o precipitava ao abismo de um velhice prematura, e o atormentou com indelicadezas injus tas, até que ele não voltou mais, a não ser em ocasiões espe ciais, e desapareceu por fim anulado pela paralisia. Tacitur no, silencioso, insensível ao novo sopro de vitalidade que es tremecia a casa, o Coronel Aureliano Buendía compreendei de leve que o segredo de uma boa velhice não é outra cois~ senão um pacto honrado com a solidão. Levantava-se às cm co da manhã depois de um sono superficial, tomava na cozi nha a sua eterna caneca de café amargo, trancafiava-se o di~ inteiro na oficina, e às quatro da tarde passava pelo corredo arrastando um bailquinho, sem observar sequer o incêndio da roseiras, nem o brilho da hora, nem a impavidez de Amaran ta, cuja melancolia fazia um barulho de marmita perfeitamenti audível ao entardecer, e se sentava na porta da rua até qw o permitissem os mosquitos. Alguém se atreveu, certa vez, perturbar a sua solidão. — Como vai, coronel? — disse ao passar. — Aqui firme — ele respondeu. — Esperando o meu en• terro passar. De modo que a inquietação causada pela reaparição pú blica do seu sobrenome, a propósito do reinado de Remedios a bela, carecia de fundamento real. Muitos, entretanto, nã pensaram assim. Inocente da tragédia que o ameaçava, o po. vo transbordou na praça pública, numa barulhenta explosãc de alegria. O carnaval tinha alcançado o seu mais alto níve de loucura, Aureliano Segundo tinha satisfeito por fim o seu 194 sonho de se fantasiar de tigre e andava feliz entre a multidão exaltada, rouco de tanto rugir, quando apareceu vindo pelo caminho do pantanal um bloco enorme trazendo num andor dourado a mulher mais fascinante que se podia imaginar. Por um momento, os pacíficos habitantes de Macondo tiraram as máscaras para ver melhor a deslumbrante criatura com coroa de esmeraldas e capa de arminho, que parecia investida de uma autoridade legítima e não simplesmente de uma soberania de lantejoulas e papel crepom. Não faltou quem tivesse a sufi-ciente clarividência para suspeitar de que se tratava de uma provocação. Mas Aureliano Segundo se sobrepôs imediatamen-te à perplexidade, declarou como hóspedes de honra os recém-chegados e sentou salomonicamente Remedios, a bela, e a rai-nha intrusa no mesmo pedestal. Até a meia-noite, os forastei-ros fantasiados de beduínos participaram do delírio e até o enriqueceram com uma pirotecnia suntuosa e umas virtudes acrobáticas que fizeram pensar nas artes dos ciganos. De re-pente, no paroxismo da festa, alguém quebrou o delicado equilíbrio. — Viva o Partido Liberal! — gritou. — Viva o Coronel Aureliano Buendía! As descargas de fuzilaria abafaram o esplendor dos fo-gos de artifício e os gritos de terror anularam a música e o júbilo foi aniquilado pelo pânico. Muitos anos depois continuar-se-ia afirmando que a guarda real da soberana in-trusa era um esquadrão do exército regular que debaixo das suas ricas chilabas escondia fuzis de verdade. O governo ne-gou a culpa num decreto extraordinário e prometeu uma in-vestigação rigorosa do episódio sangrento. Mas a verdade não se esclareceu nunca e prevaleceu para sempre a versão de que a guarda real, sem provocação de nenhuma espécie, tomou posições de combate a um sinal do seu comandante e dispa-rou sem piedade contra a multidão. Quando se restabeleceu a calma, não restava no povoado um só dos falsos beduínos, e ficaram estendidos na praça, entre mortos e feridos, nove palhaços, quatro colombinas, dezessete reis de baralho, um diabo, três músicos, dois Pares de França e três imperatrizes japonesas. Na confusão do pânico, José Arcadio Segundo con-195 seguiu pôr a salvo Remedios, a bela, e Aureliano Segundo car-regou no colo para casa a soberana intrusa, com a roupa ras-gada e a capa de arminho manchada de sangue. Chamava-se Fernanda dei Carpio. Haviam-na selecionado como a mais bela entre as cinco mil mulheres mais belas do país e a trouxeram para Macondo com a promessa de proclamá-la rainha de Ma-dagáscar. Ursula cuidou dela como se fosse uma filha. O po-vo, em vez de pôr em dúvida a sua inocência, compadeceu-se da sua candideL Seis meses depois do massacre, quando os feridos se restabeleceram e murcharam as últimas flores da vala comum, Aureliano Segundo foi procurá-la na cidade distante onde vivia com o pai e se casou com ela em Macondo, numa fragorosa festança de vinte dias. -4 196 ~~1 -4 O CASAMENTO esteve prestes a naufragar aos dois meses de idade, porque Aureliano Segundo, tentando aplacar Petra Co-tes, fê-la tirar um retrato vestida de rainha de Madagáscar. Quando Fernanda soube, tornou a arrumar as arcas do enxo-val de recém-casada e partiu de Macondo sem se despedir. Au-reliano Segundo alcançou-a na estrada do pantanal. Ao fim de muitas súplicas e promessas de emenda, conseguiu levá-la de volta para casa e abandonou a concubina. Petra Cotes, consciente da sua força, não demonstrou preocupação. Ela o fizera homem. Ainda menino o tirara do quarto de Melquíades, com a cabeça cheia de idéias fantásti-cas e sem nenhum contato com a realidade, e lhe dera um lu-gar no mundo. A natureza o tinha feito reservado e esquivo, 197 com tendência para a meditação solitária, e ela lhe havia mol-dado o temperamento oposto, vital, expansivo, aberto, e lhe havia infundido a alegria de viver e o prazer da farra e da dis-sipação, até convertê-lo, por dentro e por fora, no homem com quem havia sonhado para si desde a adolescência. Casara-se, pois, como mais cedo ou mais tarde os filhos se casam. Ele não ousou lhe antecipar a notícia. Assumiu uma atitude tão infantil diante da situação que fingia falsos rancores e ressen-timentos imaginários, procurando um modo de ser Petra Co-tes quem provocasse o rompimento. Um dia em que Aurelia-no lhe fez uma censura injusta, ela descobriu o jogo e pôs as coisas no seu devido lugar. — O que acontece — disse — é que você quer se casar com a rainha. Aureliano Segundo, envergonhado, fingiu um ataque de raiva, declarou-se incompreendido e ultrajado, e não voltou a visitá-la. Petra Cotes, sem perder por um só instante o seu magnífico domínio de fera em repouso, ouviu a música e os foguetes do casamento, a barulhada enlouquecedora da fes-tança pública, como se tudo isso não fosse nada além de uma nova travessura de Aureliano Segundo. Aos que se compade-ceram da sua sorte, tranqüilizou-os com um sorriso. “Não se preocupem”, disse’. “As rainhas sempre cumprem as minhas ordens.” A uma vizinha que lhe trouxe umas velas para que iluminasse com elas o retrato do amante perdido, disse com segurança enigmática: — A única vela que o fará vir está sempre acesa. Tal como ela havia previsto, Aureliano Segundo voltou à sua casa imediatamente após a lua-de-mel. Trouxe os seus companheiros de sempre, um fotógrafo ambulante, e a roupa e a capa de arminho suja de sangue que Fernanda usara no carnaval. No calor da farra que se armou essa tarde, vestiu Petra Cotes de rainha, coroou-a soberana absoluta e vitalícia de Madagáscar e distribuiu cópias do retrato entre os seus ami-gos. Ela não só se prestou à brincadeira como também se com-padeceu intimamente dele, pensando que devia estar muito as- sustado quando imaginou aquele extravagante recurso de re-conciliação. Às sete da noite, ainda vestida de rainha, recebeu-o 198 na cama. Tinha apenas dois meses de casado, mas ela perce-beu imediatamente que as coisas não andavam bem no leito nupcial e experimentou o delicioso prazer da vingança consu-mada. Dois dias depois, entretanto, quando ele não se atre-veu a voltar e mandou um intermediário para que resolvesse os termos da separação, ela compreendeu que ia precisar dc mais paciência do que a prevista, porque ele parecia disposto a se sacrificar pelas aparências. Mesmo assim não se alterou. Tornou a facilitar as coisas com uma submissão que confir-mou a crença generalizada de que ela era uma pobre mulher, e a única lembrança de Aureliano Segundo que conservou foi um par de botinas de verniz que, conforme o que ele mesmo dissera, eram as que queria ter calçadas no ataúde. Guardou-as embrulhadas em trapos no fundo do baú e preparou-se pa-ra apascentar uma espera sem desespero. — Mais cedo ou mais tarde terá que vir — disse para si mesma — mesmo que seja só para calçar estas botinas. Não teve que esperar tanto quanto supunha. Realmente, Aureliano Segundo compreendera desde a noite de núpcias que voltaria à casa de Petra Cotes muitos antes de que tivesse ne-cessidade de calçar as botinas de verniz: Fernanda era uma mulher perdida para o mundo. Nascera e crescera a mil qui-lômetros do mar, numa cidade lúgubre por cujas ruelas de pe-dra chacoalhavam ainda, em noites mal-assombradas, as car-ruagens dos vice-reis. Trinta e dois campanários davam toques de defunto às seis da tarde. Na casa senhorial ladrilhada de lousas sepulcrais jamais se conhecera o sol. O ar morrera nos ciprestes do pátio, nas pálidas cortinas das alcovas, nas arca-das úmidas do jardim dos nardos. Fernanda não tivera até a puberdade outra notícia do mundo a não ser os melancólicos exercícios de piano executados em alguma casa vizinha por al-guém que durante anos e anos se permitiu a liberdade de não fazer a sesta. No quarto da mãe doente, verde e amarela de-baixo da empoeirada luz dos vitrais, escutava as escalas me-tódicas, tenazes, desanimadas, e pensava que essa música es-tava no mundo, enquanto ela se consumia tecendo coroas dc defunto. Sua mãe, suando a febre das cinco, falava do esplen-dor do passado. Ainda muito menina, numa noite de lua, Fer-199 nanda vira uma linda mulher vestida de branco que sava o jardim para o oratório. O que mais a angustiou naqr la visão fugitiva foi que a sentiu exatamente igual a ela, coir se se tivesse visto a si mesma com vinte anos de antecipaçãc “É a tua bisavó, a rainha”, disse-lhe a mãe numa trégua tosse. “Morreu de um golpe de ar que apanhou ao quebra. um talo de nardo.” Muitos anos depois, quando começou se sentir igual à bisavó, Fernanda pôs em dúvida a visão infância, mas a mãe reprovou a sua incredulidade. — Somos imensamente ricos e poderosos — disse. —dia voce será rainha. Ela acreditou, embora só ocupassem a longa mesa com toalhas de linho e baixela de prata para tomar uma xícara de chocolate com água e um pão doce. Até o dia do casamento sonhou com um reinado de lenda, embora seu pai, D. -nando, tivesse que hipotecar a casa para lhe comprar o val. Não era ingenuidade nem delírio de grandeza. Fora edu-cada assim. Desde que pôde fazer uso da razão que se lem- brava de ter feito as suas necessidades num peniquinho de ouro com o escudo de armas da família. Saiu de casa pela primeira vez aos doze anos, num tílburi que teve apenas que percorrer dois quarteirões para levá-la ao convento. As suas companhei-ras de estudo se surpreenderam de que a pusessem separada, numa cadeira de espaldar muito alto, e de que não se mistu-rasse com elas nem durante o recreio. “Ela é diferente”, ex-plicavam as freiras. “Vai ser rainha.” As colegas acreditaram, porque já era na época a donzela mais bela, distinta e discreta que tinham visto na vida. Ao fim de oito anos, tendo apren-dido a versejar em latim, a tocar o clavicórdio, a conversar sobre falcoaria com os cavalheiros e sobre apologética com os arcebispos, a expor assuntos de estado com os governantes estrangeiros e assuntos de Deus com o Papa, voltou para a casa de seus pais, para tecer coroas de defunto. Encontrou-a desfalcada. Restavam apenas os móveis indispensáveis, os can-delabros e a baixela de prata, porque os utensílios domésticos tinham sido vendidos, um a um, para pagar os gastos da sua educação. Sua mãe sucumbira à febre das cinco. Seu pai, D. Fernando, vestido de negro, com um colarinho de babados 200 uma corrente de ouro atravessada no peito, dava-lhe às segundas-f eiras uma moeda de prata para os gastos domésti-cos e levava as coroas de defunto terminadas na semana ante-rior. Passava a maior parte do dia trancado no escritório e, nas poucas ocasiões em que saía à rua, voltava antes das seis para acompanhá-la ao rezar o rosário. Nunca manteve ami-zade íntima com ninguém. Nunca ouviu falar das guerras que sangraram o país. Nunca deixou de ouvir os exercícios de pia-no às tres da tarde. Começava inclusive a perder a esperança de ser rainha quando soaram duas pancadas firmes no portão e ela o abriu para um militar erecto, de gestos cerimoniosos, que tinha uma cicatriz na face e uma medalha de ouro no pei-to. Fechou-se com o seu pai no escritório. Duas horas depois, o pai foi buscá-la no quarto de costura. “Preparai-vos”, dis-se. “Tendes que fazer uma longa viagem.” Foi assim que a levaram para Macondo. Num só dia, numa bofetada brutal, a vida jogou-lhe por cima dos ombros todo o peso de uma realidade que durante anos seus pais lhe haviam escondido. De volta a casa, fechou-se no quarto para chorar, indiferente às súplicas e explicações de D. Fernando, tentando apagar a cicatriz daquele embuste inaudito. Prometera a si mesma não abandonar o quarto até a morte, quando Aureliano Segundo chegou para buscá-la. Foi uma sorte incrível, porque no atur-dimento da indignação, na fúria da vergonha, ela lhe havia mentido, para que nunca conhecesse a sua verdadeira identi-dade. As únicas pistas reais de que dispunha Aurelíano Se-gundo quando saiu para procurá-la eram o seu inconfundível sotaque do páramo e o seu ofício de tecelã de coroas fúne-bres. Procurou-a sem descanso. Com a temeridade atroz com que José Arcadio Buendía atravessara a serra para fundar Ma-condo, com o orgulho cego com que o Coronel Aureliano Buendía promovera as suas guerras inúteis, com a tenacidade insensata com que Ursula assegurara a sobrevivência da estir-pe, assim Aureliano Segundo procurou Fernanda, sem um só instante de desalento. Quando perguntou onde se vendiam co-roas de defunto, levaram-no de casa em casa para que esco-lhesse as melhores. Quando perguntou onde estava a mulher mais bela que já surgira sobre a terra, todas as mães lhe leva- 201 ram as suas filhas. Perdeu-se nos desfiladeiros da névoa, por tempos reservados ao esquecimento, nos labirintos da desilu-são. Atravessou um ermo amarelo onde o eco repetia os pen-samentos e a ansiedade provocava miragens premonitórias. Ao fim de semanas estéreis, chegou a uma cidade desconhecida onde todos os sinos tocavam a finados. Embora nunca os ti-vesse visto, nem ninguém os tivesse descrito, reconheceu ime-diatamente os muros carcomidos pelo sal dos ossos, as decré-pitas varandas de madeiras destripadas pelos fungos, e prega-do no portão e quase apagado pela chuva o cartãozinho mais triste do mundo: VENDEM-SE COROAS FÚNEBRES Desse momento até a manhã gelada em que Fernanda abandonou a casa aos cuidados da Madre Superiora, mal houve tempo para que as freiras cosessem o enxoval e colocassem em seis baús os candelabros, a baixela de prata e o peniqui-nho de ouro e os incontáveis e inúteis destroços de uma catás-trofe familiar que tardara dois séculos para se consumar. D. Fernando recusou o convite para acompanhá-los. Prometeu ir mais tarde, quando acabasse de liquidar os seus compro-missos, e a partir do.momento em que deu a bênção à filha voltou a se trancar no escritório, a escrever os bilhetes com as vinhetas de luto e o escudo de armas da família que have-riam de ser o primeiro contato humano que Fernanda e seu pai tiveram em toda a vida. Para ela, esta foi a data real do seu nascimento. Para Aureliano Segundo foi quase ao mes-mo tempo o princípio e o fim da felicidade. Fernanda trazia um lindo calendário com chavinhas dou-radas em que o seu diretor espiritual marcara com tinta roxa as datas de abstinência venérea. Descontando a Semana San-ta, os domingos, as festas de guarda, as primeiras sextas-feiras, os retiros, os sacrifícios e os impedimentos cíclicos, o seu anuá-rio útil ficava reduzido a 42 dias esparzidos num emaranhado de cruzes roxas. Aureliano Segundo, convencido de que o tem-po jogaria por terra aquela muralha hostil, prolongou a festa do casamento além do prazo previsto. Cansada de tanto man-202 dar para o lixeiro as garrafas vazias de brandy e de champa-nha, para que não congestionassem a casa, e ao mesmo tem-po intrigada pelo fato de os recém- casados dormirem em ho-ras diferentes e em quartos separados, enquanto continuavam os foguetes e a música e os sacrifícios de reses, Úrsula se lem-brou da sua própria experiência e se perguntou se Fernanda não teria também um cinto de castidade que mais cedo ou mais tarde provocaria as zombarias do povo e daria origem a uma tragédia. Mas Fernanda lhe confessou que simplesmente es-tava deixando passar duas semanas antes de permitir o pri-meiro contato com o seu esposo. Transcorrido o prazo, com efeito, abriu a porta do seu quarto com a resignação ao sacri-fício com que o teria feito uma vítima expiatória, e Aureliano Segundo viu a mulher mais bela da terra, com os seus glorio-sos olhos de animal assustado e os longos cabelos cor de co-bre estendidos no travesseiro. Tão fascinado estava com a vi-são que demorou um momento para perceber que Fernanda pusera uma camisola branca, comprida até os tornozelos e com mangas até os punhos, e com um buraco grande e redondo primorosamente caseado na altura do ventre. Aureliano Se-gundo não pôde reprimir um ataque de riso. — Isto é a coisa mais obscena que eu já vi na minha vida — gritou, com uma gargalhada que ressoou pela casa inteira. — Casei-me com uma irmãzinha de caridade. Um mês depois, não tendo conseguido que a esposa ti-rasse a camisola, foi fazer o retrato de Petra Cotes vestida de rainha. Mais tarde, quando obteve que Fernanda voltasse pa-ra casa, ela cedeu às suas exigências na febre da reconcilia-ção, mas não soube lhe porporcionar o descanso com que ele sonhava quando foi buscá-la na cidade dos trinta e dois cam-panários. Aureliano Segundo só encontrou nela um profun-do sentimento de desolação. Uma noite, pouco antes de nas-cer o primeiro filho, Fernanda notou que o marido voltara em segredo ao leito de Petra Cotes. — É verdade — admitiu ele. E explicou num tom de pros-trada resignação: — Tive que fazer isso para que os animais continuassem parindo. Foi preciso um pouco de tempo para convencê-la de re-203 curso tão esquisito, mas quando por fim o conseguiu, mediante provas que pareceram irrefutáveis, a única promessa que Fer-nanda lhe impôs foi a de que não se deixasse surpreender pela morte na cama da concubina. Assim continuaram vivendo os três, sem se atrapalhar, Aureliano Segundo pontual e carinhoso com ambas, Petra Cotes se pavoneando com a reconciliação e Fernanda fingindo que ignorava a verdade. O pacto, entretanto, não fez com que Fernanda se incor-porasse à família. Em vão Úrsula insistiu para que ela tirasse a gola de lã com que se levantava quando tinha feito amor e que provocava os cochichos dos vizinhos. Não conseguiu convencê-la a se utilizar do banheiro, ou do vaso noturno, e a vender o seu peniquinho de ouro ao Coronel Aureliano Buen-día para que o transformasse em peixinhos. Amaranta se sen-tiu tão incomodada com a sua dicção viciosa e com o seu há-bito de usar um eufemismo para designar cada coisa, que diante dela sempre falava na língua do p. — Espetapd — dizia — épé daspas quepê têmpêm nopo-jopô dapa própopriapd merperdapá. Um dia, irritada com a brincadeira, Fernanda quis saber o que é que Amaranta estava dizendo e ela não usou de eufe. mismos para lhe responder. — Estou dizendo — disse — que você é das que confun-dem o cu com as têmporas. A partir daquele dia não tornaram a se falar. Quando as circunstâncias obrigavam, mandavam-se recados ou se diziam as coisas indiretamente. Apesar da visível hostilidade da fa-mília, Fernanda não renunciou à vontade de impor os hábi-tos de seus antepassados. Acabou com o costume de comer na cozinha e quando cada um tinha fome, e impôs a obriga-ção de o fazer em horas certas, na mesa grande da saia de jantar arrumada com toalhas de linho e com os candelabros e a bai-xela de prata. A solenidade de um ato que Ursula sempre ti-nha considerado como o mais simples da vida cotidiana criou um ambiente de formalidade contra o qual se rebelou primei-ro que ninguém o calado José Arcadio Segundo. Mas o cos- tume se impôs, assim como o de rezar o rosário antes do jan-tar, e chamou tanto a atenção dos vizinhos que muito em bre-204 ve correu o boato de que os Buendía não se sentavam à mesa como os outros mortais, mas que tinham transformado o ato de comer numa missa solene. Até as superstições de Úrsula, surgidas mais por inspiração momentânea que da tradição, en-traram em conflito com as que Fernanda herdara dos pais e que estavam perfeitamente definidas e catalogadas para cada ocasião. Enquanto Úrsula desfrutou do pleno domínio das suas faculdades, subsistiram alguns dos antigos hábitos e a vida da família conservou uma certa influência das suas intuições, mas quando perdeu a vista e o peso dos anos a desterrou para um canto, o círculo de rigidez iniciado por Fernanda desde o mo-mento em que chegara terminou por se fechar completamen-te, e ninguém mais além dela determinou o destino da famí- lia. O negócio de doces e animaizinhos de caramelo, que San-ta Sofia de la Piedad mantinha por vontade de Ursula, era considerado por Fernanda como uma atividade indigna, e não tardou em liquidá-lo. As portas da casa, abertas de par em par desde o amanhecer até a hora de dormir, foram fechadas durante a sesta, com o pretexto de que o sol esquentava os quartos, e finalmente se fecharam para sempre. O ramo de babosa e o pão que estavam pendurados no marco desde os tempos da fundação foram substituidos por um nicho do Co-ração de Jesus. O Coronel Aureliano Buendía chegou a per-ceber aquelas mudanças e previu as suas conseqüências. “Es-tamos virando gente fina”, protestava. “Neste ritmo, vamos acabar lutando outra vez contra o regime conservador, mas agora para colocar um rei no lugar.” Fernanda, com muito tato, procurou não ir de encontro a ele. Incomodava-a no in-timo o seu espírito independente, a sua resistência a toda for-ma de rigidez social. Exasperavam-na as suas canecas de café às cinco da manhã, a desordem da sua oficina, a sua manta esfiapada e o seu costume de se sentar na porta da rua ao en-tardecer. Teve que permitir, porém, essa peça solta do meca-nismo familiar, porque tinha a certeza de que o velho coronel era um animal apaziguado pelos anos e pela desilusão, que num assomo de rebeldia senil poderia arrancar os cimentos da casa. Quando o marido decidiu pôr no primeiro filho o no-me do bisavô, ela não se atreveu a fazer oposição, porque só 205 li tinha chegado há um ano. Mas quando nasceu a primei lha, expressou sem reservas a sua determinação de que s masse Renata, como a sua mãe. Ursula tinha resolvid se chamaria Remedios. Ao fim de uma tensa controvérsi qual Aureliano Segundo atuou como mediador dive batizaram-na com o nome de Renata Remedios, mas Fe da continuou chamando a menina de Renata puramente quanto que a família do marido e todo o povo continu a chamá-la de Meme, apelido de Remedios. No princípio, Fernanda não falava da sua família, com o tempo começou a idealizar o pai. Falava dele na como de um ser excepcional que havia renunciado a tod pécie de vaidade e que se estava transformando em santo. reliano Segundo, espantado com o enaeusamento repen do sogro, não resistia à tentação de fazer pequenas zo rias pelas costas da esposa. O resto da família seguiu o e pio. A própria Ürsula, que era extremamente zelosa da monja familiar e que sofria em segredo com os atritos do ticos, permitiu-se dizer certa vez que o pequeno tataranet nha assegurado o seu futuro pontifical, porque era “net santo e filho de rainha com criador de gados”. Apesar quela sorridente conspiração, as crianças se acostumara pensar no avô~como num ser lendário, que lhes transcr versos piedosos nas cartas e lhes mandava em cada Natal caixote de presentes que mal passava na porta da rua para trar. Eram, realmente, os últimos restos do patrimônio sen rial. Com eles se construiu, no quarto das crianças, um com santos de tamanho natural, cujos olhos de vidro lhes primiam uma inquietante aparência de vida e cujas roupas fazenda, artisticamente bordadas, eram melhores que as u das em qualquer circunstância por qualquer habitante de D~ condo. Pouco a pouco, o esplendor funerário da antiga e lada mansão se foi trasladando para a luminosa casa dos Bu dia. “Já nos mandaram todo o cemitério familiar”, com tou Aureliano Segundo em certa ocasião. “Agora só estão 1 tando os salgueiros e as lousas sepulcrais.” Embora nos xotes nunca tivesse chegado nada que servisse para as cii ças brincarem, estas passavam o ano inteiro esperando dezc 206 bro, porque afinal os antiquados e sempre imprevisíveis pre-sentes constituíam uma novidade na casa. No décimo Natal, quando o pequeno José Arcadio já se preparava para viajar para o seminário, chegou com maior antecedência do que nos anos anteriores o enorme caixote do avô, muito bem pregado e impermeabilizado com breu e endereçado com o habitual le-treiro de caracteres góticos à mui ilustre senhora dona Fer-nanda dei Carpio de Buendía. Enquanto ela lia a carta no quar-to, as crianças se apressaram em abrir a caixa. Ajudados co-mo de costume por Aureliano Segundo, rasparam os lacres de breu, despregaram a tampa, tiraram a serragem protetora e encontraram dentro uma comprida arca de chumbo fecha-da com parafusos de cobre. Aureliano Segundo tirou os oito parafusos diante da impaciência das crianças e mal teve tem-po de soltar um grito e afastá-las para o lado quando levan-tou a tampa de chumbo e viu D. Fernando vestido de preto e com um crucifixo no peito, com a pele arrebentada em bo-lhas fedorentas e se cozinhando a fogo lento num espumoso e borbulhante caldo de pérolas vivas. Pouco depois do nascimento da menina, anunciou-se o inesperado jubileu do Coronel Aureliano Buendía, ordenado pelo Governo para celebrar um novo aniversário do Tratado de Neerlândia. Foi uma determinação tão incongruente com a política oficial que o coronel se pronunciou violentamente contra ela e recusou a homenagem. “É a primeira vez que ou-ço a palavra jubileu”, dizia. “Mas seja o que for que ela sig-nifique, não pode deixar de ser zombaria.” A estreita oficina de ourivesaria se encheu de emissários. Voltaram, muito mais velhos e muito mais solenes, os advogados de terno escuro que em outra época esvoaçavam como corvos em torno do coro-nel. Quando este os viu aparecer, já que em outros tempos chegavam para atrapalhar a guerra, não pôde suportar o ci-nismo dos seus panegíricos. Ordenou-lhes que o deixassem em paz, insistiu no fato de ele não ser um prócer da nação como eles diziam, e sim um artesão sem recordações, cujo único so-nho era morrer de cansaço no esquecimento e na miséria dos seus peixinhos de ouro. O que mais o indignou foi a notícia de que o próprio Presidente da República pensava em assistir 207 aos atos de Macondo para lhe oferecer a Ordem do Mérito. O Coronel Aureliano Buendía mandou-lhe dizer, palavra por palavra, que esperava com verdadeira ansiedade aquela tar-dia mas merecida ocasião de lhe dar um tiro, não para cobrar as arbitrariedades e anacronismos do seu regime, mas por faltar com o respeito a um velho que não fazia mal a ninguém. Foi tal a veemência com que pronunciou a ameaça que o Presi-dente da República cancelou a viagem na última hora e man-dou a condecoração por um representante pessoal. O Coro-nel Gerineldo Márquez, assediado por pressões de toda espé-cie, abandonou o seu leito de paralítico para persuadir o seu antigo companheiro de armas. Quando este viu aparecer a ca-deira de balanço carregada por quatro homens e viu sentado nela, entre grandes almofadas, o amigo que partilhara das suas vitórias e infortúnios desde a juventude, não duvidou por um só instante de que fazia aquele esforço para lhe expressar a sua solidariedade. Mas quando soube do verdadeiro propósi- to daquela visita, fez com que o retirassem da oficina. “Tarde demais eu me convenço, disse a ele, de que teria feito um grande favor a você se tivesse deixado que o fuzilassem.” De modo que o jubileu se realizou sem a presença de ne-nhum dos membros da família. Foi por acaso que coincidiu com a semana do carnaval, mas ninguém conseguiu tirar da cabeça do Coronel Aureliano Buendía a idéia obstinada de que também aquela coincidência tinha sido prevista pelo governo para reforçar a crueldade da zombaria. Da oficina solitária ouviu as músicas marciais, as salvas de artilharia, os sinos de Te Deum e algumas frases dos discursos pronunciados defronte da casa quando batizaram a rua com o seu nome. Seus olhos se umedeceram de indignação, de raivosa impotência, e pela primeira vez desde a derrota doeu- lhe não possuir mais os ar-roubos da juventude para promover uma guerra sangrenta que apagasse até o último vestígio do regime conservador. Ainda não se haviam extinguido os ecos da homenagem quando Ür-sula bateu na porta da oficina. — Não aborreçam — ele disse. — Estou ocupado. — Abra — Ursula insistiu com voz cotidiana. — Isto não tem nada que ver com a festa. 208 Então o Coronel Aureliano Buendía tirou a tranca e viu na porta dezessete homens dos mais variados aspectos, de to-dos os tipos e cores, mas todos com um ar solitário que teria bastado para identificá-los em qualquer lugar da terra. Eram os seus filhos~ Sem combinar nada, sem se conhecerem, tinham chegado dos mais distantes lugares do litoral, cativados pelo barulho do jubileu. Todos usavam com orgulho o nome de Aureliano e o sobrenome da mãe. Durante os três dias que permaneceram na casa, para a satisfação de Úrsula e o escân-dalo de Fernanda, ocasionaram transtornos incríveis. Ama-ranta procurou entre antigos papéis a caderneta de contas on-de Ursula anotara os nomes e as datas de nascimento e batis-mo de todos, e acrescentou no espaço correspondente a cada um o domicílio atual. Aquela lista teria permitido fazer uma recapitulação de vinte anos de guerra. Poder-se-iam reconsti-tuir com ela os itinerários noturnos do coronel, desde a ma-drugada em que saiu de Macondo à frente de vinte e um ho-mens para uma rebelião quimérica até que regressou pela úl-tima vez embrulhado na manta dura de sangue. Aureliano Se-gundo não perdeu a ocasião de festejar os primos com uma estrondosa farra de champanha e acordeão que se interpre-tou como um atrasado ajuste de contas com o carnaval malo-grado pelo jubileu. Reduziram a cacos metade da louça, que-braram as roseiras perseguindo um touro para o mantear, ma-taram galinhas a tiros, obrigaram Amaranta a dançar as val-sas tristes de Pietro Crespi, conseguiram fazer Remedios, a bela, vestir calças de homem para subir no pau-de-sebo e sol-tarani na sala de jantar um leitão lambuzado de gordura que nauseou Fernanda, mas ninguém lamentou a sua indisposi- ção porque a casa estremeceu com um terremoto de boa saú-de. O Coronel Aureliano Buendía, que a princípio os recebeu com desconfiança, e até pôs em dúvida a filiação de alguns, divertiu-se com as suas loucuras e antes que fossem embora presenteou cada um com um peixinho de ouro. Até o esquivo José Arcadio Segundo lhes ofereceu uma tarde de rinha, que esteve quase por terminar em tragédia, porque vários dos Au-relianos eram tão experimentados em transações de galos que descobriram no primeiro golpe de vista as trapaças do Padre 209 Antonio Isabel. Aureliano Segundo, que viu as ilimitadas pers-. pectivas de farra que oferecia aquela animada parentela, de-. cidíu que todos ficariam para trabalhar com ele. O único que aceitou foi Aureliano Triste, um mulato grande, com os ím-petos e o espírito explorador do avô, que já havia tentado a sorte em meio mundo e para quem tanto fazia ficar em qual-quer parte. Os outros, embora ainda fossem solteiros, consi-. deravam resolvido o seu destino. Eram todos artesãos hábeis, homens de suas casas, gente de paz. Na quarta-feira de cin-zas, antes que voltassem a se dispersar pelo litoral, Amaranta conseguiu que vestissem roupas de domingo e a acompanhas-sem à igreja. Mais divertidos que piedosos, deixaram-se con-duzir até o altar onde o Padre Antonio Isabel lhes pôs na tes-ta a cruz de cinza. De volta a casa, quando o menor quis lim-par a testa, descobriu que a mancha era indelével e que tam-bém o eram as de seus irmãos. Experimentaram com água e sabão, com terra e bucha, e por último com pedra-pomes e água sanitária, e não conseguiram apagar a cruz. Em com-pensação, Amaranta e os outros que foram à missa tiraram-na sem dificuldade. “Assim vão melhor”, despediu-os Ürsu-la. “De agora em diante ninguém poderá confundi-los.” Fo-ram a galope, precedidos pela banda de música e soltando fo-guetes, e deixaram no povo a impressão de que a estirpe dos Buendía tinha sementes para muitos séculos. Aureliano Triste, com a sua cruz de cinza na testa, instalou nos arrabaldes do povoado a fábrica de gelo com que sonhara José Arcadio Buen-dia nos seus delírios de inventor. Meses depois da sua chegada, quando já era conhecido e apreciado, Aureliano Triste andava procurando uma casa para mandar vir sua mãe e uma irmã solteira (que não era fi-lha do coronel) e se interessou por um casarão decrépito que parecia abandonado numa esquina da praça. Perguntou de quem era. Alguém lhe disse que era uma casa sem dono, onde em outros tempos vivera uma viúva solitária que se alimenta-va de terra e cal das paredes e que nos seus últimos anos só fora vista duas vezes na rua, com um chapéu de minúsculas flores artificiais e uns sapatos cor de prata antiga, quando atra-vessava a praça até a agência do correio para enviar cartas pa-210 ra o Bispo. Disseram-lhe que a sua única companhia fora uma criada desalmada que matava cães e gatos e quanto animal penetrava na casa, e jogava os cadáveres no meio da rua para aborrecer o povo com a fedentina da putrefação. Tanto tem-po passou desde que o sol mumificara a carcaça vazia do últi-mo animal que todo mundo dava por certo que a dona da ca-sa e a criada haviam morrido muito antes de que terminassem as guerras e que se a casa ainda estava de pé era porque não tinham tido nos últimos anos um inverno rigoroso ou um vento demolidor. As dobradiças partidas pela ferrugem, as portas mal sustentadas pelo acúmulo de teias de aranha, as janelas soldadas pela umidade e o chão arrebentado pelo mato e pe-las flores silvestres, em cujas gretas se aninhavam os lagartos e toda espécie de insetos, pareciam confirmar a versão de que ali não estivera um ser humano pelo menos há meio século. Ao impulsivo Aureliano Triste não eram necessárias tantas pro-vas para agir. Forçou com o ombro a porta principal e a car-comida armação de madeira caiu sem estrépito, num calado cataclismo de pó e terra de ninhos de cupim. Aureliano Triste permaneceu no umbral, esperando que se desvanecesse a né-voa, e então viu no centro da sala a esquálida mulher ainda vestida com roupas do século anterior, com umas poucas fi-bras amarelas no crânio pelado e com uns olhos grandes, ain-da belos, nos quais se haviam apagado as últimas estrelas da esperança, e a pele do rosto gretada pela aridez da solidão. Comovido pela visão do outro mundo, Aureliano Triste mal percebeu que a mulher estava apontando para ele uma anti-quada pistola militar. — Perdão — murmurou. Ela permaneceu imóvel no centro da sala entulhada de trastes, examinando palmo a palmo o gigante de ombros qua-drados com uma tatuagem de cinza na testa e através da ne-blina da poeira viu-o na neblina de outros tempos, com uma espingarda de dois canos trançada nas costas e uma fieira de coelhos na mão. — Pelo amor de Deus — exclamou em voz baixa — não é justo que agora me venham com esta lembrança! — Quero alugar a casa — disse Aureliano Triste. 211 A mulher então levantou a pistola, apontando com pul-so firme a cruz de cinza e armou o gatilho com uma determi-nação inapelável. —Vá embora — ordenou. Naquela noite, durante o jantar, Aureliano Triste con-tou o episódio à família e Ursula chorou de consternação. “Santo Deus”, exclamou apertando a cabeça entre as mãos. “Ainda está viva!” O tempo, as guerras, as incontáveis des-graças cotidianas tinham feito com que se esquecesse de Re-beca. A única que não tinha perdido por um só instante a cons-ciência de que estava viva, apodrecendo na sua sopa de lar-vas, era a implacável e envelhecida Amaranta. Pensava nela ao amanhecer, quando o gelo do coração a acordava na cama solitária, e pensava nela quando ensaboava os seios murchos e o ventre macilento, e quando vestia as brancas anáguas e camisetas de cambraia da velhice, e quando trocava na mão a venda negra da terrível expiação. Sempre, a toda hora, ador-mecida e acordada, nos momentos mais sublimes e nos mais abjetos, Amaranta pensava em Rebeca, porque a sua solidão havia selecionado as lembranças e incinerado as entorpecen- tes montanhas de lixo nostálgico que a vida acumulara no seu coração e havia purificado, magnificado e eternizado as ou-tras, as mais amargas. Por ela é que Remedios, a bela, sabia da existência de Rebeca. Cada vez que passavam pela casa de-crépita, contava-lhe um incidente ingrato, uma fábula de opró-brio, tentando desta forma fazer com que o seu extenuante rancor fosse partilhado pela sobrinha e, por conseguinte, pro. longado além da morte, mas não conseguiu realizar os seus propósitos porque Remedios era imune a todo tipo de senti-mentos apaixonados e mais ainda aos alheios Ursula, em com-pensação, que sofrera um processo .onu aiio ao de Amaran-ta, evocou Rebeca com uma memória limpa de impurezas, pois a imagem da pobre criatura que trouxeram à sua casa com o saco dos ossos dos seus pais prevaleceu sobre a ofensa que a fez indigna de continuar vinculada ao tronco familiar. Au-reliano Segundo resolveu que era preciso traze- la para casa e proteg&la, mas o seu bom propósito foi frustrado pela inque- brantável intransigência de Rebeca, que tinha necessitado de 212 muitos anos de sofrimento e miséria para conquistar os privi-légios da solidão e não estava disposta a renunciar a eles em troca de uma velhice perturbada pelos falsos encantos da misericórdia. Em fevereiro, quando voltaram os dezesseis filhos do Co-ronel Aureliano Buendía, ainda marcados com a cruz de cin-za, Aureliano Triste lhes falou de Rebeca no barulho da farra e em meio dia restauraram a aparência da casa, trocaram portas e janelas, pintaram a fachada de cores alegres, reforçaram as paredes e espalharam cimento novo no chão, mas não obtive-ram autorização para continuar as reformas no interior. Re-beca nem sequer apareceu na porta. Deixou que terminassem a aturdida restauração e logo fez um cálculo dos custos e man-dou para eles por Argénida, a velha criada que continuava a lhe fazer companhia, um punhado de moedas tiradas de cir-culação desde a última guerra, e que Rebeca acreditava que continuassem válidas. Foi então que se percebeu a que ponto inconcebível chegara a sua desvinculação com o mundo e se compreendeu que seria impossível resgatá-la da sua obstina-da clausura enquanto lhe restasse um sopro de vida. Na segunda visita que os filhos do Coronel Aureliano Buendía fizeram a Macondo, outro deles, Aureliano Cente-no, ficou trabalhando com Aureliano Triste. Era um dos pri-meiros que tinham vindo à casa para o batismo, e Ursula e Amaranta se lembravam muito bem dele, porque tinha espe-daçado em poucas horas quantos objetos quebráveis haviam passado pelas suas mãos. O tempo tinha moderado o seu pri-mitivo impulso de crescimento e era um homem de estatura mediana marcado com cicatrizes de varíola, mas o seu assom-broso poder de destruição manual continuava intacto. Tan-tos pratos quebrou, inclusive sem tocá-los, que Fernanda op-tou por comprar para ele um serviço de folha-de-flandres an-tes que liquidasse com as últimas peças da sua louça cara, e mesmo os resistentes pratos metálicos em pouco tempo já es-tavam sem brilho e desbeiçados. Compensando, porém, aquele poder irremediável, exasperante inclusive para ele mesmo, pos-suía uma cordialidade que despertava a confiança imediata e uma estupenda capacidade de trabalho. Em pouco tempo in-213 crementou de tal modo a produção de gelo que estourou o mer-cado local e Aureliano Triste teve que pensar na possibilidade de estender o negócio para as outras povoações do pantanal. Foi então que imaginou o passo decisivo não só para a mo-dernização da sua indústria, como também para vincular a po-pulação ao resto do mundo. — E preciso trazer a estrada de ferro — disse. Era a primeira vez que se ouvia a expressão em Macon-do. Diante do desenho que Aureliano Triste traçou na mesa, e que era um descendente direto dos esquemas com que José Arcadio Buendía ilustrou o projeto da guerra solar, Ursula confirmou a sua impressão de que o tempo estava dando vol-tas num círculo vicioso. Mas ao contrário do avô, Aureliano Triste não perdia o sono nem o apetite, nem atormentava nin-guém com crises de mau humor, mas concebia os projetos mais desatinados como possibilidades imediatas, elaborava cálcu-los racionais sobre custo e prazo e os levava a cabo sem inter-valos de exasperação. Aureliano Segundo, que se tinha algu-ma coisa do bisavô e não tinha do Coronel Aureliano Buen-día era uma absoluta impermeabilidade para o desengano, sol-tou o dinheiro para trazer a estrada de ferro com a mesma leviandade com que o soltara para a absurda companhia de navegação do irmão ~Aureliano Triste consultou o calendário e partiu na quarta-feira seguinte para estar de volta quando passassem as chuvas. Não se teve mais notícias dele. Aurelia-no Centeno, transbordado pelas abundâncias da fábrica, já tinha começado a experimentar a elaboração do gelo com ba-se em sucos de frutas no lugar da água, e sem o saber, sem programar, imaginou os fundamentos essenciais da invenção dos sorvetes, pensando desta forma diversificar a produção de uma empresa ~Iue supunha sua, porque o irmão não dava sinais de regresso depois de passarem as chuvas e transcorrer um verão inteiro sem notícias. No início do outro inverno, en- tretanto, uma mulher que lavava roupa no rio na hora de mais calor atravessou a rua principal fazendo alarido, num alar-mante estado de comoção. — Vem aí — conseguiu explicar — um negócio horrível como uma cozinha arrastando uma aldeia. 214 Nesse momento a população foi sacudida por um apito de ressonâncias pavorosas e uma descomunal respiração ofe-gante. Nas semanas anteriores viram-se grupos de trabalha-dores que colocavam dormentes e trilhos, mas ninguém pres-tou atenção porque pensaram que era um novo artifício dos ciganos, que voltavam com a sua secular e desprestigiada tei-mosia de apitos e chocalhos apregoando as excelências de sa-be Deus que miserável panacéia dos xaroposos genios hiero- solimitanos. Mas quando se recuperaram do espanto dos as-sovios e bufos, todos os habitantes correram para a rua e vi-ram Aureliano Triste acenando, com a mão, da locomotiva, e viram assombrados o trem enfeitado de flores que, já da pri- meira vez, chegava com oito meses de atraso. O inocente trem amarelo que tantas incertezas e evidencias, e tantos deleites e desventuras, e tantas mudanças, calamidades e saudades ha-veria de trazer para Macondo. 215 1 1 DESLUMBRADO com tantas e tão maravilhosas invenções, o povo de Macondo não sabia por onde começar a se espantar. Passavam a noite em claro contemplando as pálidas lâmpa-das elétricas alimentadas pelo gerador que Aureliano Triste trouxera na segunda viagem do trem e a cujo obsessivo tum-tum custou tempo e trabalho se acostumar. Indignaram-se com as imagens vivas que o próspero comerciante Sr. Bruno Cres-pi projetava no teatro de bilheterias que imitavam bocas de leão, porque um personagem morto e enterrado num filme, e por cuja desgraça haviam derramado lágrimas de tristeza, reapareceu vivo e transformado em árabe no filme seguinte. 216 tt’ ~ .1, •1 O público, que pagava dois centavos para partilhar das vicis-situdes dos personagens, não pôde suportar aquele logro inau-dito e quebrou as poltronas. O alcaide, por insistência do Sr. Bruno Crespi, explicou num decreto que o cinema era uma máquina de ilusão que não merecia os arroubos passionais do público. Diante da desalentadora explicação, muitos acharam que tinham sido vítimas de um novo e aparatoso negócio de cigano, de modo que optaram por não voltar ao cinema, con-siderando que já tinham o suficiente com os seus próprios so- frimentos para chorar por infelicidades fingidas de seres ima-ginários. Alguma coisa de semelhante aconteceu com os gra-mofones de manivela que as alegres matronas da França trou-xeram, em substituição aos antiquados realejos, e que tão pro-fundamente afetaram por algum tempo os interesses da ban-da de música. No princípio, a curiosidade multiplicou a clien-tela da rua proibida, e soube-se até de senhoras respeitáveis que se disfarçaram de malandro para observar de perto a no-vidade do gramofone, mas o observaram tanto e de tão perto que muito rapidamente chegaram à conclusão de que não era um moinho de brinquedo, como todos pensavam e como as matronas diziam, mas um truque mecânico que não podia se comparar com uma coisa tão comovedora, tão humana e tão cheia de verdade cotidiana como uma banda de música. Foi uma desilusão tão séria que quando os gramofones se popu-larizaram, a ponto de haver um em cada casa, não foram en- carados como objetos para a diversão dos adultos, mas como uma coisa boa para as crianças desmontarem. Em compensa-ção, quando alguém do povoado teve a oportunidade de com-provar a crua realidade do telefone instalado na estação da es-trada de ferro, que por causa da manivela se considerava como uma versão rudimentar do gramofone, até os mais incrédulos se desconcertaram. Era como se Deus tivesse resolvido pôr àprova toda a capacidade de assombro e mantivesse os habi-tantes de Macondo num permanente vaivém do alvoroço ao desencanto, da dúvida à revelação, ao extremo de já ninguém poder saber com certeza onde estavam os limites da realida-de. Era uma intrincada maçaroca de verdades e miragens, que provocou convulsões de impaciência no espectro de José Ar- 217 cadio Buendía debaixo do castanheiro e o obrigou a vagar toda a casa mesmo em pleno dia. Desde que a estrada de -ro foi inaugurada oficialmente e o trem começou a chegar c’ regularidade toda quarta-feira às onze, e que se constr primitiva estação de madeira com um escritório, o telefon um guichê para vender as passagens, eram vistos nas ruas Macondo homens e mulheres que fingiam atitudes comun~ correntes, mas que na verdade pareciam gente de circo. povo escaldado pela praga dos ciganos, não havia um futuro para aqueles equilibristas do comércio ambulante -com o mesmo desembaraço ofereciam uma panela de e um regime de vida para a salvação da alma no sétimo mas entre os que se deixavam convencer pelo cansaço e os caustos de sempre, faziam excelentes negócios. Entre essas c. turas de farândola, com culotes e polainas, chapéu de ça, óculos com armação de aço, olhos de topázio e pele galo fino, numa das tantas quartas-feiras, chegou a e almoçou em casa o rechonchudo e sorridente Mr. Her Ninguém o distinguiu na mesa, enquanto não se o o primeiro cacho de bananas. Aureliano Segundo encontrara-por acaso, protestando num espanhol trabalhoso porque havia um quarto livre no Hotel de Jacob e, como fazia c: freqüência com muftos forasteiros, levou-o para casa. -um negócio de balões de sondagem, que levara à metade’ mundo com lucros excelentes, mas não conseguira fazer guém subir em Macondo, porque consideravam esse inv~ como um retrocesso, depois de terem visto e expei os tapetes voadores dos ciganos. Partia, pois, no próximo Quando trouxeram para a mesa o salpicado cacho de nas que costumavam pendurar na sala de jantar durante moço, arrancou a primeira fruta sem muito entusiasmo. continuou comendo enquanto falava, saboreando, mastigan~ do, mais com distração de sábio do que com deleite de comedor, mas ao terminar o primeiro cacho suplicou que trouxessem outro. Então, tirou da caixa de ferramentas sempre trazia consigo um pequeno estojo de aparelhos óticos~ Com a incrédula atenção de um comprador de diamantes, minou meticulosamente uma banana, seccionando as suas 218 um estilete especial, pesando-as numa balancinha de o e calculando a sua envergadura com um calibra- i de armeiro. Em seguida, tirou da caixa uma série de ins-‘tmentos com os quais mediu a temperatura, o grau de umi-.de da atmosfera e a intensidade da luz. Foi uma cerimônia intrigante que ninguém comeu tranqüilo, esperando que Herbert emitisse por fim um juízo revelador, mas ele não nada que permitisse vislumbrar as suas intenções. Nos dias seguintes foi visto com uma rede e um cestinho ~ando borboletas nos arredores do povoado. Na quarta-feira, ‘gou um grupo de engenheiros, agrônomos, hidrólogos, to. afos e agrimensores que, durante várias semanas, expio-Lram os mesmos lugares onde Mr. Herbert caçava borbole-Mais tarde chegou o Sr. Jack Brown, num vagão suple-que haviam enganchado no rabo do trem amarelo e era todo laminado de prata, com poltronas de veludo epis-e teto de vidros azuis. No vagão especial chegaram tam-voejando em torno do Sr. Brown, os solenes advogados ~stidos de negro que em outra época tinham seguido por to-~s as partes o Coronel Aureliano Buendía, e isto fez o povo ~nsar que os agrônomos, hidrólogos, topógrafos e agrimen-‘es, assim como Mr. Herbert com os seus balões de sonda-e as suas borboletas coloridas e o Sr. Brown com o seu sobre rodas e os seus ferozes cães policiais, tinham coisa a ver com a guerra. Não houve, entretanto, muito para pensar no assunto, porque os desconfiados habi-~ntes de Macondo mal começavam a se perguntar que diabo ra o que estava acontecendo, quando já a aldeia se tinha trans-.xniado num acampamento de casas de madeira com tetos inco, povoado por forasteiros que chegavam de meio mun-no trem, não só nos bancos e nos estribos mas até no teto vagões. Os americanos, que depois trouxeram as suas mu-lânguidas com roupas de musselina e grandes chapéus gaze, fizeram uma aldeia à parte do outro lado da linha trem, com ruas orladas de palmeiras, casas com janelas com ~la metálica, mesinhas brancas nos terraços e ventiladores de ,~ás pendurados no teto, e extensos prados azuis com pavões codornas. O setor estava cercado por uma rede metálica, co-219 4 mo um gigantesco galinheiro eletrificado que nos frescos me-ses de verão amanhecia negro de andorinhas esturricadas. Nin-guém sabia ainda o que desejavam, ou se na verdade seriam apenas filantropos, e já tinham ocasionado um transtorno co- lossal, muito mais perturbador que o dos antigos ciganos, mas menos transitório e compreensível. Dotados de recursos que em outra época estavam reservados à Divina Providência, mo-dificaram o regime das chuvas, apressaram o ciclo das colhei-tas, e tiraram o rio de onde sempre esteve e o puseram com. as suas pedras brancas e as suas correntes geladas no outro~ extremo da povoação, atrás do cemitério. Foi nessa ocasião que construíram uma fortaleza de cimento armado sobre a dcs-colorida tumba de José Arcadio, para que o cheiro de pólvo-ra do cadáver não contaminasse as águas. Para os forasteiros que chegavam sem amor, transformaram a rua das carinho-. sas matronas da França num povoado mais extenso que o ou-tro e, numa quarta-feira gloriosa, trouxeram um trem carre-gado de putas inverossímeis, fêmeas babilônicas adestradas em recursos imemoriais e providas de toda espécie de ungüentos e dispositivos para estimular os inertes, despertar os timidos, saciar os vorazes, exaltar os modestos, desenganar os múlti-plos e corrigir os solitários. A Rua dos Turcos, enriquecida com luminosos armazéns de comestíveis que expulsaram as ve-lhas feiras de canários-da-terra, regurgitava nas noites de sá-bado com as multidões de aventureiros que se atropelavam en-tre as mesas de jogo, os balcões de tiro ao alvo, o beco onde se adivinhava o futuro e se interpretavam os sonhos, e as me-sas de frituras e bebidas, que amanheciam no domingo espar. ramadas pelo chão, entre corpos que às vezes eram de bêba-dos felizes e quase sempre de curiosos abatidos pelos dispa-ros, murros, navalhadas e garrafadas da briga. Foi uma inva-são tão tumultuada e intempestiva que nos primeiros tempos era impossível andar na rua com o estorvo dos móveis e dos baús e com o trançar da carpintaria dos que erguiam as su~s casas em qualquer terreno vazio sem ‘a autorização de ninguém, e com o escândalo dos casais que penduravam as suas redes entre as amendoeiras e faziam o amor debaixo dos toldos, em pleno dia e na vista de todo mundo. O único reduto de sereni-220 dade foi estabelecido pelos pacíficos negros antilhanos, que construíram uma rua marginal com casas de madeira sobre estacas, em cujas portas se sentavam ao entardecer cantando hinos melancólicos na sua estropiada algaravia. Tantas mu-danças ocorreram em tão pouco tempo que oito meses depois da visita de Mr. Herbert os antigos habitantes de Macondo se levantavam cedQ para conhecer a sua própria aldeia. — Olhem a confusão em que nos metemos — costuma-va então dizer o Coronel Aureliano Buendía — só por termos convidado um americano para comer banana. Aureliano Segundo, em compensação, não cabia em si de contente com a avalancha de forasteiros. A casa se encheu de repente de hóspedes desconhecidos, de invencíveis farris-tas mundiais, e foi preciso acrescentar quartos no quintal, au-mentar a sala de jantar e trocar a antiga mesa por uma de de-zesseis lugares, com louça nova e talheres, e ainda assim foi necessário estabelecer turnos para almoçar. Fernanda teve que engolir os seus escrúpulos e atender como reis os convidados da pior condição, que enlameavam a varanda com as botas, urinavam no jardim, estendiam as suas esteiras em qualquer lugar para fazer a sesta e falavam sem se preocupar com sus-cetibilidades de damas nem com gestos de cavalheiros. Ama-ranta se escandalizou de tal modo com a invasão da plebe que voltou a comer na cozinha como nos velhos tempos. O Coro-nel Aureliano Buendía, convencido de que a maioria dos que entravam para cumprimentá-lo na oficina não o fazia por sim-patia ou estima, mas pela curiosidade de conhecer uma relí-quia histórica, um fóssil de museu, preferiu se fechar a chave e não voltou a ser visto a não ser em muito poucas ocasiões, sentado na porta da rua. Ursula, em compensação, mesmo nos tempos em que já arrastava os pés e caminhava tateando nas paredes, experimentava um alvoroço pueril quando se apro- ximava a chegada do trem. “É preciso fazer carne e peixe”, ordenava às quatro cozinheiras que se estafavam para andar em tempo sob a imperturbável direção de Santa Sofía de la Piedad. “É preciso fazer de tudo”, insistia, “porque nunca se sabe o que os forasteiros querem comer.” O trem chegava na hora de mais calor. Ao almoço, a casa trepidava num ai-221 voroço de mercado e os suarentos comensais, que nem sequer~ sabiam quem eram os seus anfitriões, irrompiam em tropel part~ ocupar os melhores lugares da mesa, enquanto as cozinheirasi davam encontrões umas nas outras, com as enormes tigelas; de sopa, os alguidares de carnes, as gamelas de legumes, as~ travessas de arroz, e serviam com a concha inesgotáveis bar-ris de limonada. Era tal a desordem, que Fernanda se exaspe-. rava com a idéia de que muitos comessem duas vezes, e em mais de uma ocasião quis se desabafar em impropérios de ver-dureira, porque algum comensal atônito pedia a conta. Mais de um ano se passara desde a visita de Mr. Herbert e a única coisa que se sabia era que os americanos pretendiam plantar bananeiras na região encantada que José Arcadio Buendía e os seus homens tinham atravessado, procurando a rota das grandes invenções. Outros dois filhos do Coronel Aureliano Buendía, com a sua cruz de cinza na testa, chegaram arrastados por aquele arroto vulcânico e justificaram a sua decisão com uma frase que talvez explicasse as razões de todos. — Nós viemos — disseram — porque todo mundo vem. Remedios, a bela, foi a única que permaneceu imune à peste da companhia bananeira. Estacou numa adolescência magnífica, cada vez mais impermeável aos formalismos, mais indiferente à malícia ~ à desconfiança, feliz num mundo pró-prio de realidades simples. Não entendia por que as mulheres complicavam a vida com camisetas e anáguas, de modo que coseu uma bata de aniagem que enfiava simplesmente pela ca-beça e resolvia sem mais trâmites o problema de se vestir, sem desmanchar a impressão de estar nua, que no seu modo de entender as coisas era a única maneira decente de se estar em casa. Amolaram-na tanto para que cortasse o cabelo casca-teante que já batia na barriga da perna e para que fizesse um coque preso com pentes e tranças com laços coloridos que sim-plesmente raspou a cabeça e fez perucas para os santos. O as-sombroso do seu instinto simplificador era que quanto mais se desembaraçava da moda procurando a comodidade e quanto mais passava por cima dos convencionalismos em obediência à espontaneidade, mais perturbadora ficava a sua beleza ina-creditável e mais provocante o seu comportamento para com 222 os homens. Quando os filhos do Coronel Aureliano Buendía estiveram pela primeira vez em Macondo, Ursula se lembrou de que levavam nas veias o mesmo sangue da bisneta e estre-meceu com o horror esquecido. “Abra bem os olhos”, preveniu-a. “Com qualquer deles, os filhos sairão com rabo de porco.” Ela fez tão pouco-caso da advertência que se ves-tiu de homem e se espojou na areia para subir no pau-de-sebo e esteve a ponto de ocasionar uma tragédia entre os dezessete primos transtornados pelo insuportável espetáculo. Era por isso que nenhum deles dormia em casa quando visitavam o povoado, e os quatro que tinham ficado viviam às expensas de Ürsula em quartos alugados. Entretanto, Remedios, a be-la, teria morrido de rir se tivesse sabido daquela precaução. Até o último instante em que esteve na Terra ignorou que o seu irreparável destino de fêmea perturbadora era uma des-graça cotidiana. Cada vez que aparecia na sala de jantar, con-trariando as ordens de Ürsula, causava um pânico de exaspe-ração entre os forasteiros. Era evidente demais que estava in-teiramente nua sob a bata grosseira e ninguém podia enten-der que o seu crânio pelado e perfeito não fosse um desafio e que não fosse uma criminosa provocação o descaro com que descobria as coxas para aliviar o calor e o prazer com que chu-pava os dedos depois de comer com as mãos. O que nenhum membro da família jamais soube foi que os forasteiros não tardaram a perceber que Remedios, a bela, desprendia um há-lito perturbador, uma brisa de tormento que continuava sen-do perceptível várias horas depois de ela ter passado. Homens experimentados nos transtornos do amor, vividos no mundo inteiro, afirmavam não ter padecido nunca de uma ansiedade semelhante à que produzia o perfume natural de Remedios, a bela. Na varanda das begônias, na sala de visitas, em qual-quer lugar da casa, se podia assinalar o lugar exato onde esti-vera e o tempo transcorrido desde que deixara de estar. Era um rastro definido, inconfundível, que ninguém da casa po-dia distinguir porque estava incorporado há muito tempo aos cheiros cotidianos, mas que os forasteiros identificavam ime-diatamente. Por isso eram eles os únicos que entendiam que o jovem comandante da guarda tivesse morrido de amor e que 223 4f um cavaleiro vindo de outras terras tivesse caído em desesp~ ro. Inconsciente da aura inquietante em que se ri do insuportável estado de íntima calamidade que pro” à sua passagem, Remedios, a bela, tratava os homens sem menor malícia e acabava de transtorná-los com as suas centes complacênciaS. Quando Ursula conseguiu impor a dem de que comesse com Amaranta na cozinha, para que -forasteiros não a vissem, ela se sentiu mais cômoda, porqu afinal de contas ficava a salvo de qualquer disciplina. Rea: mente, tanto fazia comer em qualquer lugar, e não em ho fixas, mas de acordo com as alternativas do seu apetite. ~ vezes se levantava para almoçar às três da madrugada, mia o dia inteiro, e passava vários meses com os horários + cados, até que algum incidente casual voltava a pó-la em dem. Quando as coisas andavam melhor, levantava-se às --ze da manhã e se trancava durante duas horas completament: nua no banheiro, matando escorpiões enquanto espantava denso e prolongado sono. Em seguida, jogava água em si mes• ma tirando-a da caixa com uma.cuia. Era um ato tão gado, tão meticuloso, tão rico de situações cerimonials, quem não a conhecesse bem poderia pensar que estava entre. gue a uma merecida adoração do seu próprio corpo. Para ela, entretanto, aquele rito solitário carecia de qualquer sensuali- dade, e era simplesmente uma maneira de matar o tempo quanto não sentia fome. Um dia, quando começava a se nhar, um forasteiro levantou uma telha do teto e ficou respiração diante do tremendo espetáculo de sua nudez. Ela viu os olhos aflitos através das telhas quebradas e não teve nenhuma reação de vergonha, mas sim de preocupação. — Cuidado — exclamou. — Você vai cair. — Só quero ver você — murmurou o forasteiro. — Ah, bem — ela disse. — Mas tenha cuidado que essas telhas estão podres. O rosto do forasteiro tinha uma dolorosa expressão de espanto e parecia lutar surdamentc contra os seus impulsos primários, para não dissipar a miragem. Remedios, a bela, pen-sou que ele sofria de medo de que as telhas quebrassem e se banhou mais depressa do que de costume, para que o homem 224 não continuasse em perigo. Enquanto se jogava água, disse a ele que era um problema que o teto estivesse naquele esta-do, pois ela acreditava que a camada de folhas apodrecidas pela chuva era o que enchia o banheiro de escorpiões. O fo-rasteiro confundiu aquela conversa com uma forma de dissi-mular a complacência, de modo que quando ela começou a se ensaboar cedeu à tentação de dar um passo adiante. — Deixe-me ensaboá-la — murmurou. — Agradeço a sua boa intenção — disse ela — mas pos-so perfeitamente fazê-lo sozinha com as minhas duas mãos. — Só as costas — suplicou o forasteiro. — Seria um desperdício — ela disse. — Nunca se viu nin-guém ensaboar as costas. Depois, enquanto se enxugava, o forasteiro implorou com os olhos cheios de lágrimas que se casasse com ele. Ela lhe res-pondeu sinceramente que nunca se casaria com um homem tão bobo que perdia quase uma hora, e até ficava sem almo-çar, só para ver uma mulher tomar banho. Por fim, quando vestiu a bata, o homem não pôde suportar a comprovação de que realmente não usava nada embaixo, como todo mundo suspeitava, e se sentiu marcado para sempre com o ferro ar-dente daquele segredo. Então arrancou mais duas telhas para se atirar no interior do banheiro. — É muito alto! — ela o preveniu assustada. — Você vai se matar! As telhas apodrecidas se despedaçaram num estrondo de desastre e o homem mal conseguiu lançar um grito de terror e fraturou o crânio e morreu sem agonia no chão de cimento. Os forasteiros que ouviram o barulho na sala de jantar e se apressaram em levar o cadáver perceberam na sua pele o su-focante cheiro de Remedios, a bela. Estava tão entranhado no corpo que as rachaduras do crânio não emanavam sangue e sim um óleo ambarino impregnado daquele perfume secre-to, e então compreenderam que o cheiro de Remedios, a bela, continuava torturando os homens além da morte, até a poei-ra dos ossos. Entretanto, não relacionaram aquele acidente de horror com os outros dois homens que haviam morrido por 225 Remedios, a bela. Faltava ainda uma vítima para que os fo-rasteiros e muitos dos antigos habitantes de Macondo dessem crédito à lenda de que Remedios Buendía não exalava o so-pro de amor mas sim um fluxo mortal. A ocasião de comprová-lo se apresentou meses depois, numa tarde em que Remedios, a bela, foi com um grupo de amigas conhecer as novas plan-tações. Para o povo de Macondo, era uma distração recente percorrer as úmidas e intermináveis avenidas ladeadas de ba-naneiras, onde o silêncio parecia trazido de outra parte, ain-da sem usar, e por isso era tão difícil transmitir a voz. As ve-zes não se entendia muito bem o que era dito a meio metro de distância e que entretanto se tornava perfeitamente com-preensível no outro extremo da plantação. Para as moças de Macondo aquela brincadeira nova era motivo de risadas e so-bressaltos, de sustos e zombarias, e de noite se falava do pas-seio como de uma experiência de sonho. Era tal o prestígio daquele silêncio que Ursula não teve coragem de privar Re-medios, a bela, da diversão e lhe permitiu ir numa tarde, des-de que pusesse um chapéu e uma roupa adequada. Assim que o grupo de amigas entrou na plantação o ar se impregnou de uma fragrância mortal. Os homens que trabalhavam nas va-las se sentiram possuídos por uma estranha fascinação, amea- çados por um perig. invisível, e muitos sucumbiram à terrível vontade de chorar. Remedios, a bela, e suas espantadas ami-gas conseguiram se refugiar numa casa próxima quando esta-vam já para serem assaltadas por um tropel de machos fero-zes. Pouco depois foram resgatadas pelos quatro Aurelianos, cujas cruzes de cinza infundiam um respeito sagrado, como se fossem marca de casta, selo de invulnerabilidade. Reme-dios, a bela, não contou a ninguém que um dos homens, apro-veitando o tumulto, conseguira agredi-la no ventre com uma mão que mais parecia uma garra de águia aferrada aos bor-dos de um precipício. Ela enfrentara o agressor numa espécie de deslumbramento instantâneo e vira os olhos desconsola-dos que ficaram i7mpressos no seu coração como uma brasa de compaixão. Nessa noite, o homem se gabou da sua audá-cia e se vangloriou da sua sorte na Rua dos Turcos, minutos antes de que o coice de um cavalo lhe arrebentasse o peito e 226 uma multidão de forasteiros o visse agonizar no meio da rua, sufocado em vômitos de sangue. A suposição de que Remedios, a bela, possuía poderes de morte estava agora sustentada por quatro fatos irrefutá-veis. Embora alguns homens levianos de palavra sentissem pra-zer em dizer que bem valia a pena sacrificar a vida por uma noite de amor com tão perturbadora mulher, a verdade é que nenhum se esforçou por consegui-lo. Talvez, não só para vencê-la como também para afastar os seus perigos, bastasse um sen- timento tão primitivo e simples como o amor, mas isso foi a única coisa que não ocorreu a ninguém. Ursula não voltou a se ocupar dela. Em outra época, quando ainda não renuncia-ra ao propósito de salvá-la para o mundo, procurou interessá-la nos assuntos elementares da casa. “Os homens são mais exi-gentes do que você pensa’~, dizia- lhe enigmaticamente. “É pre-ciso cozinhar muito, varrer muito, sofrer muito por mesqui-nharias, além daquilo que você pensa.” No fundo se engana-va a si mesma, tentando adestrá-la para a felicidade domésti-ca, porque estava convencida de que, uma vez satisfeita a pai-xão, não havia um homem sobre a terra capaz de suportar, nem que fosse por um dia, uma negligência que estava além de qualquer compreensão. O nascimento do último José Ar-cadio e a sua inquebrantável vontade de educá-lo para Papa terminaram por fazê-la desistir das suas ocupações com a bis-neta. Abandonou-a à sua sorte, confiando que mais cedo ou mais tarde aconteceria um milagre e que neste mundo onde havia de tudo haveria também um homem com suficiente se-renidade para cuidar dela. Fazia muito tempo que Amaranta tinha renunciado a qualquer tentativa de convertê-la numa mu-lher útil. Desde as tardes esquecidas do quarto de costura, quando a sobrinha mal se interessava por rodar a manivela da máquina de coser, chegara à conclusão simples de que era boba. “Vamos ter que rifar você”, dizia-lhe, perplexa diante da sua impermeabilidade à palavra dos homens. Mais tarde, quando Ursula se empenhou para que Remedios, a bela, as-sistisse à missa com a cara coberta por um véu, Amaranta pen-sou que aquele recurso misterioso acabaria por ser tão provo-cante que muito em breve haveria um homem intrigado o bas-227 tante para procurar com paciência o ponto fraco do seu cora-ção. Mas quando viu a forma insensata com que desprezou um pretendente que, por muitos motivos, era mais apetecível que um príncipe, renunciou a qualquer esperança. Fernanda não fez sequer a tentativa de compreendê-la. Quando viu Re-medios, a bela, vestida de rainha no carnaval sangrento, pen-sou que ela era uma criatura extraordinária. Mas quando a viu comendo com as mãos, incapaz de dar uma resposta que não fosse um prodígio de patetice, a única coisa que lamen-tou foi que os bobos de nascença tivessem uma vida tão lon-ga. Apesar de o Coronel Aureliano Buendía continuar acre- ditando e repetindo que Remedios, a bela, era na verdade o ser mais lúcido que havia conhecido na vida, e que o demons-trava a cada momento com a sua assombrosa habilidade para zombar de todos, abandonaram-na ao deus-dará. Remedios, a bela, ficou vagando pelo deserto da solidão, sem cruzes nas costas, amadurecendo nos seus sonos sem pesadelos, nos seu& banhos intermináveis, nas suas refeições sem horários, nos seus profundos e prolongados silêncios sem lembranças, até uma tarde de março em que Fernanda quis dobrar os seus lençóis de linho no jardim e pediu ajuda às mulheres da casa. Mal haviam começado, qpando Amaranta advertiu que Remedios, a bela, chegava a estar transparente de tão intensamente palida. — Você está se sentindo mal? — perguntou a ela. Remedios, a bela, que segurava o lençol pelo outro ex-tremo, teve um sorriso de piedade. — Pelo contrário — disse — nunca me senti tão bem. Acabava de dizer isso quando Fernanda sentiu que um delicado vento de luz lhe arrancava os lençóis das mãos e os estendia em toda a sua amplitude. Amaranta sentiu um tre-mor misterioso nas rendas das suas anáguas e tratou de se agar-rar no lençol para não cair, no momento em que Remedios, a bela, começava a ascender. Ursula, já quase cega, foi a um- i ca que teve serenidade para identificar a natureza daquele vento irremediável e deixou os lençóis à mercê da luz, olhando para Remedios, a bela, que lhe dizia adeus com a mão, entre o des-lumbrante bater de asas dos lençóis que subiam com ela, que abandonavam com ela o ar dos escaravelhos e das dálias e pas-228 savam com ela através do ar onde as quatro da tarde termina-vam, e se perderam com ela para sempre nos altos ares onde nem os mais altos pássaros da memória a podiam alcançar. Os forasteiros, evidentemente, pensaram que Remedios, a bela, sucumbira por fim ao seu irrevogável destino de abelha-mestra e que a sua família tentava salvar a honra com a men-tira da levitação. Fernanda, roída de inveja, acabou por acei- tar o prodígio e durante muito tempo continuou rogando a Deus para que lhe devolvesse os lençóis. A maioria acreditou no milagre e até se acenderam velas e se rezaram novenas. Tal-vez não se tivesse voltado a falar de outra coisa por muito tem-po, se o bárbaro extermínio dos Aurelianos não tivesse subs-tituído o assombro pelo horror. Embora nunca o identificas-se como um presságio, o Coronel Aureliano Buendía previa de certo modo o trágico fim dos seus filhos. Quando Aurelia-no Serrador e Aureliano Arcaya, os dois que chegaram no tu-multo, manifestaram a vontade de ficar em Macondo, o pai tentou dissuadi-los. Não entendia o que vinham fazer num po- voado que da noite para o dia se transformara num lugar de perigo. Mas Aureliano Centeno e Aureliano Triste, apoiados por Aureliano Segundo, ofereceram trabalho para eles nas suas empresas. O Coronel Aureliano Buendía tinha motivos ainda muito confusos para não patrocinar aquela determinação. Des-de que vira o Sr. Brown no primeiro automóvel que chegara a Macondo — um conversível alaranjado com uma buzina que espantava os cães com os seus latidos — o velho guerreiro se indignou com as mesuras servis do povo e percebeu que algu-ma coisa mudara na índole dos homens desde o tempo em que abandonavam mulheres e filhos e jogavam uma espingarda ao ombro para ir à guerra. As autoridades locais, depois do armistício de Neerlândia, eram alcaides sem iniciativa, juízes decorativos, escolhidos entre os pacíficos e cansados conser-vadores de Macondo. “Este é um regime de pobres-diabos”, comentava o Coronel Aureliano Buendía quando via passar os guardas descalços, armados de cassetetes de madeira. “Fi-zemos tantas guerras, e tudo para que não nos pintassem a casa de azul.” Quando chegou a companhia bananeira, en-tretanto, os funcionários locais foram substituídos por foras-229 teiros autoritários que o Sr. Brown levou para viver no gali-nheiro eletrificado, para que gozassem, conforme explicou, da dignidade que correspondia ao seu cargo e não sofressem o calor e os mosquitos e as incontáveis incomodidades e pri- vações do povo. Os antigos guardas foram substituidos por sicários armados de facões. Fechado na oficina, o Coronel Au-reliano Buendía pensava nestas mudanças e, pela primeira vez nos seus calados anos de solidão, atormentou-o a certeza de- finitiva de que havia sido um erro não prosseguir a guerra até as suas últimas conseqüências. Por esses dias, um irmão do esquecido Coronel Magnífico Visbal levou o neto de sete anos para tomar um refresco nas carrocinhas da praça e, porque o menino esbarrou por acidente num cabo de polícia e lhe der-ramou o refresco no uniforme, o bárbaro fez dele picadinho com o facão e decapitou de um só golpe o avô, que tentara enfrentá-lo. Todo o povo viu o decapitado passar quando um grupo de homens o carregava para casa, a cabeça arrastada por uma mulher que a levava pendurada pelos cabelos e o sa-co ensangüentado onde meteram os pedaços do menino. Para o Coronel Aureliano Buendía foi o máximo da ex-piação. Encontrou-se de repente padecendo da mesma indig-nação que sentira na juventude, diante do cadáver da mulher que fora morta a pauladas porque tinha sido mordida por um cão raivoso. Olhou para os grupos de curiosos que estavam na frente da casa e, com a sua antiga voz trovejante, restau-rada por um profundo desprezo por ele mesmo, jogou-lhes em cima o peso do ódio que já não podia mais suportar no coração. — Um dia destes — gritou — vou armar os meus rapa-zes para acabar com estes ianques de merda! Ao correr da semana, em diferentes lugares do litoral, os seus dezessete filhos foram caçados como coelhos por crimi-nosos invisíveis que apontaram bem no centro das suas cru-zes de cinza. Aureliano Triste saía da casa de sua mãe, às sete da noite, quando um disparo de fuzil surgido da escuridão perfurou-lhe a testa. Aureliano Centeno foi encontrado na rede que costumava armar na fábrica~ com um furador de gelo era-vado até o cabo entre as sobrancelhas. Aureliano Serrador ti-230 nha deixado a namorada na casa dos pais, depois de levá-la ao cinema, e voltava pela iluminada Rua dos Turcos quando alguém que nunca foi identificado na multidão disparou um tiro de revólver que o derrubou dentro de um caldeirão de gor-dura fervendo. Poucos minutos depois, alguém bateu na por-ta do quarto onde Aureliano Arcaya estava fechado com uma mulher e gritou para ele: “Anda logo, que estão matando os teus irmãos.” A mulher que estava com ele contou depois que Aureliano Arcaya pulou da cama e abriu a porta e foi espera-do com uma descarga de Mauser que lhe despedaçou o crâ-nio. Naquela noite de matança, enquanto a casa se preparava para velar os quatro cadáveres, Fernanda percorreu o povoa-do como uma louca procurando Aureliano Segundo, que Pe-tra Cotes trancara num armario, pensando que a missao de extermínio incluía todos os que tivessem o nome do coronel. Não o deixou sair até o quarto dia, quando os telegramas rece-bidos de lugares diferentes do litoral permitiram compreender que a sanha do inimigo invisível estava dirigida apenas contra os irmãos marcados com cruzes de cinza. Amaranta procurou a caderneta de contas onde havia anotado os dados dos sobri-nhos, e, à medida que chegavam os telegramas, ia riscando os nomes, até que só ficou o do mais velho. Lembravam-se muito bem dele, por causa do contraste da sua pele escura com os grandes olhos verdes. Chamava-se Aureliano Amador, era carpinteiro e vivia numa aldeia perdida nas encostas da serra. Depois de esperar duas semanas pelo telegrama da sua morte, Aureliano Segundo mandou um emissário para preveni-lo, pen-sando que ignorasse a ameaça que pesava sobre ele. O emis-sário voltou com a notícia de que Aureliano Amador estava salvo. Na noite do extermínio, dois homens tinham ido procurá-lo em sua casa e tinham descarregado os seus revól-veres contra ele, mas não lhe haviam acertado a cruz de cin-za. Aureliano Amador conseguira pular a cerca do quintal e se perdera nos labirintos da serra, que conhecia como a pal-ma da mão, graças à amizade dos índios com quem comercia-va madeira. Não se voltara a saber dele. Foram dias negros para o Coronel Aureliano Buendía. O Presidente da República endereçou-lhe um telegrama de pé- 231 sarnes no qual prometia urna investigação exaustiva e rendia homenagem aos mortos. Por ordem sua, o alcaide se apresen-tou no enterro com quatro coroas fúnebres que pretendeu co-locar sobre os ataúdes, mas o coronel o pôs na rua. Depois do enterro, redigiu e levou pessoalmente um telegrama vio-lento para o Presidente da República, que o telegrafista se ne-gou a transmitir. Então, enriqueceu-o com expressões de sin-gular agressividade, meteu-o num envelope e o pôs no correio. Como lhe ocorrera com a morte da esposa, como tantas vezes lhe ocorrera durante a guerra com a morte dos seus melhores amigos, não experimentava um sentimento de pesar, mas uma raiva cega e sem direção, uma extenuante impotência. Che-gou até a denunciar a cumplicidade do Padre Antonio Isabel, por ter marcado seus filhos com cinza indelével, para que fos-sem identificados pelos inimigos. O decrépito sacerdote, que já não alinhava muito bem as idéias e começava a espantar os paroquianos com as disparatadas interpretações que tenta-va no púlpito, apareceu uma tarde na casa com a caneca onde preparava as cinzas da quarta-feira e tentou ungir com elas toda a família, para demonstrar que saíam com água. Mas o terror da desgraça tinha calado tão fundo que nem a própria Fernanda se prestou à experiência e nunca mais se viu um Buen-día ajoelhado juntd ao altar na quarta-feira de cinzas. Durante muito tempo o Coronel Aureliano Buendía não conseguiu recobrar a serenidade. Abandonou a fabricação de peixinhos, comia a duras penas e andava como um sonâmbu-lo por toda a casa, arrastando a manta e mastigando uma có-lera surda. Ao fim de três meses, tinha o cabelo grisalho, o antigo bigode de pontas engomadas gotej ando sobre os lábios sem cor, mas em compensação os seus olhos eram outra vez aquelas duas brasas que haviam assustado aos que o viram nascer e que em outros tempos faziam as cadeiras girarem só de olhar para elas. Na fúria do seu tormento tentava inutil-mente provocar os presságios que haviam guiado a sua juven-tude pelos caminhos do perigo até o desolado ermo da glória. Estava perdido, extraviado numa casa alheia, onde já nada nem ninguém lhe motivava o menor vestígio de afeto. Uma vez abriu o quarto de Melquíades, procurando os rastos de 232 um passado anterior à guerra e só encontrou os escombros, o lixo, os montes de porcaria acumulados por tantos anos de abandono. Nas capas dos livros que ninguém voltara a ler, nos velhos pergaminhos macerados pela umidade, prospera-ra uma flora lívida, e no ar que havia sido o mais puro e lumi-noso da casa flutuava um insuportável cheiro de lembranças podres. Certa manhã, encontrou Ursula chorando debaixo do castanheiro, nos joelhos do marido morto. O Coronel Aure-liano Buendía era o único habitante da casa que não conti-nuava a ver o potente ancião angustiado por meio século de intempérie. “Cumprimente o seu pai”, disse-lhe Ursula. Deteve-se um momento diante do castanheiro e uma vez mais comprovou que aquele espaço vazio também não lhe inspira-va nenhum afeto. — O que é que ele diz? — perguntou. — Está muito triste — Úrsula respondeu — porque acha que você vai morrer. — Diga a ele — sorriu o coronel — que não se morre quando se deve, mas quando se pode. O presságio do pai morto removeu o último ressaibo de soberba que lhe restava no coração, mas ele o confundiu com um repentino sopro de força. Foi por isso que se dirigiu a Ur-sula, para que lhe revelasse em que lugar do quintal estavam enterradas as moedas de ouro que tinham encontrado dentro do São José de gesso. “Você nunca vai saber”, disse ela com uma firmeza inspirada num velho castigo. “Um dia”, acres-centou, “há de aparecer o dono dessa fortuna e só ele poderá desenterrá-la.” Ninguém sabia por que um homem que sem-pre fora tão desprendido tinha começado a cobiçar o dinhei-ro com semelhante ansiedade, e não as modestas quantias que lhe haveriam bastado para resolver uma emergência, mas uma fortuna de grandezas desatinadas cuja simples menção deixou Aureliano Segundo perdido num mar de assombro. Os velhos companheiros de partido a quem acudiu em demanda de aju-da se esconderam para não recebê-lo. Foi por essa época que o ouviram dizer: “A única diferença atual entre liberais e con-servadores é que os liberais vão à missa das cinco e os conser-vadores à das oito.” Entretanto, insistiu com tanto afinco, su-233 plicou de tal modo, quebrantou de tal forma os seus princí-pios de dignidade que com um pouco daqui e um pouco de lá, deslizando por todas as partes com uma diligência sigilosa’ e uma perseverançadesapiedada, conseguiu reunir em oito me-ses mais dinheiro do que Úrsula tinha enterrado. Então, visi-tou o doente Coronel Gerineldo Márquez para que o ajúdas-se a promover a guerra total Em certo momento, o Coronel Gerineldo Márquez tinha sido na verdade o único que poderia movimentar, mesmo da sua cadeira de balanço de paralítico, os mofados fios da rebe-hão. Depois do armistício de Neerlândia, enquanto o Coro-nel Aureliano Buendía se refugiava no exílio dos seus peixi-nhos de ouro, ele manteve contato com os oficiais rebeldes que lhe haviam sido fiéis até a derrota. Fez com eles a guerra triste da humilhação cotidiana, das súplicas e dos memoran-dos, do volte amanhã, do está quase, do estamos estudando o seu caso com a devida atenção; a guerra perdida sem salva-ção contra os mui atenciosos e leais servidores que deviam as- sinar e não assinaram nunca as pensões vitalícias. A outra guer-ra, a sangrenta de vinte anos, não lhes causara tantos estra-gos quanto a guerra corrosiva do eterno adiamento. O pró-prio Coronel Gerineldo Márquez, que escapara de três aten-tados, sobrevivera a einco ferimentos e saíra ileso de incontá-veis batalhas, sucumbiu ao assédio atroz da espera e afundou na derrota miserável da velhice, pensando em Amaranta en-tre os losangos de luz de uma casa emprestada. Os últimos veteranos de quem se teve notíciaapareceram retratados num jornal, com a cara levantada de indignidade, junto a um anô-nimo Presidente da República que os presenteou com uns bo-tões com a sua efígie. para que os usassem na lapela, e lhes restituiu uma bandeira suja de sangue e de pólvora, para que a pusessem sobre os seus ataúdes. Os outros, os mais dignos, ainda esperavam uma carta na penumbra da caridade públi-ca, morrendo de fome, sobrevivendo de raiva, apodrecendo de velhos na refinada merda da glória. De modo que quando o Coronel Aureliano Buendía o convidoitpara promover uma conflagração mortal que arrasasse com todos os vestígios de um regime de corrupção e de escândalos sustentado pelo in-234 vasor estrangeiro, o Coronel Gerineldo Márquez não pôde re-primir um estremecimento de compaixão. — Ai, Aureliano — suspirou — eu já sabia que você es-tava velho, mas só agora é que percebo que você está muito mais velho do que aparenta. 235 4! No ATURDIMENTO dos últimos anos, Úrsula dispusera de tré-guas muito escassas para atender à formação papal de José Arcadio, quando ele teve que ser preparado às carreiras para ir para o seminário. Meme, sua irmã, dividida entre a rigidez de Fernanda e as amarguras de Amaranta, chegou quase ao mesmo tempo à idade prevista para mandá-la ao colé~io de freiras onde fariam dela uma virtuose do clavicórdio. Ursula se sentia atormentada por dúvidas graves em torno da eficá. cia dos métodos com que temperara o espírito do lânguido aprendiz de Sumo Pontífice e não jogava a culpa na sua tro-peçante velhice nem nas nuvens que mal lhe permitiam vis- lumbrar o contorno das coisas e sim em alguma coisa que ela mesma não conseguia definir mas que imaginava confusamente 236 -4 como um progressivo desgaste do tempo. “Os anos de agora já não v~m como os de antigamente”, costumava dizer, sen-tindo que a realidade cotidiana lhe escapava das mãos. Anti-gamente, pensava, as crianças demoravam muito para cres-cer. Bastava recordar todo o tempo que fora necessário para que José Arcadio, o mais velho, partisse com os ciganos e tu-do o que acontecera até que ele voltasse pintado como uma cobra e falando como um astrônomo, e as coisas que tinham acontecido em casa até que Amaranta e Arcadio esquecessem a língua dos índios e aprendessem o castelhano. Que se visse o sol e o sereno que suportara o pobre José Arcadio Buendía debaixo do castanheiro, e o quanto tivera que chorar a sua morte antes que lhe trouxessem moribundo um Coronel Au-reliano Buendía que, depois de tanta guerra e depois de tanto se sofrer por ele, ainda não tinha feito cinqüenta anos. Em outra época, depois de passar o dia inteiro fazendo animaizi-nhos de caramelo, ainda lhe sobrava tempo para se ocupar das crianças, para ver-lhes no branco dos olhos que estavam precisando de uma poção de óleo de rícino. Agora, pelo con-trário, quando já não tinha nada que fazer e andava com Jo-sé Arcadio pregado às saias de manhã à noite, a qualidade ruim do tempo obrigava-a a deixar as coisas pela metade. A verda-de era que Ursula resistia ao envelhecimento mesmo quando já tinha perdido a conta da sua idade e atrapalhava em todos os lugares e tentava se meter em tudo e aborrecia os forastei-ros com a perguntação de se não tinham deixado ali em casa, no tempo da guerra, um São José de gesso para que o guar-dassem enquanto não passava a chuva. Ninguém soube com certeza quando começou a perder a vista. Mesmo nos seus úl- timos anos, quando já não podia se levantar da cama, pare-cia simplesmente que estava vencida pela decrepitude, mas nin-guém descobriu que estava cega. Ela o percebera desde o nas-cimento de José Arcadio. A princípio, pensou que se tratava de uma debilidade transitória e tomava escondido xarope de tutano e botava mel de abelha nos olhos, mas muito breve-mente foi se convencendo de que afundava sem salvação nas trevas, a ponto de nunca ter tido uma noção muito clara da invenção da luz elétrica, porque quando instalaram os primei-237 ros focos só pôde perceber o brilho. Não disse nada a ninguém, pois teria sido um reconhecimento público da sua inutilidade. Empenhou-se numa calada aprendizagem da distância das coi-sas e das vozes das pessoas, para continuar vendo com a me- mória quando já não o permitissem as sombras da catarata. Mais tarde havia de descobrir o auxílio imprevisto dos chei-ros, que se definiram nas trevas com uma força muito mais convincente do que os volumes e a cor e a salvaram definiti-vamente da vergonha de uma renuncia. Na escuridao do quar-to, podia enfiar a linha na agulha e bordar uma casa, e sabia quando o leite estava para ferver. Conheceu com tanta certe-za o lugar em que se encontrava cada coisa que ela mesma se esquecia às vezes de que estava cega. Certa ocasião, Fernan-da pôs a casa em polvorosa porque tinha perdido a aliança e Ursula a encontrou num consolo, no quarto das crianças. Simplesmente, enquanto os outros andavam descuidadamente por todos os lados, ela os vigiava com os seus quatro senti-dos, para que nunca a pegassem de surpresa, e ao fim de al- gum tempo descobriu que cada membro da família repetia to-dos os dias, sem notar, os mesmos percursos, os mesmos atos, e que quase repetia as mesmas palavras às mesmas horas. Só quan-do saíam dessa meticulosa rotina é que corriam o risco de per-der alguma coisa. Dé’modo que quando viu Fernanda cons-ternada porque havia perdido a aliança, Úrsula se lembrou de que a única coisa diferente que ela fizera naquele dia tinha sido arejar as esteiras das crianças, porque Meme tinha des-coberto um percevejo na noite anterior. Como as crianças as-sistissem à limpeza, Ursula pensou que Fernanda havia posto a aliança no único lugar onde elas não a poderiam alcançar: o consolo. Fernanda, pelo contrário, procurou-a unicamente nos trajetos do seu itinerário cotidiano, sem saber que a pro-cura das coisas perdidas é dificultada pelos hábitos rotineiros e é por isso que dá tanto trabalho encontrá-las. A educação de José Arcadio ajudou a Ursula na tarefa extenuante de se manter a par das mínimas mudanças em ca-sa. Quando percebia que Amaranta estava vestindo os santos do quarto, fingia que ensinava ao menino as diferenças entre as cores. 238 — Vamos ver — dizia a ele — me conte de que cor está vestido São Rafael Arcanjo. Dessa forma, o menino lhe dava a informação que lhe negavam os olhos e muito antes que ele partisse para o semi-nário Ürsula já podia distinguir pela textura as diferentes co-res da roupa dos santos. As vezes aconteciam acidentes im- previstos. Uma tarde, estava Amaranta bordando na varan-da das begônias e Ursula tropeçou nela. — Pelo amor de Deus — protestou Amaranta — veja por onde anda. — E você — disse Ürsula — quem está sentada onde não deve. Para ela, estava certo. Mas naquele dia começou a se dar conta de alguma coisa que ninguém havia descoberto e era que no transcurso do ano o sol ia mudando imperceptivelmente de posição e quem se sentava na varanda tinha que ir mudan-do de lugar pouco a pouco e sem o perceber. A partir de en-tão, Úrsula tinha apenas que se lembrar da data para saber o lugar exato em que Amaranta estava sentada. Embora o tre-mor das mãos fosse cada vez mais perceptível e já não pudes-se com o peso dos pés, nunca se vira a sua figura miudinha em tantos lugares ao mesmo tempo. Era quase tão diligente como quando arcava com toda a responsabilidade da casa. En-tretanto, na impenetrável solidão da velhice, dispunha de tal clarívidencia para examinar mesmo os mais insignificantes acontecimentos da família que pela primeira vez viu com cla-reza as verdades que as suas ocupações de outros tempos lhe haviam impedido de ver. Na época em que preparavam José Arcadio para o seminário, já tinha feito uma recapitulação infinitesimal da vida da casa desde a fundação de Macondo e havia mudado completamente a opinião que tivera dos seus descendentes. Percebeu que o Coronel Aureliano Buendía não tinha perdido o afeto à família por causa do endurecimento da guerra, como ela acreditava antes, mas que nunca tinha amado ninguém, nem sequer a sua esposa Remedios ou as in-contáveis mulheres de uma noite que haviam passado pela sua vida e muito menos ainda os seus filhos. Vislumbrou que não tinha feito tantas guerras por idealismo, como todo mundo 239 pensava, nem tinha renunciado à vitória iminente por cansa-ço, como todo mundo pensava, mas que tinha ganho e perdi-do pelo mesmo motivo, por pura e pecaminosa soberba. Che-gou à conclusão de que aquele filho por quem ela teria dado a vida era simplesmente um homem incapacitado para o amor. Uma noite, quando o tinha no ventre, ouviu-o chorar. Era um lamento tão definido que José Arcadio Buendía acordou do seu lado e se alegrou com a idéia de que a criança ia ser ven-tríloqua. Outras pessoas prognosticaram que seria adivinho. Ela, pelo contrário, estremeceu com a certeza de que aquele bra-mido profundo era um primeiro indício do temível rabo de porco e rogou a Deus que lhe deixasse morrer a criatura no ventre. Mas a lucidez da velhice lhe permitiu ver, e assim o repetiu muitas vezes, que o choro das crianças no ventre da mãe não é um anúncio de ventriloquia nem de faculdade adi-vinhatória, mas um sinal inequívoco de incapacidade para o amor. Aquela desvalorização da imagem do filho despertou-lhe de uma vez toda a compaixão que estava devendo a ele. Amaranta, pelo contrário, cuja dureza de coração a espanta-va, cuja concentrada amargura a amargava, foi revelada no último exame como a mulher mais terna que jamais pudesse haver existido e compreendeu com uma penosa clarivid~ncia que as injustas torturas a que submetera Pietro Crespi não eram ditadas por uma vontade de vingança, como todo mundo pen-sava, nem o lento martírio com que frustrara a vida do Coro-nel Gerineldo Márquez tinha sido determinado pelo fel ruim da sua amargura, como todo mundo pensava, mas sim que ambas as ações tinham sido uma luta de morte entre um amor sem medidas e uma covardia invencível, e triunfara finalmen-te o medo irracional que Amaranta sempre tivera do seu pró-prio e atormentado coração. Foi por essa época que Ursula começou a se referir a Rebeca, a evocá-la com um velho cari-nho exaltado pelo arrependimento tardio e pela admiração re-pentina, tendo compreendido que somente ela, Rebeca, a que nunca se alimentara do seu leite e sim da terra e da cal das paredes, a que não levara nas veias o sangue do seu sangue e sim o sangue desconhecido de desconhecidos cujos ossos con-tinuavam chocalhando na tumba, Rebeca, a do coração im-240 paciente, a do ventre arrebatado, era a única que tinha tido a valentia sem freios que Úrsula desejara para a sua estirpe. — Rebeca — dizia, tateando as paredes — que injustos nós fomos com você! Em casa, simplesmente acreditavam que tresvariava, so-bretudo desde que dera para andar com o braço direito levan-tado, como o Arcanjo Gabriel. Fernanda se deu conta, entre-tanto, de que havia um sol de clarividência nas sombras desse desvario, pois Úrsula podia dizer sem titubear quanto dinhei-ro se havia gasto em casa durante o último ano. Amaranta teve uma idéia semelhante certo dia em que a mãe mexia na cozinha uma panela de sopa e disse de repente, sem saber que estava sendo ouvida, que o moinho de fubá que haviam com-prado dos primeiros ciganos, e que havia desaparecido desde antes que José Arcadio desse sessenta e cinco vezes a volta ao mundo, ainda estava na casa de Pilar Temera. Também qua-se centenária, mas sã e ágil apesar da inconcebível gordura que espantava as crianças como em outros tempos a sua risada es-pantava os pombos, Pilar Temera não se surpreendeu com o acerto de Úrsula, porque a sua própria experiencia começava a indicar que uma velhice alerta pode ser mais sagaz que as averiguações das cartas. Entretanto, quando Ursula percebeu que o tempo não lhe havia chegado para consolidar a vocação de José Arcadio deixou-se aturdir pela consternação. Começou a cometer er-ros tentando ver com os olhos as coisas que a intuição lhe per-mitia ver com maior claridade. Certa manhã jogou na cabeça do menino o conteúdo de um tinteiro, pensando que era água-de-colônia. Ocasionou tantas dificuldades com a teimosia de intervir em tudo, que se sentiu transtornada por crises de mau humor, e tentava vencer as trevas que finalmente a estavam tolhendo como uma camisa de teias de aranha. Foi então que lhe ocorreu que a sua inabilidade não era a primeira vitória da decrepitude e da escuridão, mas uma falha do tempo. Pen-sava que antigamente, quando Deus não fazia com os meses e os anos as mesmas trapaças que faziam os turcos ao medir uma jarda de percal, as coisas eram diferentes. Agora não ape-nas as crianças cresciam mais depressa, mas até os sentimen-241 ‘4’ tos evoluíam de outro modo. Nem bem Remedios, a bela, su-bira ao céu de corpo e alma, já Fernanda, sem consideração, andava resmungando pelos cantos que ela levara os lençóis. Nem bem haviam esfriado os corpos dos Aurelianos nas tum-bas e já Aureliano Segundo tinha outra vez a casa tomada, cheia de bêbados que tocavam acordeão e se encharcavam de champanha, como se não tivessem morrido cristãos e sim ca- chorros, e como se aquela casa de loucos, que tantas dores de cabeça e tantos animaizinhos de caramelo tinha custado, estivesse predestinada a se converter numa lixeira de perdição. Lembrando-se destas coisas enquanto aprontavam o baú de José Arcadio, Ursula se perguntava se não era preferível se deitar logo de uma vez na sepultura e lhe jogarem a terra por cima, e perguntava a Deus, sem medo, se realmente acredita-va que as pessoas eram feitas de ferro para suportar tantas penas e mortificações; e perguntando e perguntando ia atiçando a sua própria perturbação e sentia desejos irreprimíveis de se soltar e não ter papas na língua como um forasteiro e de se permitir afinal um instante de rebeldia, o instante tantas ve-zes desejado e tantas vezes adiado, para cortar a resignação pela raiz e cagar de uma vez para tudo e tirar do coração os infinitos montes de palavrões que tivera que engolir durante um século inteiro de conformismo. — Porra! — gritou. Amaranta, que começava a colocar a roupa no baú, pen-sou que ela tinha sido picada por um escorpião. — Onde está? — perguntou alarmada. — O quê? — O animal! — esclareceu Amaranta. Ursula pôs o dedo no coração. — Aqui — disse. Numa quinta-feira às duas da tarde, José Arcadio foi para o seminário. Úrsula havia de evocá-lo sempre como o imagi-nou ao se despedir dele, lânguido e sério e sem derramar uma lágrima, como ela lhe havia ensinado, sufocando de calor den-tro do traje de pelúcia verde com botões de cobre e um laço engomado no colarinho. Deixou a sala de jantar impregnada da penetrante fragrância de água-de-colônia que ela lhe joga-242 ti va na cabeça para poder seguir o seu rastro pela casa. Enquanto durou o almoço de despedida, a família dissimulou o nervo-sismo com expressões de júbilo e celebrou com exagerado en-tusiasmo os casos do Padre Antonio Isabel. Mas quando le-varam o baú forrado de veludo com cantoneiras de prata foi como se tivessem tirado de casa um ataúde. O único que se negou a participar da despedida foi o Coronel Aureliano Buendía. — Esta era a última amolação que estava nos faltando — resmungou — um Papa! Três meses depois, Aureliano Segundo e Fernanda leva-ram Meme para o colégio e voltaram com um cravo que ocu-pou o lugar da pianola. Foi por essa época que Amaranta co-meçou a tecer a sua própria mortalha. A febre da bananeira tinha apaziguado. Os antigos habitantes de Macondo se acha-vam segregados pelos estrangeiros, trabalhosamente reduzi-dos aos seus precários recursos de antigamente, mas recon-fortados em todo caso pela impressão de terem sobrevivido a um naufrágio. Em casa, continuaram recebendo convida-dos para almoçar e, realmente, não se restabeleceu a antiga rotina enquanto não foi embora, anos depois, a companhia bananeira. Entretanto, houve mudanças radicais no tradicio-nal sentido de hospitalidade, porque agora era Fernanda quem impunha as suas leis. Com Ursula relegada às trevas e com Amaranta abstraída no trabalho do sudário, a antiga apren-diz de rainha teve liberdade para selecionar os comensais e lhes impor as rígidas normas que os pais lhe haviam inculcado. Sua severidade fez da casa um reduto de costumes restaurados, nu-ma aldeia convulsionada pela vulgaridade com que os foras-teiros desbaratavam as suas fáceis fortunas. Para ela, sem mais sutilezas, gente de bem era a que não tinha nada que ver com a companhia bananeira. Até José Arcadio Segundo, seu cu-nhado, foi vítima do seu zelo discriminatório, porque no ar-rebatamento da primeira hora tornou a leiloar os seus estu-pendos galos de briga e se empregou de capataz na compa-nhia bananeira. — Que não volte a pisar nesta casa — disse Fernanda —enquanto tiver a sarna dos forasteiros. 243 Foi tal o recolhimento imposto na casa que Aureliano Se-gundo se sentiu definitivamente mais cômodo com Petra Co-tes. Primeiro, com o pretexto de aliviar o trabalho da esposa, transferiu as festas. Em seguida, com o pretexto de que os ani-mais estavam perdendo a fecundidade, transferiu os estábu-los e as cavalariças. Por último, com o pretexto de que na ca-sa da concubina fazia menos calor, transferiu o pequeno es-critório onde cuidava dos negócios. Quando Fernanda perce-beu que era uma viúva de marido vivo, já era tarde demais para que as coisas voltassem ao seu estado anterior. Aurelia-no Segundo mal comia em casa e as únicas aparências que con-tinuava guardando, como a de dormir com a esposa, não bas-tavam para convencer ninguém. Certa noite, por descuido, a manhã o surpreendeu na cama de Petra Cotes. Fernanda, ao contrário do que ele esperava, não lhe fez a menor censura nem soltou ~. mais leve suspiro de ressentimento, mas nesse mesmo dia mandou para a casa da concubina os seus dois baús de roupa. Mandou-os em pleno sol e com ordens para que fos-sem levados pelo meio da rua, para que todo mundo os visse, acreditando que o marido extraviado não pudesse suportar a vergonha e voltasse ao redil com a cabeça humilhada. Mas aquele gesto heróico fpi apenas uma prova a mais de quão mal Fernanda conhecia não só o gênio de seu marido como tam-bém a índole de uma comunidade que nada tinha que ver com a de seus pais, porque todos os que viram os baús passarem disseram a si mesmos que afinal essa era a culminância natu-ral de uma história cujas intimidades ninguém ignorava, e Au-reliano Segundo celebrou a liberdade presenteada com uma farra de três dias. Para maior desvantagem da esposa, enquanto ela começava a entrar numa maturidade pesada com as suas sombrias roupas até os tornozelos, os seus camafeus anacrô-nicos e o seu orgulho fora do lugar, a concubina parecia esta-lar numa segunda juventude, metida em vistosos trajes de se-da natural e com os olhos pintados pela candeia da reivindi-cação. Aureliano Segundo voltou a se entregar a ela com a fogosidade da adolescência, como antes, quando Petra Cotes não o amava por ele mesmo, mas porque o confundia com o seu irmão gêmeo e se deitava com ambos ao mesmo tempo, 244 pensando que Deus lhe dera a fortuna de ter um homem que fazia o amor como se fossem dois. Era tão premente a paixão restaurada que em mais de uma ocasião eles se olharam nos olhos quando se dispunnam a comer e, sem se dizerem nada, tamparam os pratos e foram morrer de fome e de amor no quarto. Inspirado nas coisas que tinha visto nas suas furtivas visitas às matronas francesas, Aureliano Segundo comprou pa-ra Petra Cotes uma cama com dossel de arcebispo e pôs corti-nas de veludo nas janelas e cobriu o teto e as paredes do quar-to com grandes espelhos de cristal de rocha. Era visto então como mais farrista e desmiolado do que nunca. Pelo trem, que chegava todos os dias às onze, recebia caixas e mais caixas de champanha e de conhaque. Na volta da estação arrastava pa-ra a cumbia* improvisada quanto ser humano encontrava pe-lo caminho, nativo ou forasteiro, conhecido ou por conhecer, sem distinções de nenhuma espécie. Até o fugidio Sr. Brown, que só conversava em língua estranha, deixou-se seduzir pe-los tentadores gestos que lhe fazia Aureliano Segundo e vá-rias vezes se embebedou para morrer na casa de Petra Cotes e fez até com que os ferozes cães policiais que o acompanha-vam a todas as partes dançassem canções texanas que ele mes-mo mastigava de qualquer maneira ao compasso do acordeão. — Afastem-se vacas — gritava Aureliano Segundo no pa-roxismo da festa. — Afastem-se que a vida é curta. Nunca teve melhor semblante, nem foi mais querido, nem esteve mais arrebatada a parição dos seus animais. Sacrificaram-se tantas reses, tantos porcos e galinhas nas in-termináveis festas que a terra se tornou negra e lodosa de tan-to sangue. Aquilo era um eterno depósito de ossos e tripas, um monturo de sobras, e tinha que se estar queimando cartu-chos de dinamite a toda hora para que os urubus não bicas-sem os olhos dos convidados. Aureliano Segundo tornou-se gordo, violáceo, atartarugado, em conseqüência de um apeti-te somente comparável ao de José Arcadio quando regressara da volta ao mundo. O prestígio da sua desenfreada voracida-de, da sua imensa capacidade de esbanjamento, da sua hospi- *Cumbia é a dança popular colombiana por excelência. (N. T.) 245 talidade sem precedentes ultrapassou os limites do pantanal e atraiu os glutões melhor qualificados do litoral. De todas as partes chegavam comilões fabulosos para tomar parte nos irracionais torneios de capacidade e resistência que se organi- zavam na casa de Petra Cotes. Aureliano Segundo foi o garfo invicto até o sábado de infortúnio em que apareceu Camila Sagastume, uma fêmea totemica conhecida no país inteiro pelo bom nome de A Elefanta. O duelo se prolongou até o ama-nhecer de terça-feira. Nas primeiras vinte e quatro horas, ten-do despachado uma vitela com aipim, inhame e banana assa-da e além disso uma caixa e meia de champanha, Aureliano Segundo estava certo da vitória. Via-se mais entusiasta, mais vital que a imperturbável adversária, possuidora de um estilo evidentemente mais profissional, mas por isso mesmo menos emocionante para o amontoado público que entupiu a casa. Enquanto Aureliano Segundo comia às dentadas, desbocado pela ansiedade do triunfo, A Elefanta seccionava a carne com a arte de um cirurgião e a comia sem pressa e até com um cer-to prazer. Era gigantesca e maciça, mas contra a corpulência colossal prevalecia a ternura da feminilidade e tinha um rosto tão formoso, umas mãos tão finas e bem cuidadas, e um en-canto pessoal tão irresistível que quando Aureliano Segundo a viu entrar em casa tomentou em voz baixa que teria preferi-do não fazer o torneio na mesa e sim na cama. Mais tarde, quando a viu consumir o lombo da vitela sem violar uma só regra da melhor urbanidade, comentou seriamente que aque-le delicado,, fascinante e insaciável proboscídeo era de certa maneira a mulher ideal. Não estava enganado. A fama de chata que precedeu A Elefanta carecia de fundamento. Não era tri-turadora de bois, nem mulher barbada num circo grego, co-mo se dizia, mas diretora de uma academia de canto. Tinha aprendido a comer sendo já uma respeitável mãe de família, procurando um método para que os seus filhos se alimentas-sem melhor e não por meio de estimulantes artificiais do ape-tite, mas por meio da absoluta tranqüilidade do espírito. A sua teoria, demonstrada na prática, se fundamentava no prin-cípio de que uma pessoa que tivesse perfeitamente arrumados os assuntos da sua consciência podia comer sem trégua até que 246 f o cansaço a vencesse. De modo que foi devido a razões mo-rais, e não por interesse esportivo, que deixou a academia e o lar para competir com um homem cuja fama de grande co-milão sem princípios tinha dado a volta ao país. Desde a pri-meira vez que o viu, percebeu que Aureliano Segundo não se-ria traído pelo estômago, mas pelo temperamento. Ao fim da primeira noite, enquanto A Elefanta continuava impávida, Au-reliano Segundo estava se esgotando de tanto falar e rir. Dor-miram quatro horas. Ao acordar, cada um bebeu o suco de cinqüenta laranjas, oito litros de café e trinta ovos crus. Na segunda madrugada, depois de muitas horas sem dormir e ten-do despachado dois porcos, um cacho de bananas e quatro caixas de champanha, A Elefanta suspeitou que Aureliano Se-gundo, sem o saber, tinha descoberto o mesmo método que ela, mas pelo caminho absurdo da irresponsabilidade total. Era, pois, mais perigoso do que ela pensara. Entretanto, quan-do Petra Cotes trouxe para a mesa dois perus assados, Aure-liano Segundo estava a um passo da congestão. — Se não agüenta, não coma mais — disse A Elefanta. — Ficamos empatados. Disse isso de coração, compreendendo que também ela não podia comer mais sequer um bocado, pelo remorso de es-tar propiciando a morte do adversário. Mas Aureliano Segundo interpretou aquilo como um novo desafio e engoliu o peru até muito além da sua incrível capacidade. Perdeu a consciência. Caiu de bruços sobre o prato de ossos, espumando pela boca como um cão raivoso e sufocando em grunhidos de agonia. Sentiu, em meio às trevas, que o atiravam do alto de uma tor-re para um precipício sem fundo e, num último clarão de lu-cidez, percebeu que no fim daquela interminável queda a morte o estava esperando. — Levem-me para junto de Fernanda — conseguiu dizer. Os amigos que o deixaram em casa acreditaram que ele havia cumprido a promessa à esposa de não morrer na cama da concubina. Petra Cotes havia engraxado as botinas de ver-niz que ele queria calçar no ataúde e já estava procurando al-guém que as levasse quando vieram lhe dizer que Aureliano Segundo estava fora de perigo. Restabeleceu-se, efetivamen-247 te, em menos de uma semana, e quinze dias depois estava ce-lebrando com uma festança sem precedentes o acontecimento da sobrevivência. Continuou vivendo na casa de Petra Cotes, mas visitava Fernanda todos os dias e às vezes ficava para al- moçar com a família, como se o destino tivesse invertido a situação e o tivesse deixado como esposo da concubina e aman-te da esposa. Foi um descanso para Fernanda. No tédio do abandono, as suas únicas distrações eram os exercícios de clavicórdio na hora da sesta e as cartas dos seus filhos. Nas detalhadas mis-sivas que lhes mandava de quinze em quinze dias, não havia uma só linha de verdade. Ocultava-lhes os sofrimentos. Escamoteava-lhes a tristeza de uma casa que apesar da luz so-bre as begônias, apesar da sufocação das duas da tarde, ape-sar das freqüentes brisas de festa que chegavam da rua, fica-va cada vez mais parecida com a mansão colonial de seus pais. Fernanda vagava sozinha entre três fantasmas vivos e o fan-tasma morto de José Arcadio Buendía, que às vezes vinha se sentar com uma atenção inquisitiva na penumbra da sala en-quanto ela tocava cravo. O Coronel Aureliano Buendía era uma sombra. Desde a última vez que saiu à rua para propor uma guerra sem futuro ao Coronel Gerineldo Márquez, mal abandonava a oficina p5ra urinar debaixo do castanheiro. Não 1 recebia outra visita senão a do barbeiro, de três em três sema-nas. Alimentava-se de qualquer coisa que Úrsula levasse para ele uma vez por dia e, embora continuasse fabricando peixi- 1 nhos de ouro com a mesma paixão de antigamente, deixou de vendê-los quando percebeu que as pessoas não os compravam 1 como jóias, mas como relíquias históricas. Tinha feito no quin-tal uma fogueira com as bonecas de Remedios, que decora-vam o seu quarto desde o dia do casamento. A vigilante Úr-sula percebeu o que o filho estava fazendo, mas não pôde impedir. — Você tem um coração de pedra — disse a ele. — Isto não é caso do coração — disse ele. — O quarto está ficando cheio de traças. Amaranta tecia a sua mortalha. Fernanda não entendia por que ela escrevia cartas ocasionais a Meme e até lhe man-248 dava presentes, mas, pelo contrário, não queria nem ouvir falar de José Arcadio. “Vão morrer sem saber por que , respon-deu Amaranta quando ela lhe fez a pergunta através de Ursu-la, e aquela resposta semeou no seu coração um enigma que nunca pôde esclarecer. Alta, espigada, altiva, sempre vestida com abundantes anáguas de escumilha e com um ar de distin-ção que resistia aos anos e às más recordações, Amaranta pa-recia trazer na testa a cruz da virgindade. Realmente a trazia na mão, na venda negra que não tirava nem para dormir e que ela mesma lavava e passava. Sua vida se escoava a bordar o sudário. Afirmava-se que bordava durante o dia e desbor-dava durante a noite, e não com a esperança de vencer deste modo a solidão, mas, ao contrário, para sustentá-la. A maior preocupação que tinha Fernanda nos seus anos de abandono era de que Meme viesse passar as primeiras fé-rias e não encontrasse Aureliano Segundo em casa. A conges-tão pôs fim a esse temor. Quando Meme voltou, seus pais se tinham posto de acordo não só para que a menina acreditasse que Aureliano Segundo continuava sendo um esposo domes-ticado, como também para que ela não notasse a tristeza da casa. Todos os anos, durante dois meses, Aureliano Segundo representava o papel de marido exemplar e promovia festas com sorvetes e biscoitinhos, que a alegre e vivaz estudante ame-nizava com o cravo. Era já evidente que tinha herdado muito pouco do temperamento da mãe. Parecia mais uma segunda versão de Amaranta, quando esta ainda não conhecia a amar-gura e andava alvoroçando a casa com os seus passos de dan-ça, aos doze, aos quatorze anos, antes que a paixão secreta por Pietro Crespi torcesse definitivamente o rumo do seu co-ração. Mas, ao contrário de Amaranta, ao contrário de to-dos, Meme não revelava ainda a sina solitária da família e pa-recia inteiramente de acordo com o mundo, mesmo quando se fechava na sala às duas da tarde para praticar o clavicórdio com uma disciplina inflexível. Era evidente que gostava de casa, que passava o ano todo sonhando com o alvoroço de adoles- centes que a sua chegada provocava, e que não andava muito longe da vocação festiva e dos desregramentos hospitaleiros do pai. O primeiro signo dessa herança calamitosa se revelou 249 nas terceiras férias, quando Meme apareceu em casa com qua tro freiras e sessenta e oito colegas de classe, a quem convida-ra para passar uma semana com a família, por iniciativa pró-pria e sem avisar. — Que desgraça! — lamentou-se Fernanda. — Esta cria-tura é tão bárbara quanto o pai! Foi preciso pedir camas e redes aos vizinhos, estabelecer nove turnos na mesa, fixar horários para o banho e conseguir quarenta banque: emprestadas para que as meninas de uni-formes azuis e botinas de homem não andassem o dia inteiro trançando de um lado para o outro. O convite foi um desas-tre, porque as ruidosa. ~..olegiais mal acabavam de tomar café já tinham que começar os turnos para o almoço e em seguida para o jantar, e em toda a semana só puderam fazer um pas-seio às plantações. Ao anoitecer, as freiras estavam esgota-das, incapazes de se mover, de dar uma ordem a mais, e o tropel de adolescentes incansáveis ainda estava no quintal cantando desafinados hinos escolares. Um dia, por pouco não atrope-lam Úrsula, que se empenhava em ser útil exatamente onde mais atrapalhava. Outro dia, as freiras armaram um escân-dalo porque o Coronel Aureliano Buendía urinou debaixo do castanheiro sem se preocupar com o fato de as colegiais esta-rem no quintal. Amaranta esteve a ponto de semear o pânico, porque uma das freiras entrou na cozinha quando ela estava temperando a sopa e a única coisa que lhe ocorreu foi per-guntar o que eram aqueles punhados de pó branco. — Arsênico — disse Amaranta. Na noite da chegada, as estudantes se atrapalharam de tal maneira tratando de ir ao reservado antes de se deitar que à uma da madrugada ainda estavam entrando as últimas. Fer-nanda então comprou setenta e dois penicos, mas só conse-guiu transformar o problema noturno num problema mati-nal, porque desde o amanhecer havia diante do reservado uma longa fila de moças, cada uma com o seu penico na mão, es- perando a vez para lavá-lo. Embora algumas sofressem de fe-bre e várias ficassem com as mordidas dos mosquitos infla-madas, a maioria demonstrou uma resistência inquebrantá-vel diante das dificuldades mais penosas e mesmo na hora de 250 1 mais calor corriam no jardim. Quando finalmente foram em-bora, as flores estavam destruídas, os móveis partidos e as pa-redes cobertas de desenhos e letreiros, mas Fernanda perdoou-lhes os estragos diante do alívio da partida. Devolveu as ca- mas e banquetas emprestadas e guardou os setenta e dois pe-nicos no quarto de Melquíades. O cômodo enclausurado, em torno do qual girara em outros tempos a vida espiritual da casa, ficou conhecido a partir de então como o quarto dos pe- nicos. Para o Coronel Aureliano Buendía, esse era o nome mais apropriado, porque enquanto o resto da família continuava se assombrando de que a peça de Melquíades fosse imune ao pó e à destruição, ele a via transformada numa lixeira. De qual-quer maneira, não lhe parecia importar quem estava com ra-zão, e se soube do destino do quarto foi porque Fernanda es-teve passando e perturbando o seu trabalho durante uma tar-de inteira para guardar os penicos. Por esses dias reapareceu José Arcadio Segundo em ca-sa. Passava de longe pela varanda, sem cumprimentar ninguém, e se trancava na oficina para conversar com o coronel. Ape-sar de não poder vê-lo, Ursula estudava ruído das suas bo-tas de capataz e se surpreendia com a distância irremediável que separava da família, inclusive do irmão gêmeo, com quem brincava na infância os engenhosos truques de confu-são e com o qual já não tinha nenhum traço em comum. Era comprido, solene, e tinha um ar pensativo, e uma tristeza de sarraceno, e um brilho lúgubre no rosto cor de outono. Era o que mais se parecia com a mãe, Santa Sofía de la Piedad. Ursula reprovava em si a tendência a se esquecer dele ao falar da família, mas quando o sentiu de novo em casa e percebeu que o coronel o admitia na oficina durante as horas de traba-lho, voltou a examinar as suas velhas lembranças e confirmou a crença de que em algum momento da infância ele se con-fundira com o irmão gêmeo, porque era ele e não o outro quem devia se chamar Aureliano. Ninguém conhecia os pormeno-res da sua vida. Em certa época, sabia-se que não tinha resi-dência fixa, que criava galos na casa de Pilar Temera e que às vezes ficava para dormir ali, mas que quase sempre passa-va a noite nos quartos das matronas francesas. Andava à de-251 riva, sem afetos, sem ambições, como uma estrela errante no sistema planetário de Úrsula. Realmente, José Arcadio Segundo não era membro da família, nem o seria jamais de outra, desde a madrugada dis-tante em que o Coronel Gerineldo Márquez o levara ao quar-tel, não para que visse um fuzilamento, mas para que não se esquecesse para o resto da vida do sorriso triste e um pouco irônico do fuzilado. Aquela não era apenas a sua lembrança mais antiga, mas também a única da sua meninice. A outra, a de um ancião com um casaco anacrônico e um chapéu de asas de corvo que contava maravilhas diante de uma janela deslumbrante, não conseguia situar em nenhuma época. Era uma lembrança incerta, inteiramente desprovida de ensinamen-tos ou saudade, ao contrário da lembrança do fuzilado que, na realidade, tinha definido o rumo da sua vida e regressava à sua memória, cada vez mais nítida à medida que envelhe-cia, como se o transcurso do tempo a viesse aproximando. Ur-sula tratou de aproveitar José Arcadio Segundo para que o Coronel Aureliano Buendía abandonasse o seu enclausuramen-to. “Convença-o a ir ao cinema”, dizia a ele. “Embora não goste dos filmes, terá pelo menos uma ocasião de respirar ar puro.” Mas não tardou a perceber que ele era tão insensível às suas súplicas quanta teria sido o coronel e que estavam en- couraçados pela mesma impermeabilidade aos afetos. Embo-ra nunca soubesse, nem o soubesse ninguém, do que falavam nas prolongadas entrevistas na oficina, entendeu que eram eles os únicos membros da família que pareciam vinculados por afinidades. A verdade é que nem José Arcadio Segundo poderia ti-rar o coronel do seu enclausuramento. A invasão escolar fora demais para os limites da sua paciência. Com o pretexto de que o quarto nupcial estava à mercê das traças apesar da des-truição das apetitosas bonecas de Remedios, pendurou uma rede na oficina e agora só a abandonava para ir ao quintal fazer as suas necessidades. Úrsula não conseguiu alinhavar com ele uma conversa trivial. Sabia que ele não olhava os pratos de comida, mas que os punha no canto da mesa enquanto ter. minava o peixinho e não se importava se a sopa criasse cros-252 tas de gordura e se a carne esfriasse. Endureceu-se cada vez mais desde que o Coronel Gerineldo Márquez se negou a segui-lo numa guerra senil. Fechou-se com tranca dentro de si mes-mo e a família acabou por pensar nele como se tivesse morri-do. Não se voltou a ver nele nenhuma reação humana até um onze de outubro em que saiu à porta da rua para ver o desfile de um circo. Aquele tinha sido para o Coronel Aureliano Buen-dia um dia igual a todos os dos seus últimos anos. As cinco da madrugada foi acordado pelo alvoroço dos sapos e dos gri-los do lado de fora da parede. A chuvinha persistia desde sá-bado e ele não teria tido necessidade de ouvir o seu minucioso cochicho nas folhas do jardim, porque de todo jeito te-la-ia sentido no frio dos ossos. Estava, como sempre, vestido com a manta de lã e com as ceroulas de algodão cru que continua-va usando por comodidade, embora por causa do seu empoei-rado anacronismo ele mesmo as chamasse de “cuecas de go-do”. Pôs as calças justas, mas não deu os laços nem colocou no colarinho da camisa o botão de ouro que usava sempre, porque tinha o propósito de tomar um banho. Em seguida pôs a manta na cabeça, como um capuz, penteou com os dedos o bigode caído e foi urinar no quintal. Faltava tanto para que saisse o sol que José Arcadio Buendía ainda cochilava debai-xo da coberta de sapé já podre por causa da chuva. Ele não o viu, como não o havia visto nunca, nem ouviu a frase in-compreensível que lhe dirigiu o espectro de seu pai quando acordou sobressaltado pelo jato de urina quente que lhe sal-picava os sapatos. Deixou o banho para mais tarde, não por causa do frio e da umidade, mas por causa da névoa opressi-va de outubro. De volta à oficina sentiu o cheiro de pavio do fogo que Santa Sofía de la Piedad estava acendendo e espe-rou na cozinha que o café fervesse, para levar a sua caneca sem açúcar. Santa Sofía de la Piedad perguntou-lhe, como to-das as manhãs, em que dia da semana estavam e ele respon-deu que era terça-feira, onze de outubro. Vendo a impávida mulher dourada pelo brilho do fogo, que nem nesse nem em nenhum outro momento da sua vida parecia existir por com-pleto, lembrou-se de repente de que um onze de outubro, em plena guerra, acordou-o a certeza brutal de que a mulher com 253 quem tinha dormido estava mona. Estava, realmente, e não se esquecia da data porque ela também lhe havia perguntado uma hora antes em que dia estavam. Apesar da evocação, desta vez também não teve consciencia de até que ponto o tinham abandonado os presságios, e enquanto o café fervia continuou pensando por pura curiosidade, mas sem o mais insignifican-te traço de nostalgia, na mulher cujo nome nunca soube e cujo rosto não viu com vida porque tinha chegado à sua rede tropeçando no escuro. Entretanto, no vazio de tantas mulhe-res como as que chegaram à sua vida da mesma forma, não se lembrou de que foi ela a que no delírio do primeiro encon- tro estava quase por naufragar nas próprias lágrimas e ape-nas uma hora antes de morrer jurara amá-lo até a morte. Não voltou a pensar nela, nem em nenhuma outra, depois que en-trou na oficina com a xícara fumegante e acendeu a luz para contar os peixinhos de ouro que guardava num pote de lata. Havia dezessete. Desde que decidira não vende-los, continua-va fabricando dois peixinhos por dia, e quando completava vinte e cinco voltava a fundi-los no crisol para começar a faze-los de novo. Trabalhou a manhã inteira, absorto, sem pensar em nada, sem se dar conta de que às dez aumentara a chuva e alguém passava diante da oficina gritando que fechassem as portas para que a casa não inundasse, e sem se dar conta se-quer de si mesmo até que Ürsula entrou com o almoço e apa-gou a luz. — Que chuva! — disse l3rsula. — Outubro — disse ele. Ao dize-lo, não levantou a vista do primeiro peixinho do dia, porque estava engastando os rubis dos olhos. Só quando o terminou e o pôs cqm os outros no pote é que começou a tomar a sopa. Em seguida comeu, muito devagar, o pedaço de carne ensopada com cebola, o arroz branco e as fatias de banana frita, tudo junto no mesmo prato. O seu apetite não se alterava nem nas melhores nem nas mais duras circunstân cias. Ao fim do almoço experimentou a derrota da ociosida-de. Por uma espécie de superstição científica, nunca trabalhava, nem lia, nem tomava banho, nem fazia amor, antes de que transcorressem duas horas de digestão, e era uma crença tão 254 arraigada que várias vezes atrasou operações de guerra para não submeter a tropa aos riscos de uma congestão. De modo que se deitou na rede, tirando a cera dos ouvidos com um ca-nivete e, em poucos minutos, adormeceu. Sonhou que entra-va numa casa vazia, de paredes brancas, e que se inquietava com a angústia de ser o primeiro ser humano que entrava ne-la. No sonho recordou que havia sonhado o mesmo na noite anterior e em muitas noites dos últimos anos, e soube que a imagem se apagaria de sua memória ao acordar, porque aquele sonho teimoso tinha a virtude de não ser recordado a não ser dentro do mesmo sonho. Um momento depois, com efeito, quando o barbeiro bateu na porta da oficina, o Coronel Au-reliano Buendía acordou com a impressão de que involunta-riamente tinha adormecido por breves segundos e que não ti-nha tido tempo de sonhar nada. — Hoje não — disse ao barbeiro. — Volte na sexta-feira. Tinha uma barba de tres dias, salpicada de pelos bran-cos, mas achava melhor não se barbear, pois na sexta-feira ia cortar o cabelo e podia fazer tudo ao mesmo tempo. O suor pegajoso da sesta indesejável reviveu nas suas axilas as cica-trizes dos furúnculos. Havia estiado, mas ainda não saíra o sol. O Coronel Aureliano Buendía emitiu um arroto sonoro que devolveu ao paladar a acidez da sopa e que foi como uma ordem do organismo para que jogasse a manta nos ombros e fosse ao reservado. Ali permaneceu mais do que o tempo necessário, agachado sobre a densa fermentação que subia do caixote de madeira, até que o costume lhe indicou que era ho-ra de reiniciar o trabalho. Durante o tempo que durou a espe-ra voltou a se lembrar de que era terça-feira e de que José Ar-cadio Segundo não tinha estado na oficina porque era dia de pagamento nas fazendas da companhia bananeira. Essa lem-brança, como todas as dos últimos anos, passou sem que viesse ao caso pensar na guerra. Lembrou-se de que o Coronel Geri-neldo Márquez lhe havia prometido, certa vez, conseguir um cavalo com uma estrela branca na testa e que nunca se volta-ra a falar disso. Em seguida, derivou para episódios disper-sos, mas os evocou sem qualificá-los, porque de tanto não po-der pensar em outra coisa tinha aprendido a pensar a frio, para 255 que as lembranças iniludíveis não lhe estragassem nenhum sen-timento. De volta à oficina, vendo que o ar começava a secar, decidiu que era um bom momento para tomar um banho, mas 1 Amaranta se havia antecipado a ele. De modo que começou o segundo peixinho do dia. Estava engatando o rabo quando o sol saiu com tanta força que a claridade rangeu como uma canoa. O ar lavado pela chuvinha de tres dias se encheu de tanajuras. Então caiu em si, percebendo que tinha vontade de urinar e estava adiando até que acabasse de armar o peixinho. Ia para o quintal, às quatro e dez, quando ouviu os instru- mentos longínquos, as batidas do bumbo e a alegria das crian-ças, e pela primeira vez desde a juventude pisou consciente-mente numa armadilha da saudade e reviveu a prodigiosa tar-de de ciganos em que o seu pai o levou para conhecer o gelo. Santa Sofía de la Piedad abandonou o que estava fazendo na cozinha e correu para a porta. — o circo — gritou. Em vez de se dirigir ao castanheiro, o Coronel Aureliano Buendía foi também para a porta da rua e se misturou com os curiosos que contemplavam o desfile. Viu uma mulher ves-tida de ouro no cangote de um elefante. Viu um dromedário triste. Viu um urso vestido de holandesa que marcava o com-passo da música coni uma concha e uma caçarola. Viu os pa-lhaços virando cambalhotas no final do desfile e viu outra vez a cara da sua solidão miserável quando tudo acabou de pas-sar e não ficou senão o luminoso espaço na rua e o ar cheio de tanajuras e uns quantos curiosos próximos ao precipício da incerteza. Então foi para o castanheiro, pensando no cir-co, e enquanto urinava tentou continuar pensando no circo, mas já não encontrou a lembrança. Meteu a cabeça entre os ombros, como um frango, e ficou imóvel com a testa apoiada no tronco do castanheiro. A família não soube de nada até o dia seguinte, às onze da manhã, quando Santa Sofia de la Piedad foi jogar o lixo no quintal e lhe chamou a atenção o fato de estarem baixando os urubus. 256 3) AS ÜLTIMAS férias de Meme coincidiram com o luto pela mor-te do Coronel Aureliano Buendía. Na casa fechada não havia lugar para festas. Falava-se por sussurros, comia-se em silen-cio, rezava-se o rosário tres vezes por dia e até os exercícios de clavicórdio, no calor da sesta, tinham uma ressonância fú-nebre. Apesar da sua secreta hostilidade contra o coronel, foi Fernanda quem impôs o rigor daquele luto, impressionada com a solenidade com que o Governo exaltou a memória do inimi-go morto. Aureliano Segundo, como de costume, voltou a dor-mir em casa durante as férias da filha; e alguma coisa Fer-257 4 nanda deve ter feito para recuperar os seus privilégios de posa legítima, porque no ano seguinte Meme encontrou um~ irmãzinha recém-nascida, a quem batizaram, contra a vonta-- de da mãe, com o nome de Amaranta Ürsula. Meme terminara os estudos. O diploma que a credencia-- va como concertista de clavicórdio foi ratificado pelo virtuo-- sismo com que executou temas populares do século XVII festa organizada para celebrar a sua formatura e com a se pôs fim ao luto. Os convidados admiraram, mais do -~ a arte, a sua estranha dualidade. Seu temperamento frivolo e até um pouco infantil não parecia adequado a nenhuma ati-- vidade séria, mas quando se sentava ao clavicórdio se trans-- formava numa moça diferente, a quem a maturidade impre-- vista trazia um ar de adulto. Sempre fora assim. Na verdade não tinha uma vocação definida, mas conseguira as notas altas através de uma disciplina inflexível, para não contrarxal a mãe. Poderiam ter-lhe imposto a aprendizagem de outro ofício e os resultados seriam os mesmos. Desde menina a incomodava o rigor de Fernanda, o seu costume - decidir pelos outros, e teria sido capaz de um sacrifício muito mais duro que as lições de clavicórdio, só para não tropeçar na sua intransigencia. No ato de encerramento, teve a impres-- são de que o pergaminho com letras góticas e maiúsculas or-- namentadas a liberava de um compromisso que tinha aceito não tanto por obediencia quanto por comodidade, e acredi-- tou que a partir de então nem ~ teimosa Fernanda tornaria a se preocupar com um instrumento que até as freiras consi-- deravam como um fóssil de museu. Nos primeiros anos pen-- sou que os seus cálculos estavam errados, porque depois de ter feito adormecer meia cidade não só na sala de visitas, mas também em quantos saraus beneficentes, festas escolares e co-- memorações patrióticas foram celebrados em Macondo, sua mãe continuou convidando a todo recém-chegado que supu-- nha capaz de apreciar as virtudes da filha. Só depois da mor-- te de Amaranta, quando a família voltou a se fechar por al-- gum tempo no luto, é que Meme pôde trancar o clavicórdio e esquecer a chave em algum armário, sem que Fernanda se incomodasse em verificar em que momento nem por culpa de 258 quem ela se havia extraviado. Meme resistiu às exibições com o mesmo estoicismo com que se consagrara à aprendizagem. Era o preço da sua liberdade. Fernanda estava tão satisfeita com a sua docilidade e tão orgulhosa da admiração que a sua arte despertava que nunca se opôs a que tivesse a casa sempre cheia de amigas e passasse a tarde nas plantações e fosse ao cinema com Aureliano Segundo ou com senhoras de confian-ça, sempre que o filme tivesse sido autorizado no púlpito pelo Padre Antonio Isabel. Naqueles momentos de descontração é que se revelavam os verdadeiros gostos de Meme. A sua fe-licidade estava no outro extremo da disciplina, nas festas rui-dosas, nos fuxicos de namoro, em trancar-se prolongadamente com as amigas em cantos onde aprendiam a fumar e conver-savam de assuntos de homem, e onde uma vez passaram a mão em três garrafas de rum e acabaram nuas, medindo e compa-rando as partes do corpo. Meme não se esqueceu nunca da noite em que entrou em casa mastigando alcaçuz e, sem que percebessem a sua perturbação, sentou-se à mesa em que Fer-nanda e Amaranta jantavam sem se dirigir a palavra. Tinha passado duas horas tremendas no quarto de uma amiga, cho-rando de rir e de medo, e no outro lado da crise encontrara o estranho sentimento de valentia que lhe faltara para fugir do colégio e dizer à mãe, com estas ou com outras palavras, que ela podia muito bem tomar uma lavagem de clavicórdio. Sentada na cabeceira da mesa, tomando um caldo de galinha que lhe caía no estômago como um elixir de ressurreição, Me-me viu, então, Fernanda e Amaranta envoltas no halo acusa-dor da realidade. Teve que fazer um esforço enorme para não jogar na cara delas os seus gestos, a sua pobreza de espírito, os seus delírios de grandeza. Desde as segundas férias que sa-bia que o pai só vivia em casa para salvar as aparências, e co-nhecendo Fernanda como conhecia, e tendo dado um jeito, mais tarde, de conhecer Petra Cotes, dera razão ao pai. Ela também teria preferido ser filha da concubina. No embota-mento do álcool, Meme pensava com deleite no escândalo que teria provocado se, naquele momento, tivesse expressado os seus pensamentos e foi tão intensa a satisfação intima da pi-cardia que Fernanda percebeu. 259 — O que é que há com você? — perguntou. — Nada — respondeu Meme. — E que só agora desco-bri como eu amo vocês. Amaranta assustou-se com a evidente carga de ódio que trazia a declaração. Mas Fernanda ficou tão comovida que pen-sou que ia ficar louca quando Meme acordou à meia-noite com a cabeça estalando de dor e sufocando em vômitos de bile. Deu-lhe um frasco de óleo de rícino, aplicou-lhe cataplasma no ventre e bolsas de gelo na cabeça, e obrigou-a a seguir a dieta e o repouso de cinco dias ordenados pelo novo e extra-vagante médico francês que, depois de examiná-la durante mais de duas horas, chegou à conclusão nebulosa de que tinha uma perturbação própria de mulher. Abandonada pela valentia, num miserável estado de desmoralização, não lhe restou ou-tro recurso senão agüentar. Ursula, já completamente cega, mas ainda ativa e lúcida, foi a única que intuiu o diagnóstico exato. “Para mim”, pensou, “estas são as mesmas coisas que acontecem com os bêbados.” Mas não só recusou a idéia, co-mo também reprovou a leviandade do pensamento. Aurelia-no Segundo sentiu a consciência doendo quando viu o estado de prostração de Meme e prometeu a si mesmo se ocupar mais dela no futuro. Foi assim que nasceu a relação de alegre ca-maradagem entre o ~ai e a filha, que o livrou por algum tem-po da amarga solidão das festanças e livrou a ela da autorida-de de Fernanda sem ter que provocar a crise doméstica que já parecia inevitável. Aureliano Segundo passou a adiar qual-quer compromisso para estar com Meme, para levá-la ao ci-nema ou ao circo, e lhe dedicava a maior parte do seu ócio. Nos últimos tempos, o estorvo da obesidade absurda que já não lhe permitia amarrar os cordões dos sapatos, e a satisfa-ção abusiva de toda espécie de apetites, tinham começado a lhe azedar o temperamento. A descoberta da filha restituiu-lhe a antiga jovialidade e o prazer de estar com ela o ia afas-tando pouco a pouco da dissipação. Meme despontava para uma idade frutífera. Não era bela, como nunca o fora Ama-ranta, mas em compensação era simpática, simples, e tinha a virtude de causar boa impressão desde o primeiro momen-to. Tinha um espírito moderno que feria a antiquada sobríe-260 dade e o mal dissimulado coração avaro de Fernanda e que, pelo contrário, Aureliano Segundo sentia prazer em patroci-nar. Foi ele quem resolveu tirá-la do quarto que ocupava des-de menina e onde os olhos assombrados dos santos continua-vam alimentando os seus terrores de adolescente, e mobiliou para ela um aposento com uma cama de dossel, uma penLea-deira ampla e cortinas de veludo, sem perceber que estava fa-zendo uma segunda versão do dormitório de Petra Cotes. Era tão pródigo com Meme que nem sequer sabia quanto dinhei-ro lhe dava, porque ela mesma o tirava dos seus bolsos; e a mantinha em dia com quanta novidade embelezadora chegas-se aos armazéns da companhia bananeira. O quarto de Meme se encheu de pedra-pomes para lustrar as unhas, enroladores de cabelo, polidores de dentes, colírios para fazer o olhar lân-guido, e tantos e tão inovadores cosméticos e aparelhos de be-leza que cada vez que Fernanda entrava no dormitório se es-candalizava com a idéia de que a penteadeira da filha devia ser igual à das matronas francesas. Entretanto, Fernanda an-dava nessa época com o tempo dividido entre a pequena Ama-ranta Ursula, que era caprichosa e doentia, e uma emocionante correspondência com os médicos invisíveis. Por isso, quando notou a cumplicidade do pai com a filha, a única promessa que arrancou de Aureliano Segundo foi a de que nunca leva-ria Meme à casa de Petra Cotes. Era uma advertência sem sen-tido, porque a concubina estava tão amolada com a camara-dagem do amante com a filha que não queria saber de nada com ela. Atormentava-a um temor desconhecido, como se o instinto lhe indicasse que Meme, bastando querer, poderia con-seguir o que Fernanda não pudera: privá-la de um amor que já considerava assegurado até a morte. Pela primeira vez, Au-reliano Segundo teve que agüentar as caras fechadas e as vio-lentas ladainhas da concubina, e temeu até que os seus leva-dos e trazidos baús fizessem o caminho de volta para a casa da esposa. Isto não aconteceu. Ninguém conhecia melhor um homem que Petra Cotes o seu amante, e ela sabia que os baús ficariam no lugar para onde tivessem sido mandados, porque se havia uma coisa que Aureliano Segundo detestava era com-plicar a vida com retificações e mudanças. De modo que os 261 í baús ficaram onde estavam e Petra Cotes se empenhou em re-conquistar o homem afiando as únicas armas com que a filha não podia lutar. O que foi também um trabalho desnecessá-rio, porque Meme nunca tivera o propósito de intervir nos as-suntos particulares do pai e certamente se o fizesse seria em favor da concubina. Não lhe sobrava tempo para amolar nin-guém. Ela mesma varria o quarto e arrumava a cama, como lhe ensinaram as freiras. De manhã se ocupava da sua roupa, bordando na varanda ou cosendo na velha máquina de mani-vela de Amaranta. Enquanto os outros faziam a sesta, prati-cava o clavicórdio durante duas horas, sabendo que o sacrifí-cio diário manteria Fernanda calma. Pelo mesmo motivo, con-tinuava oferecendo concertos em bazares eclesiásticos e fes-tas escolares, embora as solicitações fossem cada vez menos freqüentes. Á tardinha se arrumava, punha as suas roupas sim-ples e as suas duras botinas e, se não tinha nada para fazer com o pai, ia à casa de suas amigas, onde ficava até a hora do jantar. Era excepcional que Aureliano Segundo não fosse buscá-la para levá-la ao cinema. Entre as amigas de Meme havia três jovens norte-americanas que tinham rompido o cerco do galinheiro eletri-ficado e feito amizade coi~ moças de Macondo. Uma delas era Patricia Brown. Agradecido à hospitalidade de Aureliano Segundo, o Sr. Brown abriu as portas da sua casa a Meme e a convidou para os bailes de sábado, que eram os únicos em que os ianques se misturavam com os nativos. Quando Fer-nanda soube, esqueceu-se por um momento de Amaranta Ur-sula e dos médicos invisíveis e armou todo um melodrama. “Imagine”, disse a Meme, “o que vai pensar o coronel no túmulo.” Procurava, é claro, o apoio de Ursula. Mas a anciã cega, ao contrário do que todos esperavam, considerou que não havia nada de reprovável em Meme assistir aos bailes e cultivar amizade com as norte-americanas da sua idade, des-de que conservasse a firmeza do seu caráter e não se deixasse converter à religião protestante. Meme captou muito bem o pensamento da tataravó e, no dia seguinte aos bailes, se le-vantava mais cedo do que de costume para ir à missa. A opo-sição de Fernanda persistiu até o dia em que Meme a desar-262 mou com a notícia de que os norte-americanos queriam ouvi-la tocar clavicórdio. O instrumento foi tirado uma vez mais de casa e levado para a do Sr. Brown, onde efetivamente a jovem concertista recebeu os aplausos mais sinceros e as feli- citações mais entusiastas. A partir de então não só a convida-vam para os bailes, mas também para os banhos dominicais na piscina e para almoçar uma vez por semana. Meme apren-deu a nadar como uma profissional, a jogar tênis e a comer presunto de Virgínia com fatias de abacaxi. Entre bailes, pis-cina e tênis, viu-se de repente falando inglês. Aureliano Se-gundo se entusiasmou tanto com os progressos da filha que comprou de um caixeiro viajante uma enciclopédia inglesa em seis volumes e com numerosas ilustrações a cores que Meme lia nas horas vagas. A leitura ocupou a atenção que antes des-tinava aos fuxicos de namoro ou aos segredos experimentais com as suas amigas, não porque o impusesse como discipli-na, mas porque já tinha perdido todo o interesse em comen-tar mistérios que eram do domínio público. Recordava a be-bedeira como uma aventura infantil e lhe parecia tão diverti-da que contou a Aureliano Segundo, a quem pareceu mais di-vertida ainda. “Se a sua mãe soubesse”, disse a ela, sufocan-do de rir, como dizia sempre que ela lhe fazia uma confidên-cia. Ele lhe havia feito prometer que com essa mesma intimi-dade pô-lo-ia a par do seu primeiro namoro e Meme lhe havia contado que simpatizava com um cabelo-de- fogo norte-americano que tinha vindo passar as férias com os pais. “Que horror”, riu Aureliano Segundo. “Se a sua mãe soubesse.” Mas Meme contou também que o rapaz tinha regressado ao seu país e não dera mais sinal de vida. A sua maturidade de espírito assegurou a paz doméstica. Aureliano Segundo, en-tão, dedicava mais horas a Petra Cotes e, embora já o corpo e a alma não estivessem para farras como as de antes, não per-dia ocasião de promovê-las e desencafuar o acordeão, que já tinha algumas teclas amarradas com cordões de sapatos. Em casa, Amaranta bordava a sua interminável mortalha e Ursu-la se deixava arrastar pela decrepitude até o fundo das trevas, onde a única coisa que continuava sendo visível era o espec-tro de José Arcadio Buendía debaixo cio castanheiro. Fernan-263 da consolidou a sua autoridade. As cartas mensais ao filho José Arcadio não traziam mais sequer uma linha de mentira e só escondia dele a sua correspondência com os médicos in-visíveis, que lhe haviam diagnosticado um tumor benigno no intestino grosso e a estavam preparando para uma interven-ção telepática. Ter-se-ia dito que na cansada mansão dos Buendía havia paz e felicidade rotineira para muito tempo, se a intempestiva morte de Amaranta não tivesse promovido um novo escânda-lo. Foi um acontecimento inesperado. Embora estivesse ve-lha e afastada de todos, ainda parecia firme e reta e com a saúde de ferro que sempre tivera. Ninguém mais soube do seu pensamento, desde a tarde em que recusou definitivamente o Coronel Gerineldo Márquez e se trancou no quarto choran-do. Quando saiu, tinha esgotado todas as suas lágrimas. Não foi vista chorando com a subida ao céu de Remedios, a bela, nem com o extermínio dos Aurelianos, nem com a morte do Coronel Aureliano Buendía, que era a pessoa a quem mais amara neste mundo, embora só o pudesse demonstrar quan-do encontraram o cadáver debaixo do castanheiro. Ela aju-dou a levantar o corpo. Vestiu-o com os seus enfeites de guer-reiro, barbeou-o, penteou-o, e engomou-lhe o bigode melhor do que ele mesmo o fazia nos seus anos de glória. Ninguém pensou que houvesse amor naquele ato, porque estavam acos-tumados com a familiaridade de Amaranta para com os ritos da morte. Fernanda se escandalizava com o fato de ela não entender as relações do catolicismo com a vida, mas unica- mente as suas relações com a morte, como se não fosse uma religião mas um prospecto de convencionalismos funerários. Amaranta estava perdida por demais no labirinto das suas lem-branças para entender aquelàs sutilezas apologéticas. Tinha chegado à velhice com todas as suas saudades vivas. Quando escutava as valsas de Pietro Crespi sentia a mesma vontade de chorar que tivera na adolescência, como se o tempo e as suas punições não tivessem servido para nada. Os rolos de mú-sica que ela mesma jogara no lixo, com o pretexto de que es-tavam apodrecendo com a umidade, continuavam girando e percutindo os marteletes na sua memória. Tinha tentado afogá-264 ~4l los na paixão pantanosa que se permitira com o seu sobrinho Aureliano José e tinha tentado se refugiar na proteção serena e viril do Coronel Gerineldo Márquez, mas não conseguira derrotá-los nem com o ato mais desesperado da sua velhice, quando banhava o pequeno José Arcadio, três anos antes de que o mandassem para o seminário, e o acariciava não como faria uma avó com um neto, mas como teria feito uma mu- lher com um homem, como se contava que faziam as matro-nas francesas, e como ela quisera fazer com Pietro Crespi, aos doze, aos quatorze anos, quando o vira com a sua malha de balé e a varinha mágica com que marcava o compasso do me-trônomo. Ás vezes lhe doía ter deixado com a sua passagem aquele riacho de miséria e às vezes sentia tanta raiva que es-petava os dedos nas agulhas, porém mais lke doía e com mais raiva ficava e mais lhe amargava o fragrante e bichado goia-bal de amor que ia arrastando até a morte.* Do mesmo jeito como o Coronel Aureliano Buendía pensava na guerra sem o poder evitar, Amaranta pensava em Rebeca. Mas enquanto seu irmão tinha conseguido esterilizar as lembranças, ela só tinha conseguido avivá-las. A única coisa que rogou a Deus durante muitos anos foi que não lhe impingisse o castigo de morrer antes de Rebeca. Cada vez que passava pela sua casa e notava os progressos da destruição, se satisfazia com a idéia de que Deus a estava ouvindo. Uma tarde, quando costurava *Tendo sido impossível encontrar uma expressão equivalente em português ao exce- lente “achado” literário de Gabriel García Márquez, feito sobre um emprego regio-nal (Antilhas, Colômbia e El Salvador) do guayaba, preferimos manter a imagem, acrescida desta nota: a goiaba é uma fruta que bicha com muita freqüência e sem apresentar marcas externas que sirvam de aviso à pessoa que come. A partir dai, da conotação afetiva de frustração que sedesenvolveu no seu significado, a palavra passou a ser empregada em sentido figurado, nas regiões da América Hispânica que assina- lamos, com a denotação de mentira, embuste. Gabriel García Mãrquez vai aprovei- tar a expressividade do uso lingüístico popular recriando-o analiticamente, através, principalmente, da adjetivação contrastantefragantey agusanado — não só o dese. quilíbrio entre a caracterização eticamente positiva fragante e a eticamente negativa ogusanado entra na conta da expressividade; também a própria escolha das palavras na série sinonimica vem a intensificar o desequilibrio, já que fragante é um termo que pertence à tradição do clichê literário (“nobre”, portanto), enquanto que agusa-nado é o termo normal da linguagem agrícola sem idealização estética. A hipérbole guayabal intensifica grotescamente a ironia da adjetivação. (N. 1.) 263 na varanda, teve a certeza de que estaria sentada nesse lugar, nessa mesma posição e sob essa mesma luz quando lhe trou-xessem a notícia da morte de Rebeca. Sentou-se para esperá-la como quem espera uma carta e a verdade é que em certa época arrancava botões para tornar a pregá-los de modo a que a ociosidade não tornasse mais longa e angustiosa a espera. Ninguém se deu conta em casa de que Amaranta tecera na-quela época uma linda mortalha para Rebeca. Mais tarde, quando Aureliano Triste contou que a havia visto tranforma-da numa imagem de assombração, com a pele enrugada e umas poucas fibras amareladas no crânio, Amaranta não se surpreen-deu, porque o espectro descrito era igual ao que ela imagina-va há muito tempo. Tinha decidido restaurar o cadáver de Re-beca, dissimular com parafina os estragos do rosto e fazer-lhe uma peruca com o cabelo dos santos. Fabricaria um cadá-ver formoso com a mortalha de linho e um ataúde forrado de veludo com camadas de púrpura e o poria à disposição dos vermes em funerais esplêndidos. Elaborou o plano com tanto ódio que estremeceu com a idéia de que agiria da mesma ma-neira se fosse por amor, mas não se deixou aturdir pela con-fusão, e sim continuou aperfeiçoando os detalhes tão minu-ciosamente que chegou a ser mais do que uma especialista, uma virtuose nos ritos da’morte. A única coisa que não levou em conta no seu plano macabro foi que, apesar das súplicas a Deus, ela podia morrer primeiro que Rebeca. E assim aconte-ceu, realmente. No instante final, porém, Amaranta não se sentiu frustrada, mas pelo contrário libertada de toda a amar- 1 gura, porque a morte lhe concedera o privilégio de se anun- 1 ciar com vários anos de antecedência. Viu-a num meio- dia ar-dente, costurando com ela na varanda, pouco depois de Me-me ir para o colégio. Reconheceu-a imediatamente e não ha-via nada de pavoroso na morte porque era uma mulher vesti-da de azul, com o cabelo comprido, de aspecto um pouco an-tiquado e uma certa semelhança com Pilar Temera na época em que ajudava nos serviços de cozinha. Várias vezes Fernanda esteve presente e não a viu, apesar de ser tão real, tão huma-na, que numa ocasião pediu a Amaranta o favor de enfiar-lhe a linha na agulha. A morte não Lhe disse quando ela ia morrer 266 nem se a sua hora estava marcada para antes da de Rebeca, mas sim lhe ordenou que começasse a tecer a sua própria mor-talha no próximo seis de abril. Autorizou-a a fazê-la tão com-plicada e primorosa quanto quisesse, mas tão honradamente como fizera a de Rebeca, e lhe avisou que haveria de morrer sem dor nem medo nem amargura, ao anoitecer do dia em que a terminasse. Tentando perder a maior quantidade de tempo possível, Amaranta encomendou as meadas de linho e ela mes-ma teceu a fazenda. Fe-lo com tanto cuidado que somente es-te trabalho levou quatro anos. Em seguida, iniciou o borda-do. À medida que se aproximava o fim irremediável, ia com-preendendo que só um milagre permitiria que prolongasse o trabalho para além da morte de Rebeca; mas a própria con-centração lhe proporcionou a calma que lhe faltava para aceitar a idéia de uma frustração. Foi então que entendeu o círculo vicioso dos peixinhos de ouro do Coronel Aureliano Buendía. O mundo se reduziu à superfície da sua pele e o interior ficou a salvo de toda a amargura. Doeu-lhe não ter tido aque-la revelação muitos anos antes, quando ainda seria possível purificar as lembranças e reconstruir o Universo sob uma luz nova e evocar sem estremecer o cheiro de alfazema de Pietro Crespi ao entardecer e resgatar Rebeca do seu ambiente de mi-séria, não por ódio nem por amor, mas pela compreensão sem limite da solidão. O ódio que percebeu certa noite nas pala-vras de Meme não a comoveu porque a ofendesse, mas por-que se sentiu repetida em outra adolescência que parecia tão limpa como devia ter parecido a sua e que, entretanto, já es-tava viciada pelo rancor. Mas na época já era tão profunda a conformidade com o seu destino que nem sequer a inquie-tou a certeza de que estavam fechadas todas as possibilidades de retificação. O seu único objetivo foi terminar a mortalha. Em vez de retardá-la com preciosismos inúteis, como fizera a princípio, apressou o trabalho. Uma semana antes, calcu- lou que daria o último ponto na noite de quatro de fevereiro e, sem revelar o motivo, sugeriu a Meme que antecipasse um concerto de clavicórdio que tinha previsto para o dia seguin-te, mas ela não lhe fez caso. Amaranta procurou então uma maneira de se atrasar quarenta e oito horas e até pensou que 267 41 a morte a estava satisfazendo, porque na noite de quatro de fevereiro uma tempestade desarranjou a rede elétrica. Mas no dia seguinte, às Oito da manhã, deu o último ponto no traba-lho mais primoroso que mulher alguma terminara jamais e anunciou sem o menor dramatismo que morreria ao entarde-cer. Preveniu não só a família como toda a população, por-que Amaranta se metera na cabeça que poderia reparar toda uma vida de mesquinharia com um último favor ao mundo, e pensou que nenhum era melhor do que levar cartas aos mortos. A notícia de que Amaranta Buendía zarpava ao crepús-culo, levando o correio da morte, foi divulgada em Macondo antes do meio-dia e, às três da tarde, já havia na sala um cai-xote cheio de cartas. Os que não quiseram escrever deram a Amaranta recados verbais que ela anotou numa caderneta, com o nome e a data de morte do destinatário. “Não se preocu-pe”, tranqüilizava os remetentes. “A primeira coisa que farei ao chegar será perguntar por ele, e então darei o seu recado.” Parecia uma farsa. Amaranta não revelava nenhuma pertur-bação, nem o mais leve sinal de dor e até parecia um pouco rejuvenescida pelo dever cumprido. Estava tão erecta e esbel-ta como sempre. Não fossem as maçãs do rosto endurecidas e a falta de alguns dentes, pareceria muito menos velha do que era na realidade. Ela mesma ordenou que se pusessem as car-tas numa caixa lacrada e indicou a maneira como deveria ser colocada no túmulo para preservá-la melhor da umidade. De manhã tinha chamado um carpinteiro que lhe tomou as me-didas para o ataúde, de pé, na sala, como se fossem para um vestido. Despertou-se-lhe um tal dinamismo nas últimas ho-ras, que Fernanda pensou que estivesse zombando de todos. Ursula, com a experiência de que os Buendía morriam sem doença, não pôs em dúvida que Amaranta tivesse tido o pres-ságio da morte, mas em todo caso atormentou-a o temor de que na azáfama das cartas e na ansiedade de que chegassem logo, os ofuscados remetentes não a fossem enterrar viva. De modo que se empenhou em esvaziar a casa, brigando aos gri-tos com os intrusos e, às quatro da tarde, tinha conseguido. A essa hora, Amaranta acabava de repartir as suas coisas en-268 tre os pobres e só tinha deixado sobre o severo ataúde de tá-buas sem lixar a muda de roupa e os chinelos simples de pelú-cia que haveria de calçar na morte. Não passou por alto essa precaução, ao recordar que quando o Coronel Aureliano Buen-dia morreu tinham tido que comprar um par de sapatos no-vos, porque só lhe restavam as pantufas que usava na ofici-na. Pouco antes das cinco, Aureliano Segundo veio buscar Me-me para o concerto e se surpreendeu de que a casa estivesse preparada para o funeral. Se alguém parecia vivo a essa hora era a serena Amaranta, a quem o tempo chegara até para ti-rar os calos. Aureliano Segundo e Meme se despediram dela com adeuses de brincadeira e lhe prometeram que no sábado seguinte dariam uma festa de ressurreição. Atraído pelas vo-zes públicas de que Amaranta Buendía estava recebendo car-tas para os mortos, o Padre Antonio Isabel chegou às cinco com o viático e teve que esperar mais de quinze minutos para que a moribunda saísse do banho. Quando a viu aparecer com uma camisola de morim e o cabelo solto nas costas, o decré-pito pároco pensou que fosse uma brincadeira e despachou o coroinha. Pensou, entretanto, em aproveitar a ocasião para confessar Amaranta depois de quase vinte anos de reticência. Aniaranta respondeu, simplesmente, que não precisava de as-sistência espiritual de nenhuma espécie porque tinha a cons-ciência limpa. Fernanda se escandalizou. Sem se importar que a ouvissem, perguntou em voz alta que pecado terrível teria cometido Amaranta para preferir uma morte sacrílega à ver-gonha de uma confissão. Então Amaranta se deitou e obri-gou Úrsula a dar testemunho público da sua virgindade. — Que ninguém tenha ilusões — gritou, para que a ou-visse Fernanda. — Amaranta Buendía se vai desde mundo co-mo veio. Não voltou a se levantar. Recostada em almofadões, co-mo se na verdade estivesse doente, teceu as suas longas tran-ças e enrolou-as sobre as orelhas, exatamente como a morte lhe dissera que deveria estar no ataúde. Em seguida pediu a Ürsula um espelho e pela primeira vez em mais de quarenta anos viu o seu rosto devastado pela idade e pelo martírio e se surpreendeu do quanto se parecia com a imagem mental 269 Je ‘o 1— e que tinha de si mesma. Úrsula compreendeu pelo silêncio da alcova que tinha começado a escurecer. — Despeça-se de Fernanda — suplicou a ela. — Um mi-nuto de reconciliação tem mais mérito do que toda uma vida de amizade. — Já não vale a pena — respondeu Amaranta. Meme não pôde deixar de pensar nela quando acenderam as luzes do improvisado cenário e começou a segunda parte do programa. Na metade da peça alguém lhe deu a notícia no ouvido e o ato foi suspenso. Quando chegou em casa, Aure-liano Segundo teve que abrir caminho aos empurrões por en-tre a multidão para ver o cadáver da velha donzela, feia e de má cor, com a venda negra na mão e envolta na mortalha pri-morosa. Estava exposto na sala junto ao caixote do correio. Úrsula não voltou a se levantar depois das nove noites de Amaranta. Santa Sofia de la Piedad tomou conta dela. Levava-lhe a comida no quarto e a água da bilha para que se lavasse e a mantinha a par de quanto se passava em Macon-do. Aureliano Segundo a visitava com freqüência e lhe levava roupas que ela punha perto da cama, junto com as coisas mais indispensáveis para o viver diário, de modo que em pouco tem-po tinha construído para si um mundo ao alcance da mão. Çonseguiu despertar unt.grande afeto na pequena Amaranta Ursula, que era idêntica a ela, e a quem ensinou a ler. A sua lucidez, a habilidade para se bastar a si mesma faziam pensar que estava naturalmente vencida pelo peso dos cem anos mas, embora fosse evidente que andava mal da vista, ninguém sus-peitou que estivesse completamente cega. Dispunha então de tanto tempo e de tanto silêncio interior para vigiar a vida da casa que foi ela a primeira a perceber a calada angústia de Meme. — Venha cá — disse a ela. — Agora que estamos sozi-nhas, confesse a esta pobre velha o que há contigo. - Meme fugiu da conversa com um riso entrecortado. Ur-sula não insistiu, mas acabou de confirmar as suas suspeitas porque Meme não voltou a visitá-la. Sabia que se arrumava mais cedo do que de costume, que não tinha um instante de sossego enquanto esperava a hora de sair à rua, que passava 270 noites inteiras rolando na cama no quarto contíguo e que a atormentava o voejar de uma borboleta. Em certa ocasião, ouviu-a dizer que ia se encontrar com Aureliano Segundo e Úrsula se surpreendeu de que Fernanda fosse tão curta de ima-ginação que não suspeitasse de nada quando o marido che-gou em casa perguntando pela filha. Era evidente demais que Meme andava com assuntos sigilosos, com compromissos ur-gentes, com ansiedades reprimidas, desde muito antes da noi-te em que Fernanda alvoroçou a casa porque a tinha encon-trado aos beijos com um homem no cinema. A própria Meme andava na época tão ensimesmada que acusou Úrsula de havê-la denunciado. Na realidade, ela se de-nunciara a si mesma. Há muito tempo que deixava à sua pas-sagem um caudal de pistas que teriam despertado o mais ador- mecido e, se Fernanda demorara tanto para descobri-las, foi porque também ela estava obscurecida pelas suas relações se-cretas com os médicos invisíveis. Mesmo assim acabou por per-ceber os profundos silêncios, os sobressaltos intempestivos, as alternativas de humor e as contradições da filha. Empenhou-se numa vigilância dissimulada, mas implacável. Deixou-a es-tar com as suas amigas de sempre, ajudou-a a se vestir para as festas de sábado e jamais lhe fez uma pergunta impertinen-te que pudesse alertá-la. Tinha já muitas provas de que Meme fazia coisas diferentes das que anunciava e, no entanto, não deixou vislumbrar as suas suspeitas na espera da ocasião de-cisiva. Certa noite, Meme avisou que ia ao cinema com o pai. Pouco depois, Fernanda ouviu os foguetes da farra e o incon-fundível acordeão de Aureliano Segundo no rumo da casa de Petra Cotes. Então se vestiu, entrou no cinema e, na penum-bra das cadeiras, reconheceu a filha. A perturbadora emoção do acerto lhe impediu de ver o homem que a estava beijando, mas chegou a perceber a sua voz trêmula no meio dos asso-vios e das gargalhadas ensurdecedoras do público. “Sinto mui-to, amor”, ouviu-o dizer, e tirou Meme da sala sem lhe dizer uma palavra e submeteu-a à vergonha de levá-la pela baru-lhenta Rua dos Turcos e trancou-a à chave no quarto. No dia seguinte, às seis da tarde, Fernanda reconheceu a voz do homem que foi visitá-la. Era jovem, citrino, com uns 271 Í olhos escuros e melancólicos que não a teriam surpreendido tanto se tivesse conhecido os ciganos e um ar de sonho que a qualquer mulher de coração menos rígido teria bastado pa-ra entender os motivos da filha. Vestia um linho muito usa-do, sapatos branco-zinco defendidos desesperadamente por so-las superpostas, e trazia na mão um chapéu de palhinha com-prado no sábado anterior. Em toda a sua vida nunca estivera nem estaria mais assustado do que naquele momento, mas ti-nha uma dignidade e um domínio que o punham a salvo da humilhação e uma excelência legítima que só fracassava nas mãos calosas e nas .unhas lascadas pelo trabalho rude. A Fer-nanda, entretanto, bastou vê-lo uma vez para intuir a sua con-dição de trabalhador braçal. Percebeu que usava a sua única roupa de domingo e que debaixo da camisa tinha a pele car-comida pela sarna da companhia bananeira. Não permitiu que falasse. Não permitiu sequer que ele passasse da porta, que um momento depois teve de fechar, porque a casa estava cheia de borboletas amarelas. — Vá embora — disse a ele. — Não tem nada que fazer no meio de gente decente. Chamava-se Mauricio Babilonia. Tinha nascido e cresci-do em Macondo e era aprendiz de mecânico nas oficinas da companhia bananeita. Meme o conhecera por acaso, numa tarde em que fora com Patricia Brown buscar o automóvel para dar um passeio pelas plantações. Como o chofer estava doente, encarregaram-no de levá-las e Meme pôde por fim satisfazer a sua vontade de se sentar junto ao volante para observar de perto o sistema de manejo. Ao contrário do chofer titular, Mauricio Babilonia lhe fez uma demonstração prática. Isso foi na época em que Meme come-çou a freqüentar a casa do Sr. Brown e ainda se considerava indigno de damas dirigir um automóvel. De modo que se con-formou com a informação teórica e não voltou a ver Mauri-cio Babilonia por vários meses. Mais tarde haveria de recor-dar que durante o passeio chamou-lhe a atenção a sua beleza varonil, salvo a brutalidade das mãos, mas depois tinha co-mentado com Patricia Brown o mal-estar que lhe produzira a sua segurança um pouco altiva. No primeiro sábado em que 272 foi ao cinema com seu pai, voltou a ver Mauricio Babilonia com o seu costume de linho, sentado a pouca distância deles, e percebeu que ele se desinteressava do filme para se virar pa-ra olhá-la, não tanto para vê-la como para que ela notasse que ele a estava olhando. Meme se aborreceu com a vulgaridade daquele sistema. Finalmente, Mauricio Babilonia se aproxi-mou para cumprimentar Aureliano Segundo e só então Me-me soube que se conheciam, porque ele tinha trabalhado na primitiva instalação elétrica de Aureliano Triste e tratava seu pai com uma atitude de subalterno. Essa comprovação aliviou-a do desprazer que lhe causava a sua altivez. Não se tinham visto a sós, nem se tinham dito uma palavra diferente do cum-primento, na noite em que sonhou que ele a salvava de um naufrágio e ela não experimentava nenhum sentimento de gra-tidão e sim de raiva. Era como lhe ter dado uma oportunida-de que ele desejava, sendo que Meme queria o contrário, não só com Mauricio Babilonia como também com qualquer ou- tro homem que se interessasse por ela. Por isso ficou tão in-dignada que depois do sonho, em vez de detestá-lo, teria ex-perimentado uma urgência irresistível de vê-lo. A ansiedade se fez mais intensa no correr da semana e no sábado já era tão premente que teve que fazer um esforço enorme para que Mauricio Babilonia não notasse, ao cumprimentá-la no cine-ma, que o coração lhe saía pela boca. Ofuscada por uma con-fusa sensação de prazer e raiva, estendeu-lhe a mão pela pri-meira vez, e só então Mauricio Babilonia se permitiu apertá-la. Meme chegou, numa fração de segundo, a se arrepender do impulso mas o arrependimento se transformou imediata-mente numa satisfação cruel, ao comprovar que também a mão dele estava suada e gelada. Nessa noite, compreendeu que não teria um instante de sossego enquanto não demonstrasse a Mauricio Babilonia quão vã era a sua aspiração, e passou a semana voej ando em torno dessa ansiedade. Recorreu a toda espécie de artimanhas inúteis para que Patricia Brown a le-vasse para buscar o automóvel. Por último, valeu-se do cabelo-de-fogo norte-americano, que por essa época estava passan-do as férias em Macondo e, com o pretexto de conhecer os novos modelos de automóveis, fez-se levar às oficinas. Desde 273 o momento em que o viu, Meme deixou de enganar a si mes-ma, e compreendeu que o que acontecia na realidade era que não podia mais suportar o desejo de estar a sós com Mauricio Babilonia e se indignou com a certeza de que este compreen-dera isso ao vê-la chegar. — Vim ver os novos modelos — disse Meme. — Ë um bom pretexto — disse ele. Meme percebeu que estava se queimando na luz da sua altivez e procurou desesperadamente uma maneira de humilhá-lo. Mas ele não lhe deu tempo. “Não se assuste”, disse em voz baixa. “Não é a primeira vez que uma mulher fica louca por um homem.” Sentiu-se tão desamparada que abandonou a oficina sem ver os novos modelos e passou a noite de extre-mo a extremo rolando na cama e chorando de indignação. O cabelo-de-fogo norte-americano, que realmente começava a lhe interessar, pareceu-lhe um bebê de fraldas. Foi então que entendeu as borboletas amarelas que precediam as aparições de Mauricio Babilonia. Vira-as antes, sobretudo na oficina me-cânica, e pensara que estavam fascinadas pelo cheiro da pin-tura. Alguma vez tê-las-ia sentido voejar sobre a sua cabeça -na penumbra do cinema. Mas quando Mauricio Babilonia co-meçou a persegui-la como um espectro que só ela identificava na multidão, compreendeu que as borboletas amarelas tinham alguma coisa que ver com ele. Mauricio Babilonia estava sem-pre na platéia dos concertos, no cinema, na missa, e ela não necessitava vê-lo para descobri-lo, porque o indicavam as bor-boletas. Uma vez, Aureliano Segundo se impacíentou tanto com o sufocante movimento de asas que ela sentiu o impulso de confiar-lhe o seu segredo como lhe havia prometido, mas o instinto lhe indicou que desta vez ele não ia rir como de cos-tume: “Que diria a s~ia mãe se soubesse.” Certa manhã, en-quanto podavam as rosas, Fernanda lançou um grito de es-panto e quis tirar Meme do lugar em que estava e que era o mesmo lugar do jardim de onde Remedios, a bela, subira aos 1 céus. Tivera por um instante a impressão de que o milagre ia se repetir na sua filha, porque tinha-se perturbado com um repentino movimento de asas. Eram as borboletas. Meme as viu como se tivessem nascido de repente na luz e seu coração 274 deu um baque. Nesse momento, entrava Mauricio Babilonia com um pacote que, segundo disse, era um presente de Patri-cia Brown. Meme engoliu o rubor, assimilou a perturbação, e até conseguiu um sorriso natural para pedir-lhe o favor de colocá-lo no parapeito, porque tinha os dedos sujos da terra. A única coisa que Fernanda notou no homem que poucos me-ses depois haveria de expulsar de casa sem se lembrar de que o tivesse visto alguma vez foi a textura biliosa da pele. — É um homem muito esquisito — disse Fernanda. —Está escrito na testa que vai morrer. Meme pensou que sua mãe tinha ficado impressionada com as borboletas. Quando acabaram de podar o roseiral, la-vou as mãos e levou o pacote para o quarto para abri-lo. Era uma espécie de brinquedo chinês; composto de cinco caixas concentricas e, na última, um cartão laboriosamente desenhado por alguém que mal sabia escrever: A gente se vê sábado no cinema. Meme sentiu o terror tardio de que a caixa tivesse es-tado tanto tempo no parapeito, ao alcance da curiosidade de Fernanda, e, embora a lisonjeasse a audácia e o engenho de Mauricio Babilonia, comoveu-a a sua ingenuidade de esperar que ela não faltasse ao encontro. Meme já sabia que Aurelia-no Segundo tinha um compromisso no sábado à noite. Entre-tanto, o fogo da ansiedade abrasou-a de tal modo no correr da semana que no sábado convenceu o pai a deixá-la sozinha no cinema e voltar para buscá-la no final da sessão. Uma bor-boleta noturna voejou sobre a sua cabeça enquanto as luzes estiveram acesas. E então aconeceu. Quando as Luzes se apa- garam, Mauricio Babilonia se sentou do seu lado. Meme se sentiu debater num pântano de desespero, do qual só poderia ser resgatada, como acontecera no sonho, por aquele homem cheirando a óleo de motor que mal distinguia na penumbra. — Se você não tivesse vindo — ele disse — não teria me visto nunca mais. Meme sentiu o peso da sua mão no joelho e soube que ambos chegavam naquele instante ao outro lado do desamparo. — O que me choca em você — sorriu — é que sempre diz exatamante o que não devia dizer. Ficou louca por ele. Perdeu o sono e o apetite e se afun-275 r dou tão profundamente na solidão que até o pai se transfor-mou num estorvo para ela. Elaborou um intrincado nó de com-promissos falsos para desorientar Fernanda, perdeu de vista as amigas, pulou por cima dos convencionalismos para encontrar-se com Mauricio Babilonia a qualquer hora e em qualquer parte. No princípio, incomodava-a a sua rudeza. Na primeira vez ëm que se viram a sós, nos prados desertos atrás da oficina mecânica, ele a arrastou sem misericórdia a um es-tado animal que a deixou extenuada. Demorou algum tempo para se dar conta de que também aquela era uma forma da ternura e foi então que perdeu o sossego e não vivia senão pa-ra ele, transtornada pela ansiedade de se fundir no seu entor-pecedor bafo de óleo esfregado com água sanitária. Pouco an-tes da morte de Amaranta, tropeçou de repente com um espa-ço de lucidez dentro da loucura e tremeu diante da incerteza do futuro. Então ouviu falar de uma mulher que fazia prog-nósticos pelas cartas e foi visitá-la em segredo. Era Pilar Ter-nera. Desde que esta a viu entrar, soube dos recônditos moti-vos de Meme. “Sente-se”, disse- lhe. “Eu não preciso do ba-ralho para averiguar o futuro de um Buendia.” Meme igno-rava, e ignorou sempre, que aquela pitonisa centenária era sua bisavó. Tampouco teria acreditado, depois do agressivo rea-lismo com que ela-lhe revelou que a ansiedade do namoro não encontrava repouso a não ser na cama. Era o mesmo ponto de vista de Mauricio Babilonia, mas Meme se recusava a lhe dar crédito, pois no fundo supunha que ele estava inspirado em algum mau critério de operário braçal. Ela pensava então que uma forma de amor derrotava a outra, porque fazia par-te da índole dos homens repudiar a fome uma vez satisfeito o apetite. Pilar Temera não só dissipou o erro como também lhe ofereceu a velha cama de lona onde ela concebera Arca-dio, o avô de Meme, e onde concebera depois a Aureliano Jo- sé. Ensinou-lhe, além.disso, como prevenir a concepção inde-sejável mediante a vaporização de cataplasmas de mostarda e deu receitas de beberagens que em casos de contratempo fa-ziam expulsar “até os remorsos de consciencia”. Aquela en- trevista infundiu em Meme o mesmo sentimento de valentia que experimentara na tarde da bebedeira. A morte de Ama-276 ranta, entretanto, obrigou-a a adiar a decisão. Enquanto du-raram as nove noites, ela não se afastou um só instante de Mau-ricio Babilonia, que andava confundido com a multidão que invadira a casa. Vieram logo o luto prolongado e o enclausu-ramento obrigatório e se separaram por algum tempo. Foram dias de tanta agitação interior, de tanta ansiedade irrepremí-vel e tantos desejos reprimidos, que na primeira tarde em que Meme conseguiu sair foi diretamente à casa de Pilar Temera. Entregou-se a Mauricio Babilonia sem resistência, sem pudor, sem formalismos e com uma vocação tão fluida e uma intui-ção tão sábia que um homem mais desconfiado que o seu po-deria confundir com uma requintada experiência. Amaram-se duas vezes por semana durante mais de três meses, protegi-dos pela cumplicidade inocente de Aureliano Segundo, que acreditava sem malícia as meias- liberdades da filha, só para vã-la liberada da rigidez da mãe. Na noite em que Fernanda os surpreendeu no cinema, Aureliano Segundo se sentiu an-gustiado pelo peso da consciência e visitou Meme no quarto onde a trancara Fernanda, confiando em que ela se desafoga-ria com as confidências que lhe estava devendo. Mas Meme se negou a tudo. Estava tão segura de si mesma, tão aferrada à sua solidão, que Aureliano Segundo teve a impressão de que já não existia nenhum vínculo entre eles, que a camaradagem e a cumplicidade não eram mais do que uma ilusão do passa-do. Pensou em falar com Mauricio Babilonia, acreditando que a sua autoridade de antigo patrão fá-lo-ia desistir dos seus pro-pósitos, mas Petra Cotes convenceu-o de que aquilo era as-sunto de mulher, de modo que ficou flutuando num limbo de indecisão, e mal sustentado pela esperança de que a clausura terminasse com as angústias da filha. Meme não deu nenhuma amostra de aflição. Pelo con-trário, do quarto contíguo Úrsula percebeu o ritmo sossega-do do seu sono, a serenidade dos seus afazeres, a ordem das suas refeições e a boa saúde da sua digestão. A única coisa que intrigou Úrsula depois de quase dois meses de castigo foi que Meme não tomasse banho de manhã, como todos faziam, mas às sete da noite. Uma vez pensou em preveni-la contra os escorpiões, mas Meme era tão esquiva com ela, pela con-277 vicção de que a tinha denunciado, que preferiu não la com impertinências de tataravó. As borboletas amarelas vadiam a casa desde o entardecer. Todas as noites, ao sair ‘banheiro, Meme encontrava Fernanda desesperada, matando borboletas com a bomba de inseticida. “Isto é uma desgra• ça”, dizia. “Toda a vida me disseram que as borboletas no. turnas chamam o azar.” Certa noite, enquanto Meme no banheiro, Fernanda entrou no seu quarto por acaso via tantas borboletas que mal se podia respirar. Apanhou pano qualquer para espantá-las e seu coração gelou de pavc~ ao relacionar os banhos noturnos da filha com os cataplas• mas de mostarda que rolaram pelo chão. Não esperou por momento oportuno, como fizera da primeira vez. No dia guinte, convidou para almoçar o novo alcaide que, como -tinha descido do páramo, e pediu a ele que ordenasse uma guar da noturna para o quintal, porque tinha a impressão de estavam roubando as galinhas. Nessa noite, a guarda Mauricio Babilonia quando levantava as telhas para entrar banheiro onde Meme o esperava, nua e tremendo de amor entre os escorpiões e as borboletas, como havia feito quas todas as noites dos últimos meses. Um projétil incrustado coluna vertebral reduziu-o à cama pelo resto da vida. Morrei de velho na solidão, -sem uma queixa, sem um protesto, uma só tentativa de deslealdade, atormentado pelas ças e pelas borboletas amarelas que não lhe concederam” instante de paz e publicamente repudiado como ladrão galinhas. 278 OS ACONTECIMENTOS que haveriam de dar o golpe de morte em Macondo começavam a se vislumbrar quando trouxeram para casa o filho de Meme Buendía. A situação pública esta-va na época tão incerta que ninguém tinha o espírito disposto para se ocupar de escândalos particulares, de modo que Fer-nanda contou com um ambiente propício para manter a criança escondida como se não houvese existido nunca. Teve que receba-la porque as circunstâncias em que a trouxeram não tornavam possível a recusa. Teve que suportá-la contra a von-tade pelo resto da vida, porque na hora da verdade faltou a coragem para cumprir a íntima determinação de afogá-la na 279 caixa-dágua do banheiro. Trancou-a na antiga oficina do Co-ronel Aureliano Buendía. A Santa Sofía de la Piedad conse-guiu convencer de que o havia encontrado flutuando numa cestinha. Ursula haveria de morrer sem saber da sua origem. A pequena Amaranta Úrsula, que entrou na oficina uma vez, quando Fernanda estava alimentando o menino, também acre-ditou na versão da cestinha flutuante. Aureliano Segundo, de-finitivamente distanciado da esposa pela forma irracional com que esta conduzira a tragédia de Meme, não soube da existên-cia do neto a não ser três anos depois que o trouxeram para casa, quando o menino fugiu do cativeiro por um descuido de Fernanda e apareceu na varanda por uma fração de segun-do, nu, com os cabelos emaranhados e com um impressionante sexo de carúnculas de peru, como se não fosse uma criatura humana e sim a definição enciclopédica de um antropófago. Fernanda não contava com aquele mal passo do seu in-corrigível destino. O menino foi como a volta de uma vergo-nha que ela acreditava ter desterrado para sempre de casa. Mal levaram Mauricio Babilonia com a espinha dorsal fraturada, Fernanda já havia concebido até o detalhe mas ínfimo de um plano destinado a eliminar qualquer vestígio do opróbrio. Sem consultar o marido, fez no dia seguinte a sua bagagem, meteu numa maleta as trê~ mudas que a filha podia necessitar e foi buscá-la no quarto, meia hora antes da chegada do trem. — Vamos, Renata — disse a ela. Não deu nenhuma explicação. Meme, por outro lado, não a esperava nem a queria. Não só ignorava para onde iam co-mo também tanto fazia se a tivessem levado para o matadou-ro. Não voltara a falar, nem o faria pelo resto da vida, desde que ouvira o tiro no quintal e o simultâneo uivo de dor de Mau-ricio Babilonia. Quando a mãe lhe ordenou sair do quarto, não se penteou nem lavou o rosto, e subiu no trem como uma sonâmbula, sem perceber sequer as borboletas que continua-vam a acompanhá-la. Fernanda nunca soube, nem se deu o trabalho de averiguar, se o seu silêncio pétreo era uma deter-minação da vontade ou se tinha ficado muda pelo impacto da tragédia. Meme mal se deu conta da viagem através da antiga 1 região encantada. Não viu as sombrias e intermináveis plan- 1 280 tações de banana de ambos os lados da linha. Não viu as ca-sas brancas dos ianques, nem os seus jardins áridos de poeira e calor, nem as mulheres de bermudas e blusas de listras azuis que jogavam cartas nas varandas. Não viu os carros de boi carregados de cachos nas trilhas empoeiradas. Não viu as don-zelas que pulavam como savelhos nos rios transparentes para deixar nos passageiros do trem a amargura dos seios esplên-didos, nem os barracos aglomerados e miseráveis dos traba-lhadores onde voejavam as borboletas amarelas de Mauricio Babilonia e em cujas portas havia crianças verdes e esquáli-das sentadas nos peniquinhos e mulheres grávidas que grita-vamn impropérios à passagem do trem. Aquela visão fugaz, que para ela era uma festa quando voltava do colégio, passou pe-lo coração de Meme sem avivá-lo. Não olhou pela janela nem sequer quando acabou a umidade ardente das plantações e o trem passou pela planície de amapolas onde ainda estava o esqueleto carbonizado do galeão espanhol e saiu em seguida para o mesmo ar diáfano e para o mesmo mar espumoso e sujo onde quase um século antes tinham fracassado as ilusões de José Arcadio Buendía. Às cinco da tarde, quando chegaram à estação final do pântano, desceu do trem porque Fernanda o fez. Subiram num carrinho que parecia um morcego enorme puxado por um ca-valo asmático e atravessaram a cidade desolada, em cujas ruas intermináveis e cortadas pelo salitre ressoava um exercício de piano igual ao que escutara Fernanda nas sestas da adolescên-cia. Embarcaram num navio fluvial cuja roda de madeira fa-zia um barulho de conflagração e cujas lâminas de ferro car-comidas pelo óxido reverberaram como a boca de um forno. Meme se trancou no camarote. Duas vezes por dia Fernanda deixava um prato de comida junto à cama e duas vezes por dia o levava intacto, não porque Meme estivesse resolvida a morrer de fome, mas porque o simples cheiro dos alimentos a enjoava, e o seu estômago devolvia até água. Nem ela mes-ma sabia na época que a sua fertilidade tinha enganado os va-pores de mostarda, assim como Fernanda não o soube até qua- se um ano depois, quando trouxeram o menino. No camarote sufocante, transtornada pela vibração das paredes de ferro e 281 1 pela exalação insuportável do lodo revolvido pela roda da em-’barcação, Meme perdeu a conta dos dias. Tinha passado já muito tempo quando viu a última borboleta amarela sendo destroçada nas pás do ventilador e admitiu como uma verda-de irremediável que Mauricio Babilonia tinha morrido. En-tretanto, não se deixou vencer pela resignação. Continuava pensando nele durante a penosa travessia, a lombo de burro, do ermo alucinante onde Aureliano Segundo se perdera quando procurava a mulher mais bela que havia existido sobre a ter-ra, e quando atravessaram a cordilheira pelas trilhas de índio e entraram na cidade lúgubre em cujos despenhadeiros de pe-dra ressoavam os bronzes funerários de trinta e duas igrejas. Nessa noite, dormiram na abandonada mansão colonial, so-bre as tábuas que Fernanda pôs no chão de um aposento in-vadido pelo mato e cobertas com trapos de cortinas que ar-rancaram das janelas e que se desfaziam a cada virada do cor-po. Meme soube onde estavam porque no espanto da insônia viu passar o cavaleiro vestido de negro que numa distante vês-pera de Natal haviam trazido para casa dentro de um cofre de chumbo. No dia seguinte, depois da missa, Fernanda conduziu-a para um edifício sombrio que Meme reconheceu imediatamente pelas evocações que sua mãe costumava fazer do convento onde a!tinham educado para rainha, e então com-preendeu que chegara ao fim da viagem. Enquanto Fernanda falava com alguém no escritório contíguo, ela ficou num sa-lão axadrezado com grandes óleos de arcebispos coloniais, tre-mendo de frio porque ainda trazia um vestido de etamine com florezinhas negras e os duros borzeguins inchados pelo gelo do páramo. Estava de pé no centro do salão, pensando em Mauricio Babilonia sob o jato amarelo dos vitrais, quando saiu do escritório uma noviça muito bonita que trazia a sua male-ta com as três mudas de roupa. Ao passar junto de Meme estendeu-lhe a mão sem se deter. — Vamos, Renata — disse. Meme tomou-lhe a mão e se deixou levar. A última vez que Fernanda a viu, tentando acertar o passo com a noviça, acabava de se fechar detrás dela a grade ae ferro da clausura. Ainda pensava em Mauricio Babilonia, no seu cheiro de óleo 282 e no seu âmbito de borboletas, e continuaria pensando nele todos os dias de sua vida até a remota madrugada de outono em que morreria de velhice, com o nome trocado e sem ter dito nunca uma só palavra, num tenebroso hospital de Cracóvia. Fernanda regressou a Macondo num trem protegido por guardas armados. Durante a viagem percebeu a tensão dos pas-sageiros, o aparato militar nos povoados da linha e o ar rare-feito pela certeza de que alguma coisa de grave ia acontecer, mas careceu de informação enquanto não chegou a Macondo e lhe contaram que José Arcadio Segundo estava incitando àgreve os trabalhadores da companhia bananeira. “Era só o que faltava”, resmungou Fernanda. “Um anarquista na fa-mília.” A greve estourou duas semanas depois e não teve as conseqüências dramáticas que se temiam. Os operários aspi-ravam a que não os obrigassem a cortar e embarcar banana aos domingos, e o pedido pareceu tão justo que até o Padre Antonio Isabel intercedeu em seu favor, porque o achou de acordo com a Lei de Deus. O triunfo da ação, assim como de outras que se promoveram nos meses seguintes, tirou do anonimato o descolorido José Arcadio Segundo, de quem se costumava dizer que só tinha servido para encher o povoado de putas francesas. Com a mesma decisão impulsiva com que vendeu seus galos de briga para fundar uma empresa de nave- gação desatinada, renunciou ao cargo de capataz de grupo da companhia bananeira e tomou o partido dos trabalhadores. Muito em breve foi apontado como agente de uma conspira-ção internacional contra a ordem pública. Uma noite, no meio de uma semana obscurecida por boatos sombrios, escapou por milagre de quatro tiros de revólver que lhe foram endereça-dos por um desconhecido, quando saía de uma reunião secre-ta. Foi tão tensa a atmosfera dos meses seguintes que até Ur-sula a percebeu no seu refúgio de trevas e teve a impressão de estar vivendo de novo os tempos incertos em que seu filho Aureliano carregava no bolso as pílulas homeopáticas da sub-versão. Tentou falar com José Arcadio Segundo para fazê-lo conhecer esse precedente, mas Aureliano Segundo informou-a de que desde a noite do atentado ignorava-se o seu paradeiro. 283 — Igual a Aureliano — exclamou Úrsula. — É como se o mundo estivesse dando voltas. Fernanda permaneceu imune à incerteza desses dias. Ca-recia de contatos com o mundo exterior, desde a violenta dis-cussão que teve com o marido por ter determinado a sorte de Meme sem o seu consentimento. Aureliano Segundo estava disposto a resgatar a filha, com a polícia se fosse necessário, mas Fernanda fê- lo ver os papéis em que se provava que ti-nha ingressado na clausura pela própria vontade. Realmente Meme os havia assinado quando já estava do outro lado da grade de ferro e o fez com o mesmo desdém com que se dei-xara conduzir. No fundo, Aureliano Segundo não acreditou na legitimidade das provas, assim como nunca tinha acredita-do que Mauricio Babilonia tivesse entrado no quintal para rou-bar galinhas, mas ambos os recursos serviram para tranqüili-zar a sua consciência e pôde então voltar sem remorsos para a sombra de Petra Cotes, onde reiniciou as farras ruidosas e as comilanças desenfreadas. Alheia à inquietude do povoado, surda aos terríveis prognósticos de Ürsula, Fernanda deu os últimos toques no seu plano consumado. Escreveu uma ex-tensa carta a seu filho José Arcadio, que já ia receber as pri-meiras ordens, e nela lhe comunicou que sua irmã Renata ti-nha expirado na paz dó Senhor, em consequência da febre ama-rela. Em seguida, deixou Amaranta Ursula aos cuidados de Santa Sofía de la Piedad e se dedicou a organizar a sua cor-respondência com os médicos invisíveis, atrapalhada pelo ca-so de Meme. A primeira coisa que fez foi marcar a data defi- nitiva para a adiada intervenção telepática. Mas os médicos invisíveis responderam que não era prudente enquanto per-sistisse o estado de agitação social em Macondo. Ela estava tão apressada e tão mal informada que explicou a eles em ou-tra carta que não havia tal estado de agitação e que tudo era fruto das loucuras de um cunhado seu, que andava com a ve-neta sindical, como padecera em outros tempos de brigas de galos e de navegação. Ainda não tinham entrado em acordo, na calorenta quarta-feira em que bateu na porta de casa uma freira anciã que trazia uma cestinha pendurada no braço. Ao abrir, Santa Sofía de la Piedad pensou que fosse um presente 284 e tentou tirar-lhe a cestinha coberta com um primoroso guar-de renda. Mas a freira impediu, porque tinha instru-para entregá-la pessoalmente, e na reserva mais estrita, LJ. Fernanda del Carpio de Buendía. Era o filho de Meme. - antigo diretor espiritual de Fernanda lhe explicava numa ta que tinha nascido dois meses antes e que se tinham per-mitido batizá-lo com o nome de Aureliano, como o avô, por-que a mãe não despregara os lábios para expressar a sua von-tade. Fernanda se sublevou ultimamente contra aquela zom-baria do destino, mas teve forças para dissimular diante da freira. — Diremos que o encontramos flutuando na cestinha —sorriu. — Ninguém vai acreditar — disse a freira. — Se acreditaram nas Sagradas Escrituras — replicou Fernanda — não vejo por que não vão acreditar em mim. A freira almoçou em casa, enquanto esperava o trem de volta e, de acordo com a discrição que tinham exigido dela, não voltou a mencionar a criança, mas Fernanda viu nela uma testemunha indesejável da sua vergonha e lamentou que se hou-vesse banido o costume medieval de enforcar o mensageiro de más notícias. Foi então que decidiu afogar a criatura na caixa-d’água, logo que a freira fosse embora, mas o coração não agüentou e preferiu esperar com paciência até que a infinita bondade de Deus a libertasse do estorvo. O novo Aureliano tinha completado um ano quando a tensão pública estourou sem neühum aviso. José Arcadio Se-gundo e Outros dirigentes sindicais que tinham permanecido até então na clandestinidade apareceram intempestivamente num fim de semana e promoveram manifestações nos povoa-dos da zona bananeira. A polícia se conformou com manter a ordem, apenas. Mas na noite de segunda-feira, os dirigen- tes foram tirados das suas casas e mandados com grilhões de cinco quilos nos pés para a prisão da capital da província. Entre eles levaram José Arcadio Segundo e Lorenzo Gavilán, um coronel da revolução mexicana, exilado em Macondo, que dizia ter sido testemunha do heroismo do seu compadre Artemio Cruz. Entretanto, em menos de três meses já estavam em li-285 berdade, porque o Governo e a companhia bananeira não con• seguiram entrar em acordo sobre quem deveria alimentá-los. na prisão. A revolta dos trabalhadores se baseava desta vez na insalubridade das vivendas, na farsa dos serviços médicos e na iniqüidade das condições de trabalho. Afirmavam, além• disso, que não eram pagos com dinheiro de verdade, e sim com vales que só serviam para comprar presunto de Virgínia nos, armazéns da companhia. José Arcadio Segundo foi preso por-que revelou que o sistema dos vales era um recurso da com-, panhia para financiar os seus navios fruteiros que, se não fosse pelo comércio dos armazéns, teriam que voltar vazios de No-va Orleans até os portos de embarque da banana. As outras acusações eram do domínio público. Os médicos da compa-nhia não examinavam os doentes; apenas os punham em fila indiana diante dos ambulatórios, e uma enfermeira lhes colo. cava na língua uma pílula da cor da pedra-lipes — tivessem impaludismo, blenorragia ou prisão de ventre. Era uma tera-pêutica tão generalizada que as crianças entravam na fila vá-rias vezes e, em vez de engolir as pílulas, levavam-nas para casa, para marcar com elas os números cantados no jogo de víspora. Os operários da companhia estavam amontoados em barracos miseráveis. Os engenheiros, em vez de construir la- 1 trinas, traziam para-us acampamentos, no Natal, um reserva-do portátil para cada cinqüenta pessoas e faziam demonstra-~ ções públicas de como utilizá- los para que durassem mais. Os decrépitos advogados vestidos de negro, que em outros tem- pos tinham assediado o Coronel Aureliano Buendía e que agora eram procuradores da companhia bananeira, desvirtuavam a função com arbitrariedades que pareciam passes de mágica. Quando os trabalhadores redigiram uma lista de pedidos unâ-, nime, muito tempo se passou sem que pudessem notificar ofi- 4 cialmente a companhia bananeira. Imediatamente após ter co-nhecido a resolução, o Sr. Brown enganchou no Lrem o seu suntuoso vagão de vidro e desapareceu de Macondo junto com os representantes mais conhecidos da sua empresa. Entretan-to, vários operários encontraram um deles no sábado seguin-te num bordel e o fizeram assinar uma cópia do ofício de rei-vindicações quando estava nu com a mulher que se prestou’ 286 a levá-lo para a armadilha. Os enlutados advogados demons-traram em juízo que aquele homem não tinha nada que ver com a companhia e, para que ninguém pusesse em dúvida os seus argumentos, fizeram-no prender como vigarista. Mais tar-de, o Sr. Brown foi surpreendido viajando incógnito num va-gão de terceira classe e lhe fizeram assinar outra cópia da lista de reivindicações. No dia seguinte, compareceu diante dos juí-zes com o cabelo pintado de preto e falando um castelhano fluente. Os advogados demonstraram que não era o Sr. Jack Brown, superintendente da companhia bananeira e nascido em Prattville, Alabama, mas um inofensivo vendedor de plantas medicinais, nascido em Macondo e ali mesmo batizado com o nome de Dagoberto Fonseca. Pouco depois, diante de uma nova tentativa dos trabalhadores, os advogados exibiram em lugares públicos o atestado de óbito do Sr. Brown, autentica-do por cônsules e chanceleres, e no qual se dava fé de que no último nove de junho ele tinha sido atropelado em Chicago por um carro de bombeiros. Cansados daquele delírio herme- nêutico, os trabalhadores repudiaram as autoridades de Ma-condo e subiram com as suas queixas aos tribunais supremos. Foi lá que os ilusionistas do direito demonstraram que as re-clamações careciam de toda validade, simplesmente porque a companhia bananeira não tinha, nem tinha tido nunca nem teria jamais, trabalhadores a seu serviço, mas sim que os re-crutava ocasionalmente e em caráter temporário. De modo que se dissolveu a patranha do presunto de Virgínia, das pílulas milagrosas e dos reservados natalinos, e se estabeleceu por sen-tença do tribunal, e se proclamou em decretos solenes, a ine-xistência dos trabalhadores. A grande greve estourou. Os cultivos ficaram pelo meio, a fruta apodreceu no pé e os trens de cento e vinte vagões fi-caram parados nos desvios. Os operários ociosos atulhavam as aldeias. A Rua dos Turcos reverberou num sábado de mui-tos dias e no salão de bilhar do Hotel de Jacob foi preciso or-ganizar turnos de vinte e quatro horas. Lá estava José Arca-dio Segundo, no dia em que se anunciou que o exército tinha sido encarregado de restabelecer a ordem pública. Embora não fosse homem de presságios, a notícia foi para ele como um 287 anúncio de morte que tinha esperado desde a manhã distant em que o Coronel Gerineldo Márquez lhe permitira ver um fuzilamento. Entretanto, o mau agouro não alterou a sua gra vidade. Fez a jogada que tinha prevista e não errou a caram-bola. Pouco depois, as descargas de bumbo, os latidos do cla-rim, os gritos e o tropel do povo lhe indicaram que não s6 a partida de bilhar, mas também a calada e solitária partida que jogava consigo mesmo desde a madrugada da execução, tinham, por fim, terminado. Então, chegou até a rua e viu. Eram três regimentos cuja marcha pautada por tambor de gal~s fazia a terra trepidar. O seu resfolegar de dragão multicéfalo impregnou de um vapor fedorento a claridade do meio-dia. Eram pequenos, maciços, brutos. Suavam com suor de cava-lo e tinham um cheiro de carne viva macerada pelo sol e a im-pavidez taciturna e impenetrável dos homens do páramo. Em-bora demorassem mais de uma hora a passar, davam a im-pressão de ser uns poucos pelotões andando em círculo, por-que todos eram idênticos, filhos da mesma mãe, e todos su-portavam com igual imbecilidade o peso das mochilas e dos cantis, e a vergonha dos fuzis com as baionetas caladas, e a ferida da obediência cega e o sentido da honra. Ursula os ou-viu passar do seu leito de trevas e levantou a mão com os de-dos cruzados. Santa Sofia de la Piedad existiu por um instan- 1 te, inclinada sobre a toalha bordada que acabava de passai a ferro, e pensou em seu filho, José Arcadio Segundo, que viu passar, pela porta do Hotel de Jacob, sem se perturbar, os últimos soldados. A lei marcial facultava ao exército assumir funções de ár-bitro da controvérsia, mas não se fez nenhuma tentativa de conciliação. Imediatamente após se exibirem em Macondo, os soldados puseram de lado os fuzis, cortaram e embarcaram as bananas e movimentaram os trens. Os trabalhadores, que até então se haviam conformado com esperar, atiraram-se ao mato sem mais armas que os seus facões de trabalho, e come-çaram a sabotar a sabotagem. lncendiaram fazendas e arma-zéns, destruíram os trilhos para impedir o trânsito dos trens, que começavam a abrir caminho a fogo de metralhadora, e cortaram os fios do telégrafo e do telefone. Os canais de irri-288 gação tingiram-se de sangue. O Sr. Brown, que estava vivo no galinheiro eletrificado, foi tirado de Macondo com a sua famfiia e as de Outros compatriotas seus, e conduzido para ter-ritório seguro sob a proteção do exército. A situação ameaça- va evoluir para uma guerra civil desigual e sangrenta quando as autoridades fizeram um apelo aos trabalhadores para que se concentrassem em Macondo. O apelo anunciava que o chefe civil e militar da província chegaria na sexta-feira seguinte, dis-posto a interceder no conflito. José Arcadio Segundo estava entre a multidão que se con-centrou na estação desde a manhã de sexta-feira. Tinha parti-cipado de uma reunião de dirigentes sindicais e tinha sido en-carregado, junto com o Coronel Gavilán, de se confundir com a multidão e orientá-la segundo as circunstâncias. Não se sentia bem e moldava uma massa salitrosa no céu da boca desde que notou que o exército tinha colocado ninhos de metralhadoras em volta da praça e que a cidade cercada da companhia bana-neira estava protegida por peças de artilharia. Até as doze, esperando um trem que não chegava, mais de três mil pessoas, entre trabalhadores, mulheres e crianças, tinham atulhado o espaço descoberto em frente da estação e se apertavam nas ruas adjacentes, que o exército fechara com filas de metra-lhadoras. Aquilo parecia, então, mais que uma recepção, uma feira jubilosa. Haviam transferido as barraquinhas de frituras e as tendas de bebidas da Rua dos Turcos e o povo suportava com muito boa vontade a amolação da espera e o sol abrasa-dor. Um pouco antes das três, correu o boato de que o trem oficial não chegaria até o dia seguinte. A multidão cansada exalou um suspiro de desalento. Um tenente do exército su-biu em seguida no teto da estação, onde havia quatro ninhos de metralhadoras apontadas contra a multidão, e deu um to-que de silêncio. Ao lado de José Arcadio Segundo estava uma mulher descalça, muito gorda, com duas crianças de cerca de quatro e sete anos. Pegou o menor no colo e pediu a José Ar-cadio, sem reconhecê-lo, que levantasse o outro para que ou-visse melhor o que iam dizer. José Arcadio Segundo acavalou o menino na nuca. Muitos anos depois, esse menino haveria de continuar contando, sem que ninguém acreditasse, que ti-289 nha visto o tenente lendo com um megafone de vitrola o creto Número 4 do Chefe Civil e Militar da província. assinado pelo General Carlos Cortes Vargas e pelo seu tário, o Major Henrique García Isaza, e em três artigos de tenta palavras classificava os grevistas de quadrilha de feitores e facultava ao exército o direito de matá-los a Lido o decreto, no meio de uma ensurdecedora vaia protesto, um capitão substituiu o tenente no teto da estaç. e, com o megafone de vitrola, fez sinal de que queria A multidão voltou a fazer silêncio. — Senhoras e senhores disse o capitão com uma baixa, lenta, um pouco cansada — têm cinco minutos se retirar. A vaia e os gritos repetidos afogaram o toque de que anunciou o princípio do prazo. Ninguém se mexeu. — Já passaram os cinco minutos — disse o capitão mesmo tom. — Mais um minuto e atiramos. José Arcadio Segundo, suando gelo, desceu o menino ombros e o entregou à mulher. “Esses cornos são capazes disparar”, murmurou ela. José Arcadio Segundo não teve po de falar, porque no mesmo instante reconheceu a voz ca do Coronel Gavilán fazendo eco com um grito às pala’~-da mulher. Embriaga4o pela tensão, pela maravilhosa profui didade do silêncio e, além disso, convencido de que nada. ria se mover aquela multidão pasmada pela fascinação da te, José Arcadio Segundo se ergueu acima das cabeças que nha pela frente, e, pela primeira vez em sua vida, 1ev a voz. — Cornos! —gritou.— Podem levar de presente o nuto que falta. Ao fim do seu grito aconteceu uma coisa que não lhe pr’ duziu espanto, mas uma espécie de alucinação. O capitão d a ordem de fogo e quatorze ninhos de metralhadoras respo~,. deram imediatamente. Mas tudo parecia uma farsa. Era mo se as metralhadoras estivessem carregadas com fogos artifício, porque se escutava o seu resfolegante matraquear se viam as suas cusparadas incandescentes, mas não se bia a mais leve reação, nem uma voz, nem sequer um sus 290 entre a multidão compacta que parecia petrificada por uma invulnerabilidade instantânea. De repente, de um lado da es-taçao, um grito de morte quebrou o encantamento: “Aaaai, minha mãe.” Uma força sísmica, uma respiração vulcânica, um rugido de cataclismo arrebentaram no centro da multidão com uma descomunal potência expansiva. José Arcadio Se-gundo mal teve tempo de levantar o menino, enquanto a mãe e o outro eram absorvidos pela multidão centrifugada pelo panico. Muitos anos depois, o menino haveria de contar ainda, apesar de os vizinhos continuarem a encará-lo como um ve-lho maluco, que José Arcadio Segundo o erguera por cima da sua cabeça e se deixara arrastar, quase no ar, como que flutuando no terror da multidão, para uma rua adjacente. A posição privilegiada do menino lhe permitiu ver que nesse mo-mento a massa ululante começava a chegar na esquina e a fila de metralhadoras abriu fogo. Várias vozes gritaram ao mes-mo tempo: — Atirem-se no chão! Atirem-se no chão! Já os das primeiras linhas o tinham feito, varridos pelas rajadas da metralha. Os sobreviventes, em vez de se atirarem no chão, tentaram voltar à praça e o pânico deu uma rabana-da de dragão, e os mandou numa onda compacta contra a ou-tra onda compacta que se movimentava em sentido contrá-rio, despedida pela outra rabanada de dragão da rua oposta, onde também as metralhadoras disparavam sem trégua. Es- tavam encurralados, girando num torvelinho gigantesco que pouco a pouco se reduzia ao seu epicentro, porque os seus bor-dos iam sendo sistematjcamente recortados em círculo, como descascando uma cebola, pela tesoura insaciável e metódica da metralha. O menino viu uma mulher ajoelhada, com os bra-ços em cruz, num espaço limpo, misteriosamente vedado aos disparos. Ali o colocou José Arcadio Segundo, no instante de cair com a cara banhada em sangue, antes que o tropel colos-sal arrasasse com o espaço vazio, com a mulher ajoelhada, com a luz do alto céu de seca e com o puto mundo onde Úrsu-la lguarán tinha vendido tantos animaizinhos de caramelo. Quando José Arcadio Segundo acordou, estava de peito 291 para cima nas trevas. Percebeu que ia num trem interminável e silencioso, e que tinha o cabelo empastado pelo sangue seco e que lhe doíam todos os ossos. Sentiu um sono insuportável. Disposto a dormir muitas horas, a salvo do terror e do hor’ ror, acomodou-se do lado que lhe doía menos e só então des-cobriu que estava deitado sobre os mortos. Não havia um es-paço livre no vagão, exceto o corredor central. Deviam ter pas-sado várias horas do massacre, porque os cadáveres tinham a mesma temperatura do gesso no outono e a sua mesma con-sistência de espuma petrificada, e os que os tinham colocado no vagão tiveram tempo de arrumá-los na ordem e no sentido em que se transportavam os cachos de banana. Tentando fu-gir do pesadelo, José Arcadio Segundo arrastou-se de um va-gão a outro, na direção em que avançava o trem, e, nos re-lâmpagos que surgiram por entre as esquadrias de madeira ao passar pelos povoados adormecidos, via os mortos homens, os mortos mulheres, os mortos crianças, que iam talvez ser atirados ao mar como as bananas refugadas. Só reconheceu uma mulher que vendia refrescos na praça e o Coronel Gavi-lán, que ainda trazia enrolado na mão o cinturão com a fivela. de prata mexicana com que tentara abrir caminho através do pânico. Quando chegou ao primeiro vagão deu um salto para a escuridão e ficou estendido na vala da estrada até que o trem acabou de passar. Era o mais comprido que já tinha visto, com quase duzentos vagões de carga e uma locomotiva em cada extremo e uma terceira no centro. Não tinha nenhuma luz, nem sequer os faróis vermelhos e verdes de disposição, e des-lizava numa velocidade noturna e sigilosa. Em cima dos va-gões se viam os vultos escuros dos soldados com as metralha. doras preparadas. Depois da meia-noite caiu um aguaceiro torrencial. Jo-se Arcadio Segundo ignorava onde tinha saltado mas sabia que caminhando em sentido contrário ao do trem chegaria a Ma-condo. Ao fim de mais de três horas de marcha, ensopado até os ossos, com uma dor de cabeça terrível, divisou as primei-ras casas à luz do amanhecer. Atraído pelo cheiro do café, entrou numa cozinha onde uma mulher com uma criança no colo estava inclinada sobre o fogão. 292 — Bom dia — disse exausto. — Sou José Arcadio Se-gundo Buendía. Pronunciou o nome completo, letra por letra, para se con-vencer de que estava vivo. Fez bem porque a mulher tinha pen-sado que era uma assombração, ao ver na porta a figura es-quálida, sombria, com a cabeça e a roupa sujas de sangue e tocada pela solenidade da morte. Conhecia-o. Trouxe uma manta para que se cobrisse enquanto secava a roupa no fo-gão, esquentou água para que lavasse a ferida, que era ape- nas um arranhão na pele, e lhe deu uma fralda limpa para que vendasse a cabeça. Em seguida, serviu-lhe uma xícara de ca-fé, sem açúcar como lhe haviam dito que tomavam os Buen-día, e estendeu a roupa perto do fogo. José Arcadio Segundo não falou enquanto não terminou de tomar o café. — Deviam ser uns três mil — murmurou. — O quê? — Os mortos — esclareceu ele. — Deviam ser todos os que estavam na estação. A mulher mediu-o com um olhar de pena. “Aqui não hou-ve mortos”, disse. “Desde a época do seu tio, o coronel, que não acontece nada em Macondo.” Em três cozinhas onde se deteve José Arcadio Segundo antes de chegar em casa lhe dis-seram a mesma coisa: “Não houve mortos.” Passou pela praça da estação e viu as mesas de frituras amontoadas uma em ci ma da outra e tampouco ali encontrou algum rastro do mas- sacre. As ruas estavam desertas sob a chuva tenaz e as casas fechadas, sem vestígios de vida interior. O único sinal huma-no era o primeiro toque para a missa. Bateu na porta da casa do Coronel Gavilán. Uma mulher grávida, que tinha visto mui-tas vezes, fechou-lhe a porta na cara. “Foi-se embora”, disse assustada. “Voltou para a terra dele.” A entrada principal do galinheiro entelado estava vigiada, como sempre, por dois guar-das locais que pareciam de pedra sob a chuva, com capas e capacetes de impermeável. Na sua ruazinha marginal, os ne-gros antilhanos cantavam em coro os salmos de sábado. José Arcadio Segundo pulou a cerca do quintal e entrou em casa pela cozinha. Santa Sofia de la Piedad mal levantou a voz. 293 “Que Fernanda não te veja”, disse. “Agora mesmo estava se levantando.” Como se cumprisse um pacto implícito, levou o filho para o quarto dos penicos, arrumou- lhe o arrebenta-do catre de Melquíades e às duas da tarde, enquanto Fernan-da fazia a sesta, passou-lhe pela janela um prato de comida. Aureliano Segundo dormira em casa porque a chuva o surpreendera ali e, às três da tarde, ainda continuava esperando~ que estiasse. Informado em segredo por Santa Sofía de la Pie-dad, a essa hora visitou o irmão no quarto de Melquíades. Tampouco ele acreditou na versão do massacre nem no pesa-delo do trem carregado de mortos que viajava para o mar. Na noite anterior tinham lido uma comunicação nacional ex-traordinária, para informar que os operários tinham obedeci-do à ordem de evacuar a estação e se dirigiram para as suas casas em caravanas pacíficas. A comunicação informava tam-bém que os dirigentes sindicais, com um elevado espírito pa-triótico, tinham reduzido as suas reivindicações a dois pon-tos: reforma dos serviços médicos e construção de latrinas nas vivendas. Informou-se mais tarde que, quando as autorida-des militares obtiveram o acordo dos trabalhadores, apres-saram-se em comunicá-lo ao Sr. Brown e que este não só ti-nha aceito as novas condições como também oferecera pa-gar três dias de festas públicas para celebrar o fim do confli-to, Só que quando os militares lhe perguntaram para que da-ta se podia anunciar a assinatura do acordo, ele olhou pela janela do céu listrado de relâmpagos e fez um profundo gesto~ de incerteza: — Quando estiar — disse. — Enquanto durar a chuva suspendemos todas as atividades. Não chovia há três meses e era tempo de seca. Mas quan-do o Sr. Brown antsnciou a sua decisão, precipitou-se em to-da a zona bananeira o aguaceiro torrencial que surpreendeu José Arcadio Segundo a caminho de Macondo. Uma semana depois continuava chovendo. A versão oficial, mil vezes re-petida e repisada em todo o país por quanto meio de divulga-ção o Governo encontrou ao seu alcance, terminou por se im-por: não houve mortos, os trabalhadores satisfeitos tinham voltado para o seio das suas famílias, e a companhia bananei-294 ra suspendia as suas atividades até passar a chuva. A lei mar-cial. continuava, prevendo que fosse necessário aplicar medi-das de emergência para a calamidade pública do aguaceiro in-terminável, mas a tropa estava aquartelada. Durante o dia, os militares andavam pelas torrentes das ruas, com as calças enroladas na metade da perna, brincando de naufrágio com as crianças. De noite, depois do toque de recolher, derruba-vam as portas a coronhadas, arrancavam os suspeitos das ca-mas e os levavam para uma viagem sem regresso. Era ainda a busca e o extermínio dos malfeitores, assassinos, incendiá-rios e revoltosos do Decreto Número Quatro, mas os milita- res o negavam aos próprios parentes das suas vítimas, que atu-lhavam os escritórios dos comandantes em busca de notícias. “Claro que foi um sonho”, insistiam os oficiais. “Em Ma-condo não aconteceu nada, nem está acontecendo nem acon-tecerá nunca. Ë um povoado feliz.” Assim consumaram o ex-termínio dos lideres sindicais. O único sobrevivente foi José Arcadio Segundo. Uma noi-te de fevereiro se ouviram na porta as batidas inconfundíveis das coronhas. Aureliano Segundo, que continuava esperando que estiasse para sair, abriu a seis soldados comandados por um oficial. Ensopados de chuva, sem pronunciar uma pala-vra, revistaram a casa cômodo por cômodo, armário por ar-mário, das salas até a despensa. Ursula acordou quando acen-deram a luz do quarto e não exalou um suspiro enquanto du-rou a revista, mas manteve os dedos cruzados, movendo-os para onde os soldados se moviam. Santa Sofía de la Piedad conseguiu prevenir José Arcadio Segundo que dormia no quar-to de Melquíades, mas ele compreendeu que era tarde demais para tentar a fuga. De modo que Santa Sofía de la Piedad tor-nou a fechar a porta e ele pôs a camisa e os sapatos e se sen-tou no catre para esperar que chegassem. Nesse momento es-tavam revistando a oficina de ourivesaria. O oficial tinha fei-to abrir o cadeado e, com uma rápida passagem da lanterna, tinha visto a mesa de trabalho e a prateleira com os frascos de ácidos e os instrumentos que continuavam no mesmo lu-gar em que os deixara o seu dono e pareceu compreender que naquele quarto não vivia ninguém. Entretanto, perguntou as-295 L tutamente a Aureliano Segundo se era ourives e ele lhe cou que aquela tinha sido a oficina do Coronel Aureliano día. “Ãhã”, fez o oficial e acendeu a luz e ordenou uma vista tão minuciosa que não lhes escaparam os dezoito nhos de ouro que tinham ficado sem fundir e que estavam condidos atrás dos frascos na vasilha de lata. O oficial os ex~ minou um por um na mesa de trabalho e então se humanizo por completo. “Eu gostaria de levar um para mim, se o nhor permite”, disse. “Em certa época foram uma senha. subversão, mas agora são uma relíquia.” Era jovem, um adolescente, sem nenhum sinal de timidez e com uma patia natural que não tinha sido notada até então. A Segundo lhe deu o peixinho de presente. O oficial o gu~ no bolso da camisa, com um brilho infantil nos olhos, e gou os outros na vasilha para colocá-los onde estavam. — É uma lembrança inestimável — disse. — O Coroa Aureliano Buendía foi um dos nossos maiores homens. Entretanto, o acesso de humanização não modificou a conduta profissional. Diante do quarto de Melquíades, estava outra vez com cadeado, Santa Sofia de la Piedad -çou mão de uma última esperança. “Faz mais ou menos século que não vive ninguém neste quarto”, disse. O C .4 o fez abrir, percorreu-o com o foco da lanterna, e Aureliar~. Segundo e Santa Sofía de la Piedad viram os olhos árabes José Arcadio Segundo no momento em que passou pela cara a rajada de luz e compreenderam que aquele era o -de uma ansiedade e o princípio de outra que só encontr alívio na resignação. Mas o oficial continuou examinando cômodo com a lanterna e não deu nenhum sinal de interes enquanto não descobriu os setenta e dois penicos arregimen tados nos armários. Então acendeu a luz. José Arcadio gundo estava sentado na ponta do catre, pronto para sair, grave e pensativo do que nunca. Ao fundo estavam as prat leiras com os livros escalavrados, os rolos de pergaminho a mesa de trabalho limpa e arrumada e ainda fresca a nos tinteiros. Havia a mesma pureza no ar, a mesma dia -dade, o mesmo privilégio contra a poeira e a destruição conhecera Aureliano Segundo na infância e que só o Coror 296 —I Aureliano Buendía não pudera perceber. Mas o oficial não se interessou a não ser pelos penicos. — Quantas pessoas vivem nesta casa? — perguntou. — Cinco. O oficial, evidentemente, não entendeu. Deteve o olhar no espaço onde Aureliano Segundo e Santa Sofia de la Pie-dad continuavam vendo José Arcadio Segundo e também es-te se deu conta de que o militar estava olhando para ele sem vã-lo. Em seguida apagou a luz e encostou a porta. Quando falou com os soldados, Aureliano Segundo compreendeu que o jovem militar tinha visto o quarto com os mesmos olhos com que o vira o Coronel Aureliano Buendía. — É verdade que ninguém entra nesse quarto há pelo me-nos um século — disse o oficial aos soldados. — Deve ter até cobra. Ao se fechar a porta, José Arcadio Segundo teve a certe-za de que a sua guerra tinha terminado. Anos antes, o Coro-nel Aureliano Buendía lhe falara da fascinação da guerra e tratara de demonstrá-la com exemplos inumeráveis tirados da sua própria experiencia. Ele tinha acreditado. Mas na noite em que os militares o olharam sem vã-lo, enquanto pensava na tensão dos últimos meses, na miséria da prisão, no pânico da estação e no trem carregado de mortos, José Arcadio Se-gundo chegou à conclusão de que o Coronel Aureliano Buen-dia não fora mais que um farsante ou um imbecil. Não enten-dia que tivesse necessitado tantas palavras para explicar o que se sentia na guerra, se uma só bastava: medo. No quarto de Melquíades, pelo contrário, protegido pela luz sobrenatural, pelo barulho da chuva, pela sensação de ser invisível, encon-trou o repouso que não tinha tido por um só instante na sua vida anterior e o único medo que persistia era o de que o enter-rassem vivo. Contou isso para Santa Sofia de la Piedad, que lhe trazia as refeições diárias, e ela lhe prometeu lutar para estar viva até além das suas forças, para assegurar-se de que só o enterrariam morto. A salvo de todo o temor, José Arca-dio Segundo se dedicou então a reler muitas vezes os perga-minhos de Melquíades, tanto mais satisfeito quanto menos os entendia. Acostumado com o barulho da chuva, que ao fim 297 1 de dois meses se transformou numa nova forma de silencio, a única coisa que perturbava a sua solidão eram as entradas e saídas de Santa Sofia de la Piedad. Por isso lhe suplicou que deixasse a comida no parapeito da janela e pusesse o cadeado na porta. O resto da família o esqueceu, inclusive Fernanda, que não teve inconveniente em deixá-lo ali, quando soube que os militares o tinham visto sem reconhecer. Depois de seis meses de clausura, em vista de terem os militares deixado Macondo, Aureliano Segundo tirou o cadeado, procurando alguém com quem conversar enquanto não passava a chuva. Desde que abriu a porta se sentiu agredido pelo mau cheiro dos penicos que estavam colocados no chão e todos muitas vezes ocupa-dos. José Arcadio Segundo, devorado pela careca, indiferen-te ao ar rarefeito pelos vapores nauseabundos, continuava len-do e relendo os pergaminhos ininteligíveis. Estava iluminado por um brilho seráfico. Mal levantou a vista quando sentiu que a porta se abria, mas ao irmão bastou aquele olhar para ver repetido nele o destino irreparável do bisavô. — Eram mais de três mil — foi tudo quanto disse José Arcadio Segundo. — Agora estou certo de que eram todos os que estavam na estaçao. 298 / CHOVEU durante quatro anos, onze meses e dois dias. Hou-ve épocas de chuvisco em que todo mundo pôs a sua roupa de domingo e compôs uma cara de convalescente para feste-jar a estiagem, mas logo se acostumaram a interpretar as pausas como anúncios de recrudescimento. O céu desmoronou-se em tempestades de estrupício e o Norte mandava furacões que des-telhavam as casas, derrubavam as paredes e arrancavam pela raiz os últimos talos das plantações. Como acontecera duran-te a peste da insônia, que Ursula dera para recordar naqueles dias, a própria calamidade ia inspirando defesas contra o té-dio. Aureliano Segundo foi um dos que mais fizeram para não 299 / / se deixar vencer pela ociosidade. Tinha vindo em casa por ai. gum assunto casual na noite em que o Sr. Brown convocara a tormenta e Fernanda tratara de auxiliá- lo com um guarda-chuva meio desvaretado que encontrou num armário. “Não há necessidade”, disse ele. “Fico aqui até estiar.” Não era, evidentemente, um compromisso rígido, mas esteve a ponto de cumpri-lo ao pé da letra. Como a sua roupa estava na casa de Petra Cotes, de tres em três dias tirava a que vestia e espe-rava de cuecas enquanto a lavavam. Para não se chatear, entregou-se à tarefa de consertar as numerosas imperfeições da casa. Apertou dobradiças, lubrificou fechaduras, parafu-sou aldrabas e nivelou ferrolhos. Durante vários meses foi visto vagando com uma caixa de ferramentas que deveria ter sido esquecida pelos ciganos na época de José Arcadio Buendía, e ninguém soube se foi pela ginástica involuntária, pelo tédio invernal ou pela abstinência obrigada que a pança foi desin-chando pouco a pouco como um odre e a cara de tartaruga beatífica ficou menos sanguínea e a papada menos protube- rante, até que ele todo acabou por ser menos paquidérmico e pôde amarrar outra vez os cordões dos sapatos. Vendo-o co-locar os trincos e desmontar os relógios, Fernanda se pergun-tou se não estaria também caindo no vício de fazer para des- fazer, como o Cor~nel Aureliano Buendía com os peixinhos de ouro, Amaranta com os botões e a mortalha, José Arca-dio Segundo com os pergaminhos e Ursula com as lembran-ças. Mas não era verdade. O ruim era que a chuva atrapalha. va tudo e as máquinas mais áridas brotavam em flores por entre as engrenagens se não fossem lubrificadas de três em três dias, e se enferrujavam os fios dos brocados, e nasciam algas de açafrão na roupa molhada. A atmosfera estava tão úmida que os peixes poderiam entrar pelas portas e sair pelas jane-las, navegando no ar dos aposentos. Certa manhã Ürsula acor-dou sentindo que se acabava num desmaio de placidez, e já tinha pedido que a levassem ao Padre Antonio Isabel, ainda que fosse numa liteira, quando Santa Sofía de la Piedad des-cobriu que ela tinha as costas empedradas de sanguessugas. Desprenderam-nas uma por uma, queimando-as com tições, antes que acabassem de sangrá-la. Foi preciso abrir canais para 300 4~. escorrer a água da casa e desimpedi-la de sapos e caracóis, para que pudesse secar o chão, tirar os tijolos dos pés das camas e andar outra vez de sapatos. Entretido com as múltiplas mi-núcias que reclamavam a sua atenção, Aureliano Segundo não percebeu que estava ficando velho, até uma tarde em que se viu contemplando de uma cadeira de balanço o entardecer pre-maturo e pensando em Petra Cotes sem estremecer. Não teria tido nenhum inconveniente em regressar para o amor insípi- do de Fernanda, cuja beleza tinha repousado com a maturi-dade, mas a chuva o havia posto a salvo de qualquer emer-gência passional e lhe infundira a serenidade esponjosa da ina- petência. Divertiu-se pensando nas coisas que teria podido fa-zer, em Outros tempos, com aquela chuva que já ia para um ano. Tinha sido um dos primeiros a trazer folhas de zinco pa-ra Macondo, muito antes da companhia bananeira pô-las em moda, só para forrar com elas o quarto de Petra Cotes e go-zar a impressão de intimidade profunda que lhe produzia, na-quela época, a crepitação da chuva. Mas até essas lembranças malucas da sua juventude extravagante o deixavam impávi-do, como se na última farra tivesse esgotado todas as suas quo-tas de libertinagem e só lhe tivesse restado o prêmio maravi-lhoso de poder evocá-las sem amargura nem arrependimento. Poder- se-ia imaginar que o dilúvio lhe tinha dado a oportuni-dade de se sentar para pensar e que o movimento dos alicates e das latinhas de óleo lhe havia despertado a saudade tardia de tantos trabalhos úteis que poderia ter feito e não fez na vi-da, mas nem uma coisa nem outra era verdade, porque a ten-tação de sedentarismo e domesticidade que o andava rondan-do não era fruto da recuperação nem da expiação. Vinha de muito mais longe, desenterrada pelo ancinho da chuva, dos tempos em que lia no quarto de Melquíades as prodigiosas his-tórias dos tapetes voadores e das baleias que se alimentavam de navios com tripulações. Foi por esses dias que, num des-cuido de Fernanda, apareceu na varanda o pequeno Aurelia-no e o avô conheceu o segredo da sua identidade. Cortou-lhe o cabelo, vestiu-o, ensinou-lhe a perder o medo das pessoas, e muito em breve se viu que era um legítimo Aureliano Buen-dia, com as maçãs do rosto altas, o olhar de espanto e o ar 301 solitário. Para Fernanda foi um descanso. Havia tempo que tinha moderado a magnitude da sua soberba, mas não desco-bria como remediá-la, porque quanto mais pensava nas solu-ções, menos racionais lhe pareciam. Se soubesse que Aurelia-. no Segundo ia encarar as coisas como encarou, com uma boa complacência de avô, não teria feito tantas voltas nem tantos adiamentos, mas desde o ano anterior que se teria libertado~ da mortificação. Para Amaranta Ursula, que já tinha muda-do os dentes, o sobrinho foi como um brinquedo fugidio que a consolou do tédio da chuva. Aureliano Segundo se lembrou então da enciclopédia inglesa que ninguém voltara a tocar no antigo quarto de Meme. Começou por mostrar as gravuras às crianças, especialmente as de animais, e mais tarde os mapas e as fotografias de países remotos e personagens célebres. Co-mo não sabia inglês, e como mal podia distinguir as cidades mais conhecidas e as personalidades mais correntes, deu para inventar nomes e lendas para satisfazer a curiosidade insaciá-vel das crianças. Fernanda acreditava mesmo que o marido estava espe-rando que estiasse para voltar para a concubina. Nos primei-ros meses de chuva temeu que ele tentasse deslizar para o seu quarto e que ela tivesse que passar a vergonha de lhe revelar. que estava incapacit~da para a reconciliação desde o nascimen-to de Amaranta Úrsula. Essa era a causa da sua ansiosa cor-respondência com os médicos invisíveis, interrompida pelos freqüentes acidentes do correio. Durante os primeiros meses, quando se soube que os trens descarrilhavam na tormenta, uma carta dos médicos invisíveis indicou-lhe que as suas se esta-vam perdendo. Mais tarde, quando se interromperam os con-tatos com os seus correspondentes ignotos, pensou seriamen-te em colocar a máscara de tigre que seu marido usara no car-naval sangrento para se fazer examinar, sob nome falso, pe-los médicos da companhia bananeira. Mas uma das tantas pes- soas que passavam freqüentemente pela casa trazendo as no-tícias ingratas do dilúvio tinha dito a ela que a companhia es-tava botando abaixo os seus ambulatórios para levá-los para as terras de estiagem. Então perdeu a esperança. Resignou-se a aguardar que passasse a chuva e o correio se normalizasse 302 e, enquanto isso, aliviava as suas mazelas secretas com recur-sos de inspiração, porque teria preferido morrer a pôr-se nas mãos do único médico que restava em Macondo, o francês extravagante que se alimentava com ervas de burro. Aproximara-se de Ursula, confiada de que eia conheceria al-gum paliativo para os seus quebrantos. Mas o tortuoso costu-me de não chamar as coisas pelo próprio nome levou-a a co-locar o anterior no posterior e a substituir o parido pelo eva-cuado e a mudar secreções por ardores para que tudo ficasse menos vergonhoso, de modo que Ursula concluiu razoavel-mente que as perturbações não eram uterinas, mas intestinais, e aconselhou-a a tomar em jejum uma dose de calomelano. Não fosse por esse padecimento que nada teria tido de pudendo para alguém que não estivesse doente também de pudicícia, e se não fosse a perda das cartas, Fernanda não teria se im-portado com a chuva, porque afinal de contas toda a sua vida tinha sido como se estivesse chovendo. Não modificou os ho-rários nem perdoou os ritos. Quando a mesa ainda estava sus- pensa sobre tijolos e as cadeiras colocadas sobre tábuas para que os comensais não molhassem os pés, ela continuava ser-vindo com toalhas de linho e louça chinesa, e acendendo os candelabros no jantar, porque achava que as calamidades não podiam servir de pretexto para o relaxamento dos costumes. Ninguém voltara a aparecer na rua. Se tivesse dependido de Fernanda, não voltariam a fazê-lo jamais, não só desde que começara a chover, mas desde muito antes, já que ela pensa-va que as portas tinham sido inventadas para serem fechadas, e que a curiosidade pelo que acontecia na rua era coisa de ra-meira. Entretanto, ela foi a primeira a aparecer quando avi-saram que estava passando o enterro do Coronel Gerineldo Márquez, embora o que visse então pela janela entreaberta a deixasse em tal estado de angústia que durante muito tempo ficou arrependida da sua debilidade. Não se poderia imaginar um cortejo mais desolado. Ti-nham colocado o ataúde num carro de boi sobre o qual cons-truíram uma coberta de folhas de bananeira, mas a pressão da chuva era tão intensa e as ruas estavam tão enlameadas que a cada passo as rodas atolavam e a coberta ameaçava desmo-303 ronar. Os jatos d’água triste que caíam sobre o ataúde ensopando a bandeira que tinham colocado por cima e era na realidade a bandeira suja de sangue e de pólvora, repu diada pelos veteranos mais dignos. Sobre o ataúde tinham to também o sabre com borlas de cobre e seda, o mesmo qu o Coronel Gerineldo Márquez pendurava no cabide da para entrar desarmado no quarto de costura de i Atrás do carro, alguns descalços e todos com as calças ~ gaçadas na metade da perna, chapinhando na lama, os últimos sobreviventes da capitulação de Neerlândia, trazeii do numa das mãos um rijo bastão de madeira e na outra coroa de flores de papel descolorido pela chuva. ApareceraT como uma visão irreal na rua que ainda trazia o nome ronel Aureliano Buendía e todos olharam a casa ao passar. dobraram a esquina da praça, onde tiveram que pedir para movimentar o carro atolado. Úrsula se fizera levar ~ a porta por Santa Sofía de la Piedad. Acompanhou com ta atenção as peripécias do enterro que ninguém duvidou c’ que o estava vendo, sobretudo porque a sua levantada de arcanjo anunciador se movimentava com os cabeceios carro. — Adeus, Gerineldo, meu filho — gritou. — Cumpri. mente a minha gente~or mim e diga que nos veremos estiar. Aureliano Segundo ajudou-a a voltar para a cama e a mesma informalidade com que a tratava sempre per o significado da sua despedida. — É verdade — disse ela. — Só estou esperando a va passar para morrer. O estado das ruas alarmou Aureliano Segundo. Tardia mente preocupado corri a sorte dos seus animais, jogou na. beça um pedaço de oleado e foi à casa de Petra Encontrou-a no quintal, com água pela cintura, tentando sencalhar o cadáver de um cavalo. Aureliano Segundo ajudou-’com uma tranca e o enorme corpo tumefacto fez uma de sino e foi arrastado pela torrente de barro líquido. Dei’ que começara a chuva Petra Cotes não tinha feito outra senão desentulhar o quintal dos animais mortos. Nas primei. 304 4. ras semanas mandara recados a Aureliano Segundo para que tomasse providêsicias urgentes e ele respondera que não havia pressa, que a situação não era alarmante, que já se pensaria em alguma coisa quando estiasse. Mandara-lhe dizer que os estábulos estavam se inundando, que o gado fugia para as ter-ras altas onde não havia o que comer e que estava à merca das onças e da peste. “Não há nada a fazer”, respondera-lhe Aureliano Segundo. “Nascerão Outros quando estiar.” Petra Cotes os tinha visto morrer às pencas e mal pudera livrar os que ficavam atolados. Viu com uma impotência surda como o dilúvio fora exterminando sem misericórdia uma fortuna que em certa época era tida como a maior e mais sólida de Ma-condo e da qual não restava nada a não ser o mau cheiro. Quando Aureliano Segundo decidiu ir ver o que estava acon-tecendo, só encontrou o cadáver do cavalo e uma mula esquá-lida entre os escombros da cavalariça. Petra Cotes o viu che-gar sem surpresa, sem alegria nem ressentimento, e mal se per-mitiu um sorriso irônico. — Em boa hora! — disse. Estava envelhecida, um feixe de ossos, e seus lanceola-dos olhos de animal carnívoro tinham ficado tristes e mansos de tanto olhar a chuva. Aureliano Segundo ficou mais de três meses na sua casa, não porque no momento se sentisse me-lhor ali do que na de sua família, mas porque precisou de to-do esse tempo para tomar a decisão de jogar à cabeça outra vez o pedaço de oleado. “Não há pressa”, disse, como tinha dito na outra casa. “Vamos ver se estia nas próximas horas.” No decorrer da primeira semana foi se acostumando com os desgastes que o tempo e a chuva tinham feito na saúde da con-cubina, e pouco a pouco a foi vendo como era antes, lembrando-se das suas exaltações jubilosas e da fecundidade de delírio que o seu amor provocava nos animais e, em parte por amor e em parte por interesse, certa noite da segunda se-mana, despertou-a com carícias prementes. Petra Cotes não reagiu. “Durma tranqüilo”, murmurou. “A época não está mais para essas coisas.” Aureliano Segundo viu-se a si mes-mo nos espelhos do teto, viu a espinha dorsal de Petra Cotes como uma fileira de carretéis enfiados numa meada de ner-305 vos murchos e compreendeu que ela tinha razão, não por causa da época, mas por causa deles mesmos, que já não estavam mais para essas coisas. Aureliano Segundo voltou para casa com os seus baús, convencido de que não apenas Ursula, mas todos os habitan-tes de Macondo estavam esperando que estiasse para morrer. Tinha-os visto ao passar, sentados nas salas com o olhar ab-sorto e os braços cruzados, sentindo transcorrer um tempo in-teiriço, um tempo sem desbravar, porque era inútil dividi-lo em meses e anos, e os dias em horas, já que não se podia fa-zer nada além de contemplar a chuva. As crianças receberam com alvoroço Aureliano Segundo, que voltou a tocar para elas o acordeão asmático. Mas o concerto não lhes chamou tanto a atenção quanto as sessões enciclopédicas, de modo que vol- taram novamente a se reunir no quarto de Meme, onde a ima-ginação de Aureliano Segundo transformou o dirigível num elefante voador que procurava um lugar para dormir entre as nuvens. Em certa ocasião encontrou um homem a cavalo que apesar de suas vestes exóticas conservava certo ar familiar e depois de muito examiná-lo chegou à conclusão de que era um retrato do Coronel Aureliano Buendía. Mostrou-o a Fernan-da e também ela admitiu a semelhança do ginete não só com o coronel, mas coril todos os membros da família, embora na verdade fosse um guerreiro tártaro. Assim foi passando o tem-po, entre o colosso de Rodes e os encantadores de serpentes, até que a esposa lhe anunciou que não restavam mais do que seis quilos de carne-seca e um saco de arroz na despensa. — E o que você quer que eu faça? — perguntou ele. — Não sei — respondeu Fernanda. — Isso é problema de homem. — Bem — disse Aureliano Segundo — alguma coisa se~ rá feita quando estiar. Continuou mais interessado na enciclopédia do que no problema doméstico, mesmo quando teve que se conformar com uma pelanca e um pouco de arroz no almoço. “Agora é impossível fazer qualquer coisa”, dizia. “Não pode chover a vida inteira.” E quanto mais folga dava às urgências da des-pensa, mas intensa se ia fazendo a indignação de Fernanda, 306 até que os seus protestos eventuais, as suas queixas pouco fre-qüentes transbordaram numa torrente inçontida, desatada, que começou certa manhã como o monótono bordão de uma gui-tarra e que à medida que avançava o dia foi subindo de tom, cada vez mais rico, mais esplêndido. Aureliano Segundo não tomou consciência da ladainha até o dia seguinte depois do café quando se sentiu aturdido por um zumbido que já estava mais fluido e mais alto que o barulho da chuva e era Fernan-da que passeava pela casa inteira se lamentando de que a ti-vessem educado como uma rainha para acabar de criada nu-ma casa de loucos, com um marido vagabundo, idólatra, li- bertino, que ficava de papo para o ar esperando que chovesse pão do céu, enquanto ela destroncava os rins tentando man-ter à tona um lar preso com alfinetes, onde tinha tanto que fazer, tanto que agüentar e corrigir, desde que amanhecia o Senhor até a hora de dormir, que já chegava na cama com os olhos vidrados, e no entanto nunca ninguém lhe dera um bom dia, Fernanda, como passou a noite, Fernanda? nem lhe perguntara, mesmo que fosse só por delicadeza, por que esta-va tão pálida nem por que se levantava com essas olheiras ro-xas, apesar de ela não esperar, é claro, que aquilo saísse do resto de uma família que afinal de contas sempre a considera-ra como um estorvo, como o pegador de panelas, como uma bruxinha de pano pendurada na parede, e que sempre anda-vam tresvariando contra ela pelos cantos, chamando-a de san-tarrona, chamando-a de fariséia, chamando-a de velhaca, e até Amaranta, que Deus tenha, havia dito a viva voz que ela era das que confundiam o reto com as têmporas, bendito seja Deus que palavras, e ela agüentara tudo com resignação pelas intenções do Santo Pai, mas não pudera suportar mais quan-do o malvado do José Arcadio Segundo disse que a perdição da família tinha sido abrir as portas para uma franguinha, ima-ginem, uma franguinha mandona, valha-me Deus, uma fran-guinha filha de má saliva, da mesma índole dos frangotes que o Governo tinha mandado para matar os trabalhadores, veja você, e se referia nada mais nada menos do que a ela, a afi- lhada do Duque de Alba, uma dama de tanta classe que dei-xava as esposas dos presidentes no chinelo, uma fidalga de san- 307 gue como ela que tinha o direito de assinar onze sobrenomes peninsulares e que era o único mortal desse povoado de bas-tardos que não se sentia atrapalhado diante de dezesseis ta-lheres, para que logo o adúltero do seu marido dissesse mor- rendo de rir que tantas colheres e garfos, e tantas facas e co-lherinhas, não eram coisa de cristão, mas de centopéia, e a única que podia dizer de olhos fechados quando se servia o vinho branco, e de que lado, em que taça, e quando se servia o vinho tinto, e de que lado, e em que taça, e não como a rús-tica da Amaranta, que em paz descanse, que pensava que o vinho branco se servia de dia e o vinho tinto de noite, e a úni-ca em todo o litoral que podia se vangloriar de não se ter ali-viado a não ser em penicos de ouro, para que em seguida o Coronel Aureliano Buendía, que em paz descanse, tivesse o atrevimento de perguntar com os seus maus bofes de maçom a troco de que tinha merecido esse privilégio, por acaso ela não cagava merda, e sim orquídeas?, imaginem, com essas pa-lavras, e para que Renata, sua própria filha, que por indiscri-ção tinha visto o seu número dois no quarto, respondesse que realmente o penico era de muito ouro e de muita heráldica, mas o que tinha dentro era pura merda, merda física, e pior ainda que as outras, porque era merda de gente metida a bes- .4 ta, imaginem, a sua própria filha, de modo que nunca tivera ilusões com o resto da família, mas de qualquer maneira ti-nha o direito de esperar um pouco mais de consideração da parte do marido, já que bem ou mal era o seu cônjuge de sa- cramento, o seu autor, o seu legítimo prejudicador*, que se encarregara por livre e espontânea vontade da grave respon-sabilidade de tirá-la do solar paterno, onde nunca se privara de nada nem sofrera por nada, onde tecia coroas fúnebres por pura diversão, já que seu padrinho tinha mandado uma carta com a sua assinatura e o selo do seu anel impresso no lacre, só para dizer que as mãos da afilhada não tinham sido feitas *No original: legítimo perjudicador. Explicação do autor à tradutora: “Quando um homem possui uma mulher sem consentimento (é possivel?), diz-se que a perjudi- cou. Fernanda quer dizer que Aureliano Segundo a perjudicou, mas com todo o di-reito, porque era seu esposo legal: seu legitimo prejudicador.” 308 •1’ para os trabalhos deste mundo que não fossem tocar clavi-córdio e, entretanto, o insensato do marido a tirara de casa, com todas admoestações e advertências, e a trouxera para aque-la caldeira do inferno onde não se podia respirar de tanto ca-lor, e antes de que ela acabasse de guardar as suas abstinên-cias de Pentecostes, já tinha ido embora com os seus baús mi-gratórios e o seu acordeão de perdulário para gozar em adul-tério com uma desgraçada de quem bastava olhar as nádegas, bem, já estava dito, de quem bastava olhar as nádegas de po-tranca para adivinhar que era uma, que era uma, exatamente o contrário dela, que era uma dama no palácio ou na pocilga, na mesa ou na cama, uma dama de nascença, temente a Deus, obediente às suas leis e submissa aos seus desígnios, e com quem não podia fazer, é claro, as nojeiras e vagabundagens que fa-zia com a outra, que é claro que se prestava a tudo, como as matronas francesas, e pior ainda, pensando bem, porque es-tas pelo menos tinham a honradez de colocar uma luz verme-lha na porta, semelhantes porcarias, imaginem, só faltava es-sa, com a filha única e bem-amada de D. Renata Argote e D. Fernando del Carpio, e sobretudo deste, é claro, um santo va-rão, um cristão dos grandes, Cavaleiro da Ordem do Santo Sepulcro, desses que recebem diretamente de Deus o privilé-gio de se conservarem intactos na cova, com a pele esticada como cetim de noiva e os olhos vivos e diáfanos como as esmeraldas. — Isto é que não é verdade — interrompeu-a Aureliano Segundo — quando o trouxeram já estava fedendo. Tinha tido a paciência de escutá-la um dia inteiro até surpreendê-la em erro. Fernanda não lhe deu confiança, mas baixou a voz. Nessa noite, durante o jantar, o exasperante zum-bido da ladainha venceu o barulho da chuva. Aureliano Se-gundo comeu muito pouco, com a cabeça baixa, e se retirou cedo para o dormitório. No café do dia seguinte Fernanda es-tava trêmula, com jeito de ter dormido mal e parecia desafo-gada por completo dos seus rancores. Entretanto, quando o marido perguntou se não seria possível comer um ovo quen-te, ela não respondeu simplesmente que desde a semana ante-rior os ovos tinham acabado, mas elaborou uma violenta ca- 309 tilinária contra os homens que passavam o tempo adoras o próprio umbigo e de repente tinham o topete de pedir fí do de cotovia na mesa. Aureliano Segundo levou as crian para ver a enciclopédia como sempre e Fernanda fingiu bo em ordem o quarto de Meme, só para que ele a ouvisse mur murar que, evidentemente, era preciso muita cara dura par dizer aos pobres inocentes que o Coronel Aureliano Buen estava retratado na enciclopédia. De tarde, enquanto as crianças faziam a sesta, Aurelian~i Segundo se sentou na varanda e até lá Fernanda o perseguiu~ provocando-o, atormentando-o, girando em volta dele conl o seu implacável zumbido de mosca varejeira, dizendo que1 é claro, até que não restassem mais do que pedras para co-mer, o seu marido se sentaria como um sultão da Pérsia a con~ templar a chuva, porque não era mais que isso, um gaio ve lho, um parasita que não servia para nada, mais frouxo qu~ borla de cortina, acostumado a viver à custa das mulheres ~ convencido de que se casara com a esposa de Jonas, que ti~ nha ficado tão tranqüila com a história da baleia. Aurellanc Segundo ouviu-a por mais de duas horas, impassível, comc se fosse surdo. Não a interrompeu até a tarde estar bem avan• çada, quando não pôde mais suportar a ressonância de bum. bo que lhe atornientava a cabeça. — Cale-se já, por favor — suplicou. Fernanda, pelo contrário, subiu de tom. “Não tenho poi que me calar”, disse. “Quem não quiser ouvir que vá embo ra.” Então, Aureliano Segundo perdeu as estribeiras Endireitou-se sem pressa, como se só pensasse em estirar a ossos, e com uma fúria perfeitamente regulada e metódica fo agarrando um a um os vasos de begônias, de fetos, os pote de orégão e, um a um, os foi espedaçando contra o chão. Fer nanda se assustou, pois na realidade não tivera até o momen to uma consciência clara da tremenda força interior da ladai nha, mas já era tarde para qualquer tentativa de retificação Embriagado pela torrente incontrolável de desabafo, Aurelianl Segundo quebrou o vidro da cristaleira, e uma por uma, seu se apressar, foi tirando as peças da louça e as reduzindo a pi contra o chão. Sistemático, sereno, com a mesma parcimôni 310 * com que tinha empapelado a casa de dinheiro, foi quebran-do, em seguida, contra as paredes, os cristais da Boêmia, as jarras pintadas a mão, os quadros de donzelas em barcos car-regados de rosas, os espelhos de moldura dourada e tudo o que era quebrável da sala à despensa, e terminou com o pote da cozinha, que se arrebentou no centro do quintal numa ex-plosão profunda. Em seguida lavou as mãos, jogou na cabe-ça o encerado e antes da meia-noite voltou com umas pelan-cas endurecidas de carne-seca, vários sacos de arroz e milho com caruncho, e uns mirrados cachos de banana. A partir de então não voltaram a faltar as coisas de comer. Amaranta Ursula e o pequeno Aureliano haveriam de re-cordar o dilúvio como uma época feliz. Apesar do rigor de Fernanda, chapinhavam nos lagos do quintal, caçavam lagartos para esquartejar e brincavam de envenenar a sopa jogando pó de asa de borboleta durante os descuidos de Santa Sofia de la Piedad. Ursula era o brinquedo mais divertido. Pensaram que fosse uma grande boneca decrépita que levavam e traziam para todos os cantos, fantasiada com trapos coloridos e com a cara pintada de fuligem e urucu, e uma vez quase lhe arran-caram os olhos com a tesoura de podar como faziam com os sapos. Nada lhes causava tanta excitação quanto os seus des- varios. Realmente, alguma coisa devia ter acontecido no seu cérebro no terceiro ano da chuva, porque pouco a pouco foi perdendo o sentido da realidade e confundia o tempo atual com épocas remotas da sua vida, a ponto de numa ocasião ter passado três dias chorando desconsoladamente a morte de Petronila Iguarán, sua bisavó, enterrada havia mais de um sé-culo. Afundou num estado de confusão tão disparatado que acreditava que o pequeno Aureliano era seu filho, o coronel, no tempo em que o levaram para conhecer o gelo, e que o Jo-sé Arcadio que estava agora no seminário era o primogênito que tinha ido com os ciganos. Tanto falou da família que as crianças aprenderam a organizar visitas imaginárias para ela com seres que não apenas já tinham morrido há muito tem-po, mas que tinham existido em épocas diferentes. Sentada na cama com o cabelo coberto de cinza e a cara tapada com um lenço vermelho, Ursula era feliz no meio da parentela ir-311 2 real que as crianças descreviam sem omissão de detalhes, co-mo se a tivessem conhecido de verdade. Ursula conversava com os seus antepassados sobre acontecimentos anteriores à sua própria existência, sentia prazer com as notícias que lhe da- vam e chorava com eles por mortos muito mais recentes que os próprios companheiros de tertúlia. As crianças não tarda-ram a perceber que no decorrer dessas visitas fantasmagóri-cas Ursula fazia sempre uma pergunta destinada a esclarecer quem trouxera para casa durante a guerra um São José de gesso em tamanho natural para que o guardassem até passar a chu-va. Foi assim que Aureliano Segundo se lembrou da fortuna enterrada em algum lugar que só Ursula conhecia, mas foram inúteis as perguntas e as manobras astutas que lhe ocorreram, porque nos labirintos do desvario ela parecia conservar uma margem de lucidez para defender aquele segredo, que só ha-veria de revelar a quem demonstrasse ser o verdadeiro dono do ouro sepultado. Era tão hábil e tão rígida que quando Au-reliano Segundo instruiu um dos seus companheiros de farra para que se fizesse passar pelo proprietário da fortuna, ela o enredou num interrogatório minucioso e cheio de armadilhas sutis. Convencido de que Úrsula levaria o segredo para o tú-mulo, Aureliano Segundo contratou um grupo de escavado-res com o pretexto de construir canais de escoamento no quintal e no jardim e ele mesmo sondou o solo com barras de ferro e com toda espécie de detetores de metais, sem encontrar na-da que se parecesse com ouro em três meses de explorações exaustivas. Mais tarde recorreu a Pilar Temera com a espe-rança de que as cartas vissem mais que os cavadores, mas ela começou por lhe explicar que seria inútil qualquer tentativa se não fosse Úrsula que cortasse o baralho. Por outro lado, confirmou a existência do tesouro, com a precisão de que eram sete mil duzentas e quatorze moedas, enterradas em três sa-cos de lona com fechos de cobre, dentro de um círculo de cento e vinte e dois metros de raio, tomando por centro a cama de Úrsula, mas advertiu-o de que ele não seria encontrado en- quanto não acabasse de chover e os sóis de três junhos conse-cutivos não transformassem em pó os lamaçais. A profusão 312 e a meticulosa vaguidão dos dados pareceram a Aureliano Se-gundo tão semelhantes às fábulas espíritas que insistiu na em-presa, apesar de estarem em agosto e ser necessário esperar pelo menos três anos para satisfazer as condições do prognós- tico. A primeira coisa que lhe causou assombro, embora ao mesmo tempo aumentasse a sua confusão, foi comprovar sue havia exatamente cento e vinte e dois metros da cama de Ur-sula à cerca do quintal. Fernanda temeu que estivesse tão lou-co quanto o seu irmão gêmeo, quando o viu tomando as me-didas, e pior ainda, quando ordenou ao grupo de escavadores que aprofundassem mais um metro os canais. Presa de um de-lirio exploratório comparável apenas ao do bisavô quando pro-curava a rota das invenções, Aureliano Segundo perdeu as úl-timas bolsas de gordura que lhe restavam e a antiga semelhança com o irmão gêmeo foi outra vez se acentuando, não só pelo escorreito do perfil, como também pelo ar distante e pela ati-tude ensimesmada. Não voltou a se ocupar das crianças. Co-mia a qualquer hora, enlameado dos pés à cabeça, e o fazia num canto da cozinha, mal respondendo às perguntas ocasio-nais de Santa Sofia de la Piedad. Vendo-o trabalhar daquela forma como nunca sonhara que pudesse fazê-lo, Fernanda pen-sou que a sua temeridade fosse diligência e que a sua cobiça fosse abnegação e que a sua teimosia fosse perseverança e sentiu o remorso nas entranhas, pela violência com que verberava a sua inércia. Mas Aureliano Segundo no momento não esta-va para reconciliações misericordiosas. Afundado até o pes-coço num pantanal de ramagens mortas e flores apodrecidas, revolveu o direito e o avesso daquele solo do jardim depois de ter acabado com o quintal e verrumou tão profundamente os cimentos da galeria oriental da casa que certa noite acor- daram aterrorizados pelo que parecia ser um cataclismo, tan-to pelas trepidações quanto pelo pavoroso rangido subterrâ-neo, e eram três aposentos que estavam desmoronando e uma fenda de calafrio que se tinha aberto da varanda ao quarto de Fernanda. Aureliano Segundo nem por isso renunciou àexploração. Mesmo quando já se haviam extinguido as últi-mas esperanças e a única coisa que parecia ter algum sentido era a predição das cartas, reforçou os cimentos esburacados, 313 consertou a fenda com argamassa e continuou escavando lado ocidental. Ainda estava ali na segunda semana de seguinte, quando a chuva começou a se apaziguar e as foram subindo e se viu que de um momento para o outro: estiar. Assim foi. Numa sexta-feira, às duas da tarde, i] se o mundo com um sol bobo, vermelho e áspero como ra de tijolo e quase tão fresco como a água, e não voltou chover durante dez anos. Macondo estava em ruínas. Nas valas das ruas restav~ móveis espedaçados, esqueletos de animais cobertos de vermelhos, últimas lembranças das hordas de imigrantes tinham fugido de Macondo tão atabalhoadamente como nham chegado. As casas erguidas com tanta urgência durai, a febre da banana tinham sido abandonadas. A c bananeira desmantelara as suas instalações. Da antiga ~ cercada só restavam os escombros. As casas de madeira, frescos terraços onde transcorriam as serenas tardes de -de cartas pareciam arrasados por uma antecipação do profético que anos depois haveria de apagar Macondo da §cc da terra. O único rastro humano que deixara aquele voraz foi uma luva de Patricia Brown no automóvel do pelos amores-pe~feitos. A região encantada que José cadio Buendía explorara nos tempos da fundação e onde seguida prosperaram as plantações de banana era um de raízes putrefatas, em cujo horizonte remoto se pôde ver rante vários anos a espuma silenciosa do mar. Aureliano gundo padeceu de uma crise de angústia no primeiro go em que vestiu roupas secas e saiu para rever o pc Os sobreviventes da catástrofe, os mesmos que já viviam, antes que Macorido fosse sacudido pelo furacão da nhia bananeira, estavam sentados no meio da rua gozando primeiros sóis. Ainda conservavam na pele o verde de alga o cheiro de cafua que lhes imprimira a chuva, mas no dos seus corações pareciam satisfeitos por terem recupera o povoado em que nasceram. A Rua dos Turcos era outra a de antes, a do tempo em que os árabes de pantufas e -nas orelhas, que percorriam o mundo trocando p, ,a iios --bagatelas, encontraram em Macondo um bom - - 314 descansar da sua milenária condição de gente errante. Do ou-tro lado da chuva, a mercadoria dos bazares estava caindo aos pedaços, os gêneros à mostra na porta estavam pintados de musgo, os balcões escavados pelo cupim e as paredes carco-midas pela umidade, mas os árabes da terceira geração esta-vam sentados no mesmo lugar e com a mesma atitude de seus pais e avós, taciturnos, impávidos, invulneráveis ao tempo e à desgraça, tão vivos ou tão mortos como tinham estado de-pois da peste da insônia e das trinta e duas guerras do Coro-nel Aureliano Buendía. Era tão assombrosa a sua força de von-tade diante dos escombros das mesas de jogo, das barraqui-nhas de frituras, das tendinhas de tiro ao alvo e da travessa onde se interpretavam os sonhos e se adivinhava o futuro, que Aureliano Segundo perguntou-lhes com a sua informalidade habitual de que recursos misteriosos eles se tinham valido pa-ra nao naufragar na tormenta, corno diabo tinham feito para não se afogar, e um após o outro, de porta em porta, devolveram-lhe um sorriso ladino e um olhar sonhador, e to-dos lhe deram sem combinação prévia a mesma resposta. — Nadando. Petra Cotes era talvez o único nativo que tinha coração de árabe. Tinha visto os últimos destroços dos seus estábulos e cavalariças arrastados pela tormenta, mas conseguira man-ter a casa de pé. No último ano, mandara recados prementes a Aureliano Segundo e este lhe respondera que ignorava quan-do voltaria à sua casa, mas que em todo caso levaria um cai-xote de moedas de ouro para revestir o quarto. Então ela es-cavou o coração procurando a força que lhe permitisse sobre-viver à desgraça e encontrou uma raiva reflexiva e justa, com a qual jurou restaurar a fortuna desbaratada pelo amante e acabada de extinguir pelo dilúvio. Foi uma decisão tão inque-brantável que Aureliano Segundo voltou à sua casa oito me-ses depois do último recado e a encontrou verde, desgrenha-da, com as faces cavadas e a pele escarchada pela sarna, mas escrevendo números em pedacinhos de papel, para fazer uma rifa. Aureliano Segundo ficou atônito, e estava tão esquálido e tão grave que Petra Cotes achou que quem voltava a procurá-la não era o amante de toda a sua vida, mas seu irmão gêmeo. 315 — Você está louca — disse ele. — A menos que pensando em rifar os ossos. Então ela disse que desse um pulo no quarto e Aureliai Segundo viu a mula. Estava com a pele colada aos ossos.~ ‘mo a dona, mas tão viva e decidida quanto ela. Petra alimentara-a com a sua raiva, e quando não teve mais capi.. nem milho, nem raízes, abrigou-a no próprio quarto e lhe -de comer os lençóis de percal, os tapetes persas, as de pelúcia, as cortinas de veludo e o dossel bordado com de ouro e borlas de seda da cama episcopal. -4 316 / ÜRSULA teve de fazer um grande esforço para cumprir a pro-messa de morrer quando estiasse. Os clarões de lucidez, tão escassos durante a chuva, fizeram-se mais freqüentes a partir de agosto, quando começou a soprar o vento árido que sufo-cava as roseiras e petrificava as lagoas e acabou por espalhar sobre Macondo a poeira abrasadora que cobriu para sempre os enferrujados tetos de zinco e as amendoeiras centenárias. Ursula chorou de tristeza ao descobrir que por mais de tres anos tinha servido de brinquedo para as crianças. Lavou a cara borrada de tintas, tirou de cima de si os trapos coloridos, as lagartixas e os sapos ressecados, e as camândulas e antigos co-lares árabes que lhe haviam pendurado por todo o corpo, e 317 pela primeira vez desde a morte de Amaranta abandonou ~ cama sem o auxílio de ninguém, para se incorporar de novo à vida familiar. O ânimo do coração invencível orientava-a nas trevas. Os que repararam nos seus tropeções e depararam com o seu braço arcangélico sempre levantado à altura da ca. beça pensaram que a muito custo agüentava com o corpo, mas ainda não acreditaram que estava cega. Ela não precisava vez para notar que os canteiros de flores, cultivados com tantc esmero desde a primeira reconstrução, tinham sido destruí. dos pela chuva e arrasados pelas escavações de Aureliano Se. gundo, e que as paredes e o cimento do chão estavam racha• dos, os móveis bambos e desbotados, as portas desniveladas e a família ameaçada por um espírito de resignação e desgra ça que não teria sido concebível em seu tempo. Movendo-sE às apalpadelas pelos quartos vazios, percebia o ronco contí nuo do cupim furando as madeiras e o tesourar da traça no: guarda-roupas e o estrépito devastador das enormes formiga ruivas que tinham prosperado no dilúvio e estavam escavan-do o cimento da casa. Um dia abriu o baú dos santos e teve que pedir auxílio a Santa Sofía de la Piedad para se livrar das baratas que pularam de dentro e que já haviam pulverizado a roupa. “Não é possível viver neste desleixo”, dizia. “Neste caminho vamos acabar sendo devorados pelos bichos.” A par. tir daí não teve um minuto de descanso. De pé antes do ama. nhecer, recorria a quem estivesse disponível, inclusive às criari• ças. Pôs ao sol as escassas roupas que ainda estavam em con~ dições de serem usadas, afugentou as baratas com inespera• dos ataques de inseticida, raspou as veias do cupim nas por. tas e janelas e asfixiou as formigas com cal virgem nas suas galerias. A febre da restauração acabou por levá-la aos quar-tos esquecidos. Fez desembaraçar de escombros e teias de ara-nha o quarto onde José Arcadio Buendía tinha queimado os miolos procurando a pedra filosofal, colocou em ordem a ofi-cina de ourivesaria, que fora revirada pelos soldados, e por fim pediu as chaves do quarto de Melquíades para ver em que estado se encontrava. Fiel à vontade de José Arcadio Segun. do, que havia proibido qualquer intromissão enquanto não houvesse um indício real de que tivesse morrido, Santa Sofia 318 de la Piedad recorreu a toda espécie de subterfúgios para de-sorientar Ürsula. Mas era tão inflexível a sua determinação de não abandonar aos insetos nem o mais escondido e inútil canto da casa que derrubou quantos obstáculos lhe puseram pela frente e ao fim de três dias de insistência conseguiu fazer com que lhe abrissem o quarto. Teve que se agarrar no marco da porta para que o mau cheiro não a derrubasse, mas foram necessários apenas dois segundos para que ela se lembrasse de que ali estavam guardados os setenta e dois penicos das cole-giais e que numa das primeiras noites de chuva uma patrulha de soldados tinha revistado a casa procurando José Arcadio Segundo e não pudera encontrá-lo. — Bendito seja Deus! — exclamou, como se o estivesse enxergando perfeitamente. — Tanto trabalho para lhe ensi-nar boas maneiras e você acaba vivendo como um porco. José Arcadio Segundo continuava relendo os pergami-nhos. A única coisa visível na intrincada maranha de cabelo eram os dentes listrados de lama verde e os olhos imóveis. Ao reconhecer a voz da bisavó, virou a cabeça para a porta, tra-tou de sorrir e, sem saber, repetiu uma antiga frase de Ursula. — Que se há de fazer — murmurou — o tempo passa. — E verdade — disse Ürsula — mas não tanto. Ao dizê-lo, teve consciência de estar dando a mesma res-posta que recebera do Coronel Aureliano Buendía na sua cela de sentenciado e mais uma vez estremeceu com a comprova-ção de que o tempo não passava, como ela acabava de admi-tir, mas girava em círculo. Nem assim, porém, deu oportuni-dade à resignação. Ralhou com José Arcadio Segundo como se ele fosse uma criança e se empenhou em fazê-lo tomar ba- nho e se barbear e emprestar a sua força para acabar de res-taurar a casa. A simples idéia de abandonar o quarto que lhe havia proporcionado a paz aterrorizou José Arcadio Segun-do. Gritou que não havia poder humano capaz de fazê-lo sair, porque não queria ver o trem de duzentos vagões carregados de mortos que toda tarde partia de Macondo para o mar. “São todos os que estavam na estação”, gritava. “Três mil quatro-centos e oito.” Só então Ursula compreendeu que ele estava num mundo de trevas mais impenetrável que o seu, tão iii- 319 transponfvel e solitário como o do bisavô. Deixou-o no to, mas conseguiu que não voltassem a botar cadeado na por ta, que fizessem a limpeza todos os dias, que jogassem os nicos no lixo e só deixassem um, e que mantivessem José cadio Segundo tão limpo e apresentável como estivera o bisr vô no seu longo cativeiro debaixo do castanheiro. No como ço, Fernanda interpretava aquela faina como um acesso de.. cura senil e a muito custo reprimia a exasperação. Mas Arcadio anunciou-lhe de Roma por essa época que vir a Macondo antes de fazer os votos perpétuos e a boa” cia infundiu-lhe tal entusiasmo que de um momento para tro se viu regando as flores quatro vezes ao dia para que filho não fosse ter má impressão da casa. Foi esse mesmo lo centivo que a induziu a apressar a sua correspondência co os médicos invisíveis e a repor na varanda os vasos de fe,A e orégão e os de begônias, muito antes de Ursula perceber -tinham sido destruídos pela fúria exterminadora de A no Segundo. Mais tarde vendeu a baixela de prata e louça de cerâmica, sopeiras e conchas de folha e talheres ~ alpaca, e empobreceu com eles as cristaleiras acostumadas a louça da Companhia das Índias e com os cristais da Bc mia. Úrsula tentava ir sempre mais longe. “Abram portas janelas”, gritava. “F~çam carne e peixe, comprem as tart rugas maiores, que os forasteiros venham estender as teiras nos cantos e urinar nas roseiras, que se sentem a t para comer quantas vezes quiserem e que arrotem e jem e sujem tudo de lama com as suas botas e façam colos o que tiverem vontade, porque esta é a única maneira de e~ pantar a ruína.” Mas era uma ilusão vã. Já estava velha - mais e vivendo de sobra para repetir o milagre dos anim~ nhos de caramelo e nenhum dos seus descendentes herdara sua fortaleza. A casa continuou fechada por ordem Fernanda. Aureliano Segundo, que tornara a levar os seus baús ra a casa de Petra Cotes, mal dispunha de meios para que família não morresse de fome. Com a rifa da mula, Petra tes e ele tinham comprado outros animais com os quais seguiram montar um negócio rudimentar de rifas. Aureliar 320 Segundo andava de casa em casa oferecendo os bilhetinhos que ele mesmo pintava com tinta de cor para torná-los mais atraentes e convincentes e talvez não percebesse que muitos compravam por gratidão e a maioria por compaixão. Entre-tanto, mesmo os mais piedosos compradores adquiriam a opor-tunidade de ganhar um leitão por vinte centavos ou uma no-vilha por trinta e dois e se entusiasmavam tanto com a espe- rança que na noite de terça-feira abarrotavam o quintal de Pe-tra Cotes esperando o momento em que uma criança escolhi-da ao acaso tirasse da bolsa o número premiado. Aquilo não demorou em se transformar numa feira semanal, pois desde o entardecer se instalavam no quintal mesas de frituras e ten-das de bebidas, e muitos dos favorecidos sacrificavam ali mes-mo o animal ganho, com a condição de que os outros dessem a música e a aguardente, de modo que sem tê-lo desejado Au-reliano Segundo encontrou-se de repente tocando outra vez o acordeão e participando de modestos torneios de voracida-de. Estas humildes réplicas das farras de outros tempos servi-ram para que o próprio Aureliano Segundo descobrisse o quan-to tinha decaído o seu ânimo e até que ponto tinha secado o seu gênio de tocador de cumbia. Era um homem mudado. Os cento e vinte quilos que chegara a ter na época em que fora desafiado pela Elefanta tinham-se reduzido a setenta e oito; a cândida e estofada cara de tartaruga se transformara em ca-ra de iguana, e sempre estava próxima do aborrecimento e do cansaço. Para Petra Cotes, entretanto, nunca tinha sido me-lhor homem do que no momento, talvez porque confundisse com o amor a compaixão que ele lhe inspirava e o sentimento de solidariedade que em ambos a miséria tinha despertado. A cama desmantelada deixou de ser lugar de exaltações e se transformou em refúgio de confidências. Liberados dos espe-lhos repetidores que tinham vendido para comprar animais de rifa e dos damascos e veludos concupiscentes que a mula co-mera, ficavam acordados até muito tarde com a inocência de dois avós insones, aproveitando para fazer cálculos e contar centavos o tempo que antes esbanjavam em se esbanjarem a si próprios. As vezes eram surpreendidos pelos primeiros ga-los fazendo e desfazendo montinhos de moedas, tirando um 321 pouco daqui para botar ali, de modo a que este chegasse p contentar Fernanda, aquele para os sapatos de Amaranta U sula, este outro para Santa Sofia de la Piedad, que não treava um vestido desde seu tempo de mocinha, este param dar fazer o caixão se Ürsula morresse, este para o café q subia um centavo por libra de três em três meses, este pa o açúcar que cada vez adoçava menos, este para a lenha q ainda estava molhada pelo dilúvio, este outro para o papel a tinta de cores dos bilhetes, e aquele que sobrava para ir amo tizando o valor da vitela de abril, da qual milagrosamente s varam a pele, porque teve carbúnculo sintomático quando• estavam vendidos quase todos os números da rifa. Eram C puras aquelas missas de pobreza que sempre destinavam a m lhor parte a Fernanda, e nunca o fizeram por remorso ou p caridade, mas porque o bem-estar dela lhes importava m que o seu próprio. O que na verdade acontecia, embora ne nhum dos dois percebesse, era que ambos pensavam em Fe~ nanda como na filha que gostariam de ter e não tiveram a pont de em certa ocasião se terem resignado a comer angu duran três dias para que ela pudesse comprar uma toalha holande sa. Entretanto, por mais que se matassem de trabalho, por mai dinheiro que surrupiassem e por mais truques que imaginas~ sem, os seus anjos~da guarda dormiam de cansaço enquantQ eles punham e tiravam moedas tentando apenas que desse pa~ ra viver. Na insônia que lhes traziam as contas ruins~ perguntavam-se o que tinha acontecido no mundo para qu~ os animais não parissem com o mesmo desconcerto de antes~ por que o dinheiro se esvaía das mãos e por que o povo que há pouco tempo queimava maços de notas na cumbia consi-derava um assalto à mão armada cobrar doze centavos pela rifa de seis galinhas. Aureliano Segundo pensava sem dizer que o mal não estava no mundo, mas em algum lugar oculto dc misterioso coração de Petra Cotes, onde acontecera alguma coisa durante o dilúvio que tornara os animais estéreis e o di~ nheiro fugidio. Intrigado com esse enigma, penetrou tão pro. fundamente os sentimentos dela que procurando o interessc encontrou o amor, pois tentando fazer com que ela o amass acabou por amá-la. Petra Cotes, por outro lado, amava-o ma~ 322 à medida que sentia aumentar o seu carinho, e foi assim que na plenitude do outono voltou a acreditar na superstição ju-venil de que a pobreza era uma servidão de amor. Ambos evo-cavam agora como um estorvo as farras desatinadas, a rique-za aparatosa e a fornicação sem freios, e se lamentavam de quanta vida lhes custara encontrar o paraíso da solidão parti-lhada. Loucamente apaixonados ao fim de tantos anos de cum-plicidade estéril, gozavam o milagre de se amarem tanto na mesa como na cama, e chegaram a ser tão felizes que quando já eram dois anciãos esgotados continuavam brincando como coelhinhos e brigando como cachorros. As rifas nunca mais deram nada. No começo, Aureliano Segundo se ocupava durante três dias da semana, fechado no seu antigo escritório de criador de gado em desenhar bilhete por bilhete, pintando com um certo primor uma vaquinha ver-melha, um porquinho verde ou um grupo de galinhas azuis, conforme fosse o animal rifado, e modelava com uma boa imi-tação das letras de imprensa o nome que pareceu bom a Petra Cotes para batizar o negócio: Rifas da Divina Providência. Mas, com o tempo, ficou tão cansado de desenhar até dois mil bilhetes por semana que mandou fazer os animais, o no- me e os números em carimbos de borracha, e então o traba-lho se reduziu a umedecê-los em almofadinhas de cores dife-rentes. Nos últimos anos ocorreu-lhes substituir os números por adivinhações, de modo a que o prêmio se repartisse entre todos os que acertassem, mas o sistema acabou por ser tão complicado e se prestar a tantas desconfianças que desistiram na segunda tentativa. Aureliano Segundo andava tão ocupado tentando con-solidar o prestígio das suas rifas que mal lhe sobrava tempo para ver as crianças. Fernanda colocou Amaranta Úrsula nu-ma escolinha particular onde não se recebiam mais de seis alu-nas, mas se negou a permitir que Aureliano freqüentasse a es-cola pública. Achava que já tinha cedido demais ao aceitar que abandonasse o quarto. Além disso, nas escolas dessa época só se recebiam filhos legítimos de casamentos católicos e, na certidão de nascimento que tinham prendido com um alfinete de fralda na camisolinha de Aureliano quando o mandaram 323 324 falando sozinha, e perdida num labirinto de mortos. “Fogo!”, gritou uma vez aterrorizada e, por um instante, semeou o pâ-nico pela casa, mas o que estava anunciando era o incêndio de uma cavalariça que tinha presenciado aos quatro anos de idade. Chegou a misturar de tal modo o passado com a atua-lidade que nos dois ou tres clarões de lucidez que teve antes de morrer ninguém soube ao certo se falava do que sentia ou do que recordava. Pouco a pouco foi-se reduzindo, fetizando-se, mumificando-se em vida, a ponto de nos últimos meses ser uma ameixa seca perdida dentro da camisola, e o braço sem-pre levantado acabou por parecer com a pata de um macaco. Ficava imóvel vários dias e Santa Sofia de la Piedad tinha que sacudi-la para se convencer de que estava viva e a sentava no colo para alimentá-la com colherinhas de água com açúcar. Parecia uma anciã recém-nascida. Amaranta Ursula e Aure-liano levavam-na e traziam-na pelo quarto, deitavam-na no altar para ver que era pouco maior que o Deus Menino e, nu-ma tarde, esconderam-na num armário da despensa onde as ratazanas poderiam t&la comido. Num Domingo de Ramos entraram no quarto enquanto Fernanda estava na missa e car-regaram Ursula pela nuca e pelos tornozelos. — Coitada da tataravozinha — disse Amaranta Ürsula — morreu de velhice. Ürsula se sobressaltou. — Estou viva! — disse. — Olha só — disse Amaranta Úrsula, escondendo o ri-so — nem sequer respira. — Estou falando! — gritou Úrsula. — Nem sequer fala — disse Aureliano. — Morreu como um passarinho. Então Úrsula se rendeu à evidencia. “Meu Deus”, excla-mou em voz baixa. “Quer dizer que isto é a morte.” Come-çou uma oração interminável, atropelada, profunda, que se prolongou por mais de dois dias e que na terça-feira tinha de- generado numa barafunda de súplicas a Deus e de conselhos práticos para que as formigas ruivas não derrubassem a casa, para que nunca deixassem apagar a lâmpada diante do retra-to de Remedios e para que cuidassem de que nenhum Buen- 325 dia viesse a casar com alguém do mesmo sangue, porque filhos nasciam com rabo de porco. Aureliano Segundo tratc de aproveitar o delírio para que ela lhe confessasse onde est va enterrado o ouro, mas outra vez as súplicas foram inútei “Quando aparecer o dono”, Ürsula disse, “Deus há i iluminá-lo para que o encontre.” Santa Sofia de la Piedadt ve a certeza de que a encontraria morta de um momento pa o outro, porque observava por esses dias uma certa confusl na natureza: as rosas cheiravam a quenopódio, caíra-lhe uu cuja de grãos-de-bico no chão e os grãos ficaram em orde geométrica perfeita, em forma de estrela-do-mar, e certa fl( te vira passar no céu uma fila de discos luminosos alaranjadc Amanheceu morta na quinta-feira santa. Na última v em que a ajudaram a fazer as contas da sua idade, na épo da companhia bananeira, calcularam-na entre os cento e quin e os cento e vinte e dois anos. Enterraram-na num caixão: nho que era pouco maior que a cestinha em que fora trazii Aureliano e muito pouca gente assistiu ao enterro, em pai porque não eram muitos os que se lembravam dela e em pai porque nesse meio-dia fez tanto calor que os pássaros de~ rientados se arrebentavam como perdigotos contra as pai des e rasgavam as telas metálicas das janelas para morrer 11 quartos. No começo todo mundo pensou que fosse uma peste.. donas-de-casa se extenuavam de tanto varrer pássaros m~ tos, sobretudo na hora da sesta, e os homens os jogavam rio às carradas. No Domingo da Ressurreição, o centená Padre Antonio Isabel afirmou no púlpito que a morte dos p saros obedecia à má influência do Judeu Errante, que ele m mo tinha visto na noite anterior. Descreveu-o como um hít do de bode cruzado com fêmea herege, uma besta infernal ci alento calcinava o ar e cuja visita determinaria a concepç de monstros pelas recém-casadas. Não foram muitos os q prestaram atenção à sua conversa apocalíptica, porque o po. vo estava convencido de que o pároco tresvariava por causa da idade. Mas uma mulher acordou todo mundo na madru. gada de quarta-feira, porque encontrara uns rastos de bíped de casco fendido. Eram tão verdadeiros e inconfundíveis qw 326 os que foram vê-los não puseram em dúvida a existência de uma criatura horrível semelhante à descrita pelo pároco e se associaram para montar armadilhas nos quintais. Foi assim que levaram a e feito a captura. Duas semanas depois da mor- te de Ursula, Petra Cotes e Aureliano Segundo acordaram so-bressaltados com um choro de bezerro descomunal que che-gava da vizinhança. Quando se levantaram, já um grupo de homens estava soltando o monstro das afiadas varas que ti-nham posto no fundo de uma fossa coberta com folhas secas, e ele já deixara de berrar. Pesava como um boi, apesar da sua estatura não ser maior que a de um adolescente, e das suas feridas manava um sangue verde e viscoso. Tinha o corpo co-berto por um pêlo áspero, cheio de carrapatos miúdos, e a pele petrificada por uma crosta de caracas, mas ao contrário da descrição do pároco, as suas partes humanas eram mais de anjo doente do que de homem, porque as mãos eram limpas e há-beis, os olhos grandes e crepusculares, e tinha nas omoplatas os cotocos cicatrizados e calosos de asas potentes, que deve-riam ter sido desbastadas com machado de lavrador. Penduraram-no pelos tornozelos numa amendoeira da praça para que ninguém ficasse sem vê-lo e quando começou a apo- drecer incineraram-no numa fogueira, porque não se pôde de-terminar se a sua natureza bastarda era de animal para jogar no rio ou de cristão para sepultar. Nunca se verificou se na realidade foi por causa dele que morreram os pássaros, mas as recém-casadas não conceberam os monstros anunciados, nem diminuiu a intensidade do calor. Rebeca morreu no final desse ano. Argénida, sua criada de toda a vida, pediu ajuda às autoridades para derrubar a porta do quarto onde a sua patroa estava trancada há três dias, e a encontraram na cama solitária, enroscada como um cama-rão, com a cabeça pelada pela calvície e o polegar metido na boca. Aureliano Segundo se encarregou do enterro e tentou restaurar a casa para vendê- la, mas a destruição estava tão en-carniçada sobre ela que as paredes descascavam quando se aca-bavam de pintar e não houve argamassa bastante grossa para impedir que o mato triturasse o chão e a hera apodrecesse as vigas. 327 Tudo estava assim desde o dilúvio. A inércia das pessoas contrastava com a voracidade do esquecimento que pouco a pou-co ia consumindo sem piedade as lembranças, ao extremo de por esses tempos, num novo aniversário do tratado de Neer-lândia, chegarem a Macondo uns emissários do Presidente da República para entregar finalmente a condecoração várias vezes recusada pelo Coronel Aureliano Buendía e perderam uma tar-de inteira procurando alguém que lhes indicasse onde pode-riam encontrar algum dos seus descendentes. Aureliano Se-gundo esteve tentado a recebê-la, pensando que era uma me-dalha de ouro maciço, mas Petra Cotes persuadiu-o da indig-nidade quando os emissários já preparavam as comunicações oficiais e os discursos para a cerimônia. Também por essa épo-ca voltaram os ciganos, os últimos herdeiros da ciência de Mel-quíades, e encontraram o povoado tão acabado e seus habi-tantes tão afastados do resto do mundo que tornaram a en-trar nas casas arrastando ferros imantados, como se na ver-dade fossem a última descoberta dos sábios babilônicos, tor-naram a concentrar os raios solares com a lupa gigantesca e não faltou quem ficasse de boca aberta vendo caírem as pa-nelas e rolarem os caldeirões e quem pagasse cinqüenta centa-vos para se assombrar com uma cigana que tirava e botava a dentadura postiçz Um desengonçado trem amarelo, que não trazia nem levava ninguém e que mal se detinha na estação deserta, era a única coisa que restava do trem multitudinário no qual o Sr. Brown enganchava o seu vagão com teto de vi-dro e poltronas de bispo e dos trens fruteiros de cento e vinte vagões que demoravam uma tarde inteira para passar. Os de-legados da Cúria que tinham vindo investigar a comunicação sobre a estranha mortandade dos pássaros e o sacrifício do Judeu Errante encontraram o Padre Antonio Isabel brincan-do de cabra-cega com as crianças e, pensando que a sua co-municação era produto de uma alucinação senil, levaram-no para um asilo. Pouco depois mandaram o Padre Augusto Án-gel, um cruzado da nova fornada, intransigente, audaz, teme-rário, que tocava pessoalmente os sinos várias vezes por dia para que não se entorpecessem os espíritos e que andava de casa em casa acordando os dorminhocos para que fossem à 328 missa, mas antes de completar um ano já estava vencido tam-bém pela negligência que se respirava no ar, pela poeira ar-dente que envelhecia e obstruía tudo, e pela moleza que cau-savam as almôndegas do almoço no calor insuportável da sesta. Depois da morte de Ürsula, a casa voltou a cair num aban-dono do qual não a poderia resgatar nem mesmo uma vonta-de tão resoluta e vigorosa como a de Amaranta Ursula, que muitos anos depois, sendo uma mulher sem preconceitos, alegre e moderna, com os pés bem firmados na terra, abriu portas e janelas para espantar a ruína, restaurou o jardim, extermi-nou as formigas ruivas que já andavam em pleno dia pela va-randa, e tratou inutilmente de despertar o esquecido espírito de hospitalidade. A paixão claustral de Fernanda construiu um dique intransponível nos cem anos torrenciais de Úrsula. Não só se negou a abrir as portas quando passou o vento ári-do, como também mandou pregar as janelas com cruzes de madeira, obedecendo à ordem paterna de se enterrar em vi-da. A dispendiosa correspondência com os médicos invisíveis terminou em fracasso. Depois de numerosos adiamentos, trancou-se no quarto na data e hora marcadas, coberta somente por um lençol branco e com a cabeça para o Norte e, à uma da madrugada, sentiu que lhe taparam a cara com um lenço embebido num líquido gelado. Quando acordou, o sol brilhava na janela e ela tinha uma enorme costura em forma de arco que começava na virilha e terminava no esterno. Mas antes de que cumprisse o repouso prescrito recebeu uma carta des-concertada dos médicos invisíveis, que diziam tê-la revistado durante seis horas sem encontrar nada que correspondesse aos sintomas tantas vezes e tão escrupulosamente descritos por ela. Na realidade, o seu hábito pernicioso de não chamar as coi-sas pelo nome tinha dado origem a uma nova confusão, pois a única coisa que os cirurgiões telepáticos encontraram foi um caimento de útero que podia ser corrigido com o uso de um pessário. A desiludida Fernanda tentou obter uma informa-ção mais precisa, mas os correspondentes ignotos não torna-ram a responder as suas cartas. Sentiu-se tão angustiada pelo peso de uma palavra desconhecida que decidiu amordaçar a vergonha para perguntar o que era um pessário e só então sou- 329 be que o médico francês se pendurara numa viga três mes antes e tinha sido enterrado contra a vontade do povo por antigo companheiro de armas do Coronel Aureliano Buendí Então, confiou-se a seu filho José Arcadio e este lhe mandc, os pessários de Roma com um folheto explicativo, que ela.. gou na privada depois de aprendê-lo de memória para que guém viesse a conhecer a natureza dos seus quebrantos. uma precaução inútil, porque as únicas pessoas que viviam casa mal reparavam nela. Santa Sofía de la Piedad vagava -ma velhice solitária, cozinhando o pouco que comiam e d4 cada quase por completo ao cuidado de José Arcadio Segu do. Amaranta Ursula, herdeira de certos encantos de Ren. dios, a bela, ocupava em fazer as suas tarefas escolares o que antes perdia em atormentar Ursula e começava a festar um bom juízo e uma consagração aos estudos que ram renascer em Aureliano Segundo a boa esperança que inspirara Meme. Prometera mandá-la terminar os estudos e Bruxelas, de acordo com um costume estabelecido no ter.. da companhia bananeira, e essa ilusão levara-o a tentar ver as terras devastadas pelo dilúvio. As poucas vezes em era visto em casa agora, era por causa de Amaranta Ii pois com o tempo se tinha transformado num estranho Fernanda e o peque~io Aureliano ia ficando esquivo e mesmado à medida que se aproximava da puberdade. liano Segundo confiava na velhice para abrandar o coraç de Fernanda, para que o menino pudesse se incorporar a.. de um povoado onde certamente ninguém se daria o trab de fazer especulações desconfiadas sobre a sua origem. o próprio Aureliano parecia preferir a clausura e a solidão não revelava a menor malícia para conhecer o mundo que meçava na porta da rua. Quàndo Úrsula fez abrir o qu~ de Melquíades, ele ficou rondando, bisbilhotando pela entreaberta, e ninguém percebeu em que momento terminc vinculado a José Arcadio Segundo por um afeto recíprocr Aureliano Segundo descobriu essa amizade muito tempo pois de iniciada, quando ouviu o menino falando da mati da estação. Aconteceu num dia em que alguém se lament na mesa da ruína em que afundara o povoado desde que a 330 panhia bananeira o abandonara e Aureliano contradisse com uma maturidade e um conhecimento de adulto. O seu ponto de vista, contrário à interpretação geral, era que Macondo ti-nha sido um lugar próspero e bem encaminhado até que o per- turbasse, corrompesse e explorasse a companhia bananeira, cujos engenheiros provocaram o dilúvio como um pretexto para fugir aos compromissos com os trabalhadores. Falando de ma-neira tão racional que a Fernanda pareceu uma paródia sacrí-lega de Jesus entre os doutores, o menino descreveu com de-talhes precisos e convincentes como o exército metralhara mais de três mil trabalhadores encurralados na estação e como car-regara os cadáveres num trem de duzentos vagões e os atirara ao mar. Convencida como a maioria das pessoas da verdade oficial de que não tinha acontecido nada, Fernanda se escan-dalizou com a idéia de que o menino tivesse herdado os ins-tintos anarquistas do Coronel Aureliano Buendía e ordenou lhe que se calasse. Aureliano Segundo, pelo contrário, reco-nheceu a versão do seu irmão gêmeo. Na realidade, apesar de todo mundo considerá-lo louco, José Arcadio Segundo era na-quele tempo o habitante mais lúcido da casa. Ensinou o pe-queno Aureliano a ler e a escrever, iniciou-o no estudo dos pergaminhos e incutiu-lhe uma interpretação tão pessoal do que significou para Macondo a companhia bananeira que mui-tos anos depois, quando Aureliano se incorporasse ao mun-do, haveria de se pensar que contava uma versão alucinada, porque era radicalmente contrária à falsa que os historiado-res tinham admitido e consagrado nos textos escolares. No quartinho isolado, aonde nunca chegou o vento árido, nem a poeira, nem o calor, ambos recordavam a visão atávica de um ancião de chapéu de asas de corvo que falava do mundo de costas para a janela, muitos anos antes que eles nascessem. Ambos descobriram ao mesmo tempo que ali sempre era março e sempre era segunda-feira, e então compreenderam que José Arcadio Buendía não estava tão louco como contava a famí-lia e sim que era o único que dispusera de lucidez bastante pa-ra vislumbrar a verdade de que também o tempo sofria trope-ços e acidentes e podia, portanto, se estilhaçar e deixar num quarto uma fração eternizada. José Arcadio Segundo conse-331 guira, além disso, classificar as letras criptográficas dos per-gaminhos. Estava certo de que correspondiam a um alfabeto de quarenta e sete a cinqüenta e três caracteres que, separa-dos, pareciam aranhazinhas e carrapatos e que, na primorosa caligrafia de Melquíades, pareciam peças de roupa postas pa-ra secar num varal. Aureliano se lembrava de haver visto uma tabela semelhante na enciclopédia inglesa, de modo que a le-vou ao quarto para compará-la com a de José Arcadio Segun-do. Eram iguais, realmente. Na época em que teve a idéia da loteria de adivinhações, Aureliano Segundo acordava com um nó na garganta, como se estivesse reprimindo a vontade de chorar. Petra Cotes in-terpretou isso como um dos tantos transtornos provocados pe má situação e todas as manhãs, durante mais de um ano, pincelava-lhe o céu da boca com mel de abelha e lhe dava xa-rope de rábano. Quando o nó da garganta se fez tão apertado que lhe custava esforço respirar, Aureliano Segundo visitou Pilar Temera para ver se ela conhecia alguma erva que lhe trou-xesse alívio. A inquebrantável avó, que tinha chegado aos cem anos à frente de um bordelzinho clandestino, não confiou nas superstições terapêuticas, mas consultou as cartas sobre o pro-blema. Viu o cavalo de ouro com a garganta ferida pelo aço do valete de espadas e deduziu que Fernanda estava tentando fazer o marido voltar para casa mediante o desprestigiado sis-tema de fincar alfinetes no seu retrato, mas provocara-lhe um tumor interno pelo mau conhecimento da feitiçaria. Como Au.~ reliano Segundo não tinha outros retratos além dos do casa-mento e as cópias estavam completas no álbum familiar, tinuou procurando por toda a casa durante as distrações esposa e finalmente encontrou, no fundo do guarda-roupa meia dúzia de pessários nas suas caixinhas originais. do que as rodinhas de borracha vermelha eram objetos de ‘-—xaria, guardou uma no bolso para que Pilar Temera a Esta não pôde explicar a sua natureza, mas lhe pareceu: suspeita que por via das dúvidas mandou trazer a meia e queimou-a numa fogueira que fez no quintal. Para rar o suposto malefício de Fernanda, ordenou a Aui -gundo que sangrasse uma galinha choca e a enterrasse 332 4ebaixo do castanheiro, e ele o fez de tão boa fé que quando acabou de dissimular com folhas secas a terra revolvida já sen-tia que respirava melhor. Por Outro lado, Fernanda interpre-tou o desaparecimento como uma represália dos médicos in-visíveis e coseu na parte interior da camisola um bolsinho re-dobrado onde guardou os pessários novos que lhe mandou o filho. Seis meses depois de enterrar a galinha, Aureliano Segun-do acordou à meia-noite com um acesso de tosse e sentindo que o estrangulavam por dentro com presas de caranguejo. Compreendeu então que, por muitos pessários mágicos que destruísse e muitas galinhas de esconjuro que esfaqueasse, a única e triste verdade era que estava morrendo. Não disse na-da a ninguém. Atormentado pelo medo de morrer sem man-dar Ainaranta Ursula para Bruxelas, trabalhou como nunca, e em vez de uma, fez três rifas semanais. Desde muito cedo era visto percorrendo o povoado, mesmo nos bairros mais afas-tados e miseráveis, tentando vender os bilhetinhos com uma ansiedade que só era concebível num moribundo. “Aqui está a Divina Providência”, apregoava. “Não a deixem escapar, :que só aparece uma vez em cada cem anos.” Fazia comove-~dores esforços para parecer alegre, simpático, loquaz, mas bas- tava ver o seu suor e a sua palidez para saber que não podia com a alma. As vezes se desviava para prédios vazios, onde ninguém o visse, e se sentava um momento para descansar das tenazes que o despedaçavam por dentro. Ainda à meia- noite estava no bairro de tolerância, tentando consolar com prédi-cas de boa sorte as mulheres solitárias que choravam junto às vitrolas. “Este número não sai há quatro meses”, dizia, ‘mostrando os bilhetinhos. “Não o deixe escapar, que a vida é mais curta do que a gente pensa.” Acabaram por perder-lhe o respeito, por zombar dele, e já nos últimos meses não o cha-mavani de “Seu” Aureliano, como o tinham feito sempre, mas o chamavam, na sua própria cara, de “Seu” Divina Provi-dencia. A sua voz foi-se enchendo de notas falsas, desafinan- do, e acabou por se apagar num ronco de cachorro, mas ain-da assim teve força de vontade para não deixar que decaísse a expectativa pelos prêmios no quintal de Petra Cotes. Entre-333 tanto, à medida que ficava sem voz e percebia que em pouco tempo já não poderia suportar a dor, ia compreendendo que não era com porcos e cabritos rifados que a sua filha chegaria a Bruxelas, de modo que concebeu a idéia de fazer a fabulosa rifa das terras destruídas pelo dilúvio, que bem podiam ser restauradas por quem dispusesse de capital. Foi uma iniciati-va tão espetacular que o próprio alcaide se ofereceu para anunciá-la por decreto e se formaram sociedades para com-prar bilhetes a cem pesos cada um, que se esgotaram em me-nos de uma semana. Na noite da rifa, os ganhadores fizeram uma festa aparatosa, comparável apenas às dos bons tempos da companhia bananeira, e Aureliano Segundo tocou no acor-deão pela última vez as canções esquecidas de Francisco, o Ho-mem, mas já não pôde cantá- las. Dois meses depois, Amaranta Ursula foi para Bruxelas. Aureliano Segundo entregou-lhe não só o dinheiro da rifa ex-traordinária, mas também o que tinha conseguido economi-zar nos meses anteriores e o muito escasso que obtivera na ven-da da pianola, do clavicórdio e de outros cacarecos caídos em desgraça. Segundo os seus cálculos, esses fundos chegavam para os estudos, de modo que só ficava faltando o valor da passagem de volta. Fernanda se opôs à viagem até o último momento, escandaflzada com a idéia de que Bruxelas estives-se tão próxima da perdição de Paris, mas se tranqüilizou com uma carta que o Padre Ángel lhe deu para uma pensão de jo-vens católicos dirigida por religiosas, onde Amaranta Úrsula prometeu viver até o final dos estudos. Além disso, o pároco conseguiu que ela viajasse aos cuidados de um grupo de fran-ciscanas que iam para Toledo, onde esperavam encontrar gente de confiança para mandá-la para a Bélgica. Enquanto se adian-tava a apressada correspondência que tornou possível esta coor-denação, Aureliano Segundo, ajudado por Petra Cotes, ocupou-se da bagagem de Amaranta Úrsula. Na noite em que prepararam um dos baús nupciais de Fernanda, as coisas es-tavam tão bem arrumadas que a estudante sabia de cor quais eram as roupas e os chinelos de pelúcia com que devia fazer a travessia do Atlântico, e o sobretudo de lã azul com botões de cobre e os sapatos de couro com que devia desembarcar. 334 4. Sabia também como devia andar para não cair n’água quan-do subisse a bordo pela prancha, que em nenhum momento devia se separar das freiras nem sair do camarote se não fosse para comer e que por nenhum motivo devia responder às per-guntas que os desconhecidos de qualquer sexo lhe fizessem em alto-mar. Levava um vidrinho de gotas para enjôo e um ca-derno escrito pelo próprio punho e letra do Padre Angel, com seis orações para esconjurar a tempestade. Fernanda fabricou- lhe um cinturão de lona para que guardasse o dinheiro e indicou-lhe a forma de usá-lo ajustado ao corpo, de modo que não tivesse que tirá-lo nem mesmo para dormir. Tentou dar-lhe de presente o penico de ouro lavado com água sanitária e desinfetado com álcool, mas Amaranta Ürsula recusou-o te-mendo que as suas companheiras de colégio zombassem dela. Poucos meses depois, na hora da morte, Aureliano Segundo haveria de se lembrar dela como a vira da última vez, tentan- do abaixar sem conseguir o vidro empoeirado do vagão de se-gunda classe, para escutar as últimas recomendações de Fer-nanda. Vestia um traje de seda cor-de- rosa com um raminho de flores artificiais no broche do ombro esquerdo; os sapatos de couro com fivela e salto baixo, e as meias de seda com li-gas elásticas na batata da perna. Tinha o corpo miúdo, o ca-belo solto e comprido e os olhos vivos que Úrsula tivera na sua idade, e a forma como se despedia sem chorar, mas tam-bém sem sorrir, revelava a mesma força de caráter. Andando junto com o vagão à medida que acelerava e levando Fernan-da pelo braço para que não fosse tropeçar, Aureliano Segun-do mal pôde corresponder com um aceno de mão, quando a filha lhe mandou um beijo com a ponta dos dedos. Os espo-sos permaneceram imóveis sob o sol abrasador, olhando co-mo o trem ia se confundindo com o ponto negro do horizonte e de braço dado pela primeira vez desde o dia do casamento. A nove de agosto, antes que se recebesse a primeira carta de Bruxelas, José Arcadio Segundo conversava com Aurelia-no no quarto de Melquíades e sem que viesse ao caso disse: — Lembra-te sempre de que eram mais de três mil e que os jogaram ao mar. Em seguida caiu de bruços sobre os pergaminhos e mor- 335 reu com os olhos abertos. Nesse mesmo instante, na cama Fernanda, o seu irmão gêmeo chegou ao fim do e terrível martírio dos caranguejos de ferro que lhe carco’ a garganta. Uma semana antes voltara para casa, sem voz,-fôlego, e quase só pele e ossos, com os seus baús errante~ o seu acordeão de perdulário, para cumprir a promessa de mi rer junto à esposa. Petra Cotes ajudou-o a juntar as suas rc. pas e despediu-o sem derramar uma lágrima, mas se e~ de lhe dar os sapatos de verniz que ele queria trazer no de. De modo que quando soube que tinha morrido, vestiu-de negro, embrulhou as botinas num jornal e pediu são a Fernanda para ver o cadáver. Fernanda não a deixr passar da porta. — Ponha-se no meu lugar — suplicou Petra Cotes.. Imagine o quanto eu o amei para agüentar esta humilh — Não há humilhação que uma concubina não mere — replicou Fernanda. — De maneira que pode esperar morra outro dos tantos para calçar-lhe estas botinas. Em cumprimento da sua promessa, Santa Sofía de la dad degolou com uma faca de cozinha o cadáver de José cadio Segundo para se assegurar de que não o enterrassem~ vo. Os corpos foram colocados em ataúdes idênticos e ali -e viu que tornavam a ser idênticos na morte como tinham até a adolescência. Os velhos companheiros de farra de Aur~ liano Segundo puseram sobre o caixão uma coroa que uma fita roxa com um letreiro: Afastem-se, vacas, que a é curta. Fernanda se indignou tanto com a irreverência mandou jogar a coroa no lixo. No tumulto da última h~ os bêbados tristes que o tiraram de casa confundiram os des e os enterraram em túmulos trocados. 336 ) :/ POR MUITO tempo Aureliano não abandonou o quarto de Melquíades. Aprendeu de cor as lendas fantásticas do livro sem capa, a síntese dos estudos de Hermann, o tímido, os apon-tamentos de ciência demonológica, as chaves da pedra filoso-fal, as predições de Nostradamus e as suas pesquisas sobre a peste, de modo que chegou à adolescência sem saber nada da sua época, mas com os conhecimentos básicos do homem me-dieval. A qualquer hora que entrasse no quarto, Santa Sofia de la Piedad o encontrava absorto na leitura. De manhã cedo, 337 levava-lhe uma caneca de café sem açúcar e, ao meio-dia, prato de arroz com fatias de banana frita, que era a única coi~ que se comia em casa depois da morte de Aureliano Segundc Preocupava-se em cortar-lhe o cabelo, catar-lhe os piolho adaptar para ele a roupa velha que encontrava nos baús quecidos e, quando começou a despontar-lhe o bigode, 1ev~. lhe a navalha de barbear e a vasilhinha de sabão do C Aureliano Buendía. Nenhum dos filhos deste foi tão com ele, nem mesmo Aureliano José, sobretudo pelas maç’ do rosto pronunciadas e pela linha bem marcada e um pouc dura dos lábios. Como acontecera com Ursula em relação Aureliano Segundo, quando este estudava no quarto, Sanl Sofia de la Piedad pensava que Aureliano falava sozinho. realidade, conversava com Melquíades. Num meio-dia arde. pouco depois da morte dos gêmeos, viu contra a revex ção da janela o ancião lúgubre com o chapéu de asas de vo, como a materialização de uma lembrança que estava sua memória desde muito antes de nascer. Aureliano tinha acr bado de classificar o alfabeto dos pergaminhos. De modo quando Melquíades lhe perguntou se descobrira em que gua estavam escritos, ele não vacilou em responder: — Em sânscrito — disse. Melquíades revelou que as suas oportunidades de v ao quarto estavam contadas. Mas ia tranqüilo aos prados morte definitiva, porque Aureliano tinha tempo para der o sânscrito nos anos que faltavam para que os pergami nhos completassem um século e pudessem ser decifrados. ele quem lhe indicou que no beco que ia dar no rio, e or nos tempos da companhia bananeira se adivinhava o futur~ e se interpretavam os sonhos, havia um sábio catalão que nha uma loja de livros onde havia um Sanskrit Primer. seria devorado pelas traças seis anos depois se ele não sasse em comprá-lo. Pela primeira vez, na sua longa vicia, Sofia de la Piedad deixou transparecer um sentimento e um sentimento de espanto, quando Aureliano pediu 1h~ trouxesse o livro que haveria de encontrar entre a Jerusaléir’ Libertada e os poemas de Milton, à extrema direita, na seguni prateleira da estante. Como não sabia ler, decorou o segred 338 e conseguiu o dinheiro com a venda de um dos dezessete pei-xinhos de ouro que restavam na oficina e que só ela e Aure-liano sabiam onde estavam desde a noite em que os soldados revistaram a casa. Aureliano avançava nos estudos de sânscrito, enquanto Melquíades ia-se fazendo cada vez menos assíduo e mais lon-gínquo, esfumaçando-se na claridade radiante do meio-dia. Da última vez que Aureliano o sentiu era apenas uma presen-ça invisível que murmurava: “Morri de febre nas dunas de Cm-gapura.” E o quarto se fez então vulnerável à poeira, ao ca-lor, ao cupim, às formigas ruivas, às traças que haveriam de transformar em pó a sabedoria dos livros e dos pergaminhos. Em casa não faltava o que comer. No dia seguinte à morte de Aureliano Segundo, um dos amigos que tinham levado a coroa com a inscrição irreverente se ofereceu para pagar a Fer-nanda um dinheiro que ficara devendo ao seu marido. A par-tir de então, todas as quartas-feiras, um mensageiro trazia um cesto de coisas de comer que davam bem para uma semana. Nunca ninguém soube que aquelas vitualhas quem mandava era Petra Cotes, com a idéia de que a caridade contínua era uma forma de humilhar a quem a humilhara. Entretanto, a raiva passou muito antes do que ela própria esperava e então continuou mandando a comida por orgulho e, finalmente, por compaixão. Várias vezes, quando lhe faltou o ânimo para ven-der bilhetes e o povo perdeu o interesse pelas rifas, ela pró-pria ficou sem comer para que Fernanda comesse e não dei-xou de cumprir o trato enquanto não viu passar o seu enterro. Para Santa Sofía de la Piedad a redução dos habitantes da casa devia ter sido o descanso a que tinha direito depois de mais de meio século de trabalho. Nunca se ouvira um só lamento daquela mulher sigilosa, impenetrável, que semeara na família os germes angélicos de Remedios, a bela, e a miste-riosa solenidade de José Arcadio Segundo, que consagrara uma. vida inteira de solidão e silêncio à educação de umas crianças que mal se lembravam que eram seus filhos e seus netos, e que se ocupara de Aureliano como se tivesse saído das suas entra-nhas, sem saber ela mesma que era sua bisavó. Só numa casa como aquela era concebível que sempre tivesse dormido nu- 339 ma esteira que estendia no chão da despensa, entre o noturno das ratazanas e sem nunca ter contado a ninguém que certa noite despertara com a pavorosa sensação de que alguém a estava olhando no escuro e era uma cobra que deslizava pe-lo seu ventre. Ela sabia que, se tivesse contado a Ürsula, esta a faria dormir na sua própria cama, mas isso foi na época em que ninguém prestava atenção a nada, enquanto não se gri-tasse pelo corredor afora, porque os trabalhos da padaria, os sobressaltos da guerra, o cuidado das crianças não deixavam tempo para se pensar na felicidade alheia. Petra Cotes, a quem nunca vira, era a única que se lembrava dela. Tomava conta para que tivesse um bom par de sapatos para sair, para que nunca lhe faltasse um vestido, mesmo nos tempos em que fa-ziam milagres com o dinheiro das rifas. Quando Fernanda che-gou em casa, teve motivos para acreditar que era uma criada eternizada e, embora várias vezes tivesse ouvido dizer que era a mãe do seu marido, aquilo lhe parecia tão incrível que de-morava mais em aprender que em esquecer. Santa Sofía de la Piedad nunca pareceu se incomodar com aquela posição su-balterna. Pelo contrário, tinha-se a impressão de que ela gos-tava de andar pelos cantos, sem uma trégua, sem um gemido, mantendo limpa e em ordem a imensa casa onde vivera desde a adolescência e qu~ particularmente nos tempos da compa-nhia bananeira mais parecia um quartel do que um lar. Mas quando Ürsula morreu, a diligencia inumana de Santa Sofia de la Piedad, a sua tremenda capacidade de trabalho começa. ram a se quebrantar. Não era só porque estivesse velha e es-gotada: a casa também se precipitou da noite para o dia nu-ma crise de senilidade. Um musgo tenro trepou nas paredes. Quando já não havia mais um lugar vazio no quintal, as er-vas daninhas quebraram o cimento da varanda por baixo, estilhaçaram-no como um cristal, e apareceram pelas frestas as mesmas florezinhas amarelas que quase um século antes Ur. sula tinha encontrado no copo onde estava a dentadura posti-ça de Melquíades. Sem tempo nem recursos para impedir os excessos da natureza, Santa Sofia de la Piedad passava o dia nos quartos, espantando os lagartos que tornavam a entrai de noite. Certa manhã, viu que as formigas ruivas tinham aban-340 donado o cimento escavado, atravessado o jardim, subido pela amurada onde as begônias tinham adquirido cor de terra e en-travam até o fundo da casa. Primeiro tentou matá-las com uma vassoura, a seguir com inseticida e, por fim, com cal, mas no dia seguinte estavam outra vez no mesmo lugar, caminhando sempre, tenazes e invencíveis. Fernanda, escrevendo cartas aos filhos, não percebia a arremetida incontrolável da destruição. Santa Sofía de la Piedad continuou lutando sozinha, brigan-do com as ervas daninhas para que não entrassem na cozinha, arrancando das paredes as borlas de teia de aranha que se re-novavam em poucas horas, raspando o cupim. Mas quando viu que até o quarto de Melquíades estava cheio de teias de aranha e empoeirado, ainda que o varresse e espanasse três vezes por dia, e que apesar da sua fúria da limpeza ele estava ameaçado pela ruína e pelo ar de miséria que só o Coronel Aureliano Buendía e o jovem militar tinham previsto, com-preendeu que estava vencida. Então, vestiu o usado traje de domingo, um par de sapatos velhos de Úrsula e as meias de algodão que Amaranta Ursula lhe dera de presente e fez uma trouxinha com as duas ou três mudas que lhe restavam. — Me entrego — disse a Aureliano. — É casa demais para os meus pobres ossos. Aureliano perguntou para onde ia e ela fez um gesto va-go, como se não tivesse a menor idéia do seu destino. Tratou de precisar, entretanto, que ia passar os seus últimos anos com uma prima-irmã que vivia em Riohacha. Não era uma expli- cação verossímil. Desde a morte de seus pais não tinha tido contato com ninguém no povoado, nem recebera cartas nem recados, nem se ouviu que falasse de parente algum. Aurelia-no lhe deu quatorze peixinhos de ouro, porque ela estava dis- posta a partir com a única coisa que tinha: um peso e vinte e cinco centavos. Da janela do quarto ele a viu atravessar o jardim com a sua trouxinha de roupa, arrastando os pés e cur-vada pelos anos, e a viu meter a mão por um buraco do por-tão, para fechá-lo depois de ter saído. Nunca mais se voltou a saber dela. Quando soube da fuga, Fernanda praguejou um dia in-teiro, enquanto revistava baús, cômodas e armários, coisa por 341 coisa, para se convencer de que Santa Sofia de la Piedad tinha carregado nada. Queimou os dedos tentando acender fogão pela primeira vez na vida e teve que pedir a Aui~ o favor de lhe ensinar a fazer café. Com o tempo, fic ele quem fazia os trabalhos de cozinha. Ao se levantar, nanda já encontrava o café da manhã servido e só torna”~ abandonar o quarto para apanhar a comida que Aureliano xava tampada no calor das brasas e que ela levava para a sa a fim de comê-la sobre toalhas de linho e entre can. bros, sentada numa cabeceira solitária, ao extremo de cadeiras vazias. Mesmo nessas circunstâncias, Aureliano e. nanda não partilharam a solidão, mas continuaram viv cada um na sua, fazendo a limpeza do quarto respectivo quanto as teias de aranha iam nevando as roseiras, do as vigas, acolchoando as paredes. Foi por essa época Fernanda teve a impressão de que a casa se estava enchei de duendes. Era como se os objetos, sobretudo os de uso rio, tivessem desenvolvido a faculdade de mudar de lugar los seus próprios meios. Fernanda passava tempo procui do a tesoura que estava certa de ter colocado em cima da ma e, depois de revirar tudo, encontrava-a numa da cozinha onde pensava não ter aparecido durante quatro’ De repente não havta um só garfo na gaveta dos talheres contrava seis no altar e três no tanque de lavar roupa. Aqu caminhada das coisas era mais desesperadora quando se tava para escrever. O tinteiro que punha à direita aparec. esquerda, o mata-borrão se perdia e era encontrado dois depois debaixo do travesseiro e as páginas escritas a Jose cadio se confundiam com as de Amaranta Ursula e andava com a má impressão de ter colocado as cartas nos velopes trocados, como realmente aconteceu várias vezes. C• ocasião perdeu a caneta. Quinze dias depois ela foi devc pelo carteiro, que a encontrara na bolsa e andava procurai. o dono de casa em casa. No princípio, ela pensou que sa dos médicos invisíveis, como a desaparição dos pessár e até começou a escrever uma carta para suplicar a eles a deixassem em paz, mas teve que interrompê-la para alguma coisa e quando voltou ao quarto, não só não 342 trou a carta começada, como também se esqueceu do propó-sito de escrevê-la. Durante um certo tempo, pensou que fosse Aureliano. Deu para vigiá-lo, pôr objetos à sua passagem na tentativa de surpreendê-lo no momento em que os mudasse de lugar, mas muito em breve se convenceu de que Aureliano não abandonava o quarto de Melquíades a não ser para ir àcozinha ou ao banheiro e que não era homem de brincadeira. De modo que terminou por acreditar que eram travessuras de duendes e optou por segurar cada coisa no seu lugar de uso. Amarrou a tesoura com um longo barbante na cabeceira da cama. Amarrou a caneta e o mata-borrão na perna da mesa e colou com goma-arabica o tinteiro no tampo, à direita do ~1ugar onde costumava escrever. Mas os problemas não se re-solveram assim de um dia para o outro, pois em poucas horas de costura já o barbante da tesoura não dava para cortar co-mo se os duendes o fossem diminuindo. Acontecia a mesma coisa com o barbante da caneta e até mesmo com o seu pró-prio braço, que em pouco tempo de estar escrevendo não al-cançava mais o tinteiro. Nem Amaranta Ursula em Bruxelas, nem José Arcadio em Roma, nunca nenhum deles soube des-ses insignificantes infortúnios. Fernanda contava que era fe-liz, e na realidade era, justamente porque se sentia liberta de qualquer compromisso, como se a vida a tivesse arrastado outra vez para o mundo de seus pais, onde não se sofria com os pro-blemas diários porque eles estavam resolvidos antecipadamente na imaginação. Aquela correspondência interminável fê-la per-der a noção do tempo, sobretudo depois que Santa Sofia de la Piedad foi embora. Acostumara-se a fazer a conta dos dias, meses e anos tomando como pontos de referencia as datas pre- vistas para a volta dos filhos. Mas quando estes modificaram os prazos uma e outra vez as datas se confundiram, os mar-cos foram trocados, e os dias começaram a se parecer tanto uns com os outros que não se sentiam passar. Em vez de se impacientar, Fernanda experimentava uma profunda compla-c~ncia em relação à demora. Não se inquietava com o fato de que, muitos anos depois de se anunciar às vésperas dos vo-tos perpétuos, José Arcadio continuasse dizendo que espera-va terminar os estudos de alta teologia para empreender os 343 de diplomacia; isto porque ela compreendia que era e calçada de obstáculos a escada em caracol que conduzia ~ trono de São Pedro. Por outro lado, seu espírito se exalt com notícias que para outros teriam sido insignificantes, mo aquela de que o seu filho tinha visto o Papa. Experime~ tou uma alegria similar quando Amaranta Ursula mandou di que os seus estudos se iam prolongar para além do tempo visto, porque as suas excelentes notas a tinham feito mereí dora de privilégios que o pai não levara em consideração fazer as contas. Tinham-se passado já mais de três anos desde que Sofia de la Piedad lhe trouxera a gramática, quando no conseguiu traduzir a primeira folha. Não foi um trab~ inútil, mas constituía apenas um primeiro passo de um nho cujo comprimento era impossível prever, porque o em castelhano não significava nada: eram versos cifrados. A. reliano carecia de elementos para estabelecer as chaves que permitissem decifrá-los, mas como Melquíades dissera que loja do sábio catalão estavam os livros de que ele para chegar ao fundo dos pergaminhos, decidiu falar com k nanda para que lhe permitisse ir buscá-los. No quarto rado pelas ruínas, cuja proliferação incontrolável ter por derrotá-lo, pensava na forma mais adequada de formr’ o pedido, antecipava-se às circunstâncias, calculava a oca mais adequada, mas quando encontrava Fernanda retiraP’ a comida do borralho, que era a única oportunidade de com ela, o pedido laboriosamente premeditado era e a voz, sumida. Aquela foi a única vez em que a Vigiava os seus passos no quarto. Ouvia-a ir até a porta’ receber as cartas dos filhos e entregar as suas ao carteiro cutava até alta hora da noite o traço duro e apaixonado caneta no papel, antes de ouvir o ruído do interruptor e o mi’ múrio das orações no escuro. Só então adormecia, confian. no dia seguinte que lhe daria a oportunidade desejada. i tanto com a idéia de que a permissão não lhe seria negada c certa manhã cortou o cabelo que já batia nos ombros, barba emaranhada, vestiu umas calças estreitas e uma cw de colarinho postiço que não sabia de quem tinha herdado 344 esperou na cozinha que Fernanda viesse tomar café. Não veio a mulher de todos os dias, a de cabeça levantada e andar fir-me, mas uma anciã de uma beleza sobrenatural, com uma ama-relada capa de arminho, uma coroa de cartolina dourada e a conduta lânguida de quem chorou em segredo. Na realida-de, desde que o encontrara nos baús de Aureliano Segundo, Fernanda pusera muitas vezes o carcomido vestido de rainha. Qualquer pessoa que a tivesse visto defronte do espelho, ex-tasiada com os seus próprios gestos monárquicos, poderia pen-sar que estava louca. Mas não estava. Simplesmente, trans-formara os trajes reais numa máquina de lembranças. Na pri-meira vez em que os vestiu não pôde evitar que se formasse um nó no coração e que os olhos se enchessem de lágrimas, porque naquele instante voltou a sentir o cheiro de betume das botas do militar que fora buscá-la em casa para faz&la rai-nha e sua alma se cristalizou com a saudade dos sonhos per-didos. Sentiu-se tão velha, tão acabada, tão distante das me-lhores horas da sua vida que desejou inclusive as que recorda-va como as piores, e só então descobriu quanta falta faziam as brisas de orégão na varanda e o vapor das roseiras ao en-tardecer e até a natureza animalesca dos que chegavam. Seu coração de cinza socada, que resistira sem quebrantos aos mais duros golpes da realidade cotidiana, desmoronou-se aos pri-meiros embates da saudade. A necessidade de se sentir triste ia se transformando num vício à medida que os anos a devas-tavam. Humanizou-se na solidão. Entretanto, na manhã em que entrou na cozinha e deparou com uma xícara de café que lhe oferecia um adolescente ossudo e pálido, com um brilho alucinado nos olhos, foi cortada pela lâmina do ridículo. Não só lhe negou a permissão como também, a partir de então, passou a carregar as chaves da casa no bolso onde guardava os pessários fora de uso. Era uma precaução inútil porque, se quisesse, Aureliano poderia fugir e até voltar para casa sem ser visto. Mas o prolongado cativeiro, a incerteza do mundo, o hábito de obedecer tinham ressecado no seu coração as se-mentes da revolta. De modo que voltou à clausura, passando e repassando os pergaminhos, e ouvindo até a noite já bem avançada os soluços de Fernanda no quarto. Certa manhã foi 345 acender o fogão como de costume e encontrou nas cinzas apa-gadas a comida que deixara para ela no dia anterior. Então se aproximou do quarto e a viu estendida na cama, coberta com a capa de arminho, mais linda do que nunca e com a pele transformada numa casca de marfim. Quatro meses depois, quando José Arcadio chegou, encontrou-a intacta. Era impossível imaginar um homem mais parecido com a mãe. Vestia um terno de tafetá preto, uma camisa de colari-nho redondo e duro, e uma estreita fita de seda com um laço, no Lugar da gravata. Era lívido, lânguido, de olhar atônito e lábios delicados. O cabelo negro, lustroso e liso, repartido no meio da cabeça por uma linha reta e sem vida, tinha a mesma aparência postiça da cabeleira dos santos. A sombra da bar-ba bem escanhoada no rosto de parafina parecia um proble-ma de consciencia. Tinha as mãos pálidas, com nervuras ver-des e dedos parasitários, e um anel de ouro maciço com uma opala amarela, redonda, no indicador esquerdo. Quando abriu a porta da rua para ele, Aureliano não teve necessidade de ima-ginar quem fosse para perceber que vinha de muito longe. A casa se impregnou, à sua passagem, do cheiro da água-de-colônia que Ursula lhe botava na cabeça quando era menino, para poder encontrá~-lo nas trevas. De algum modo impossí-vel de precisar, depois de tantos anos de ausência, José Arca-dio continuava sendo um menino outonal, terrivelmente tris-te e solitário. Foi diretamente ao quarto de sua mãe, onde Au-reliano vaporizara mercúrio durante quatro meses, no alam-bique do avô de seu avô, para conservar o corpo segundo a fórmula de Melquíades. José Arcadio não fez nenhuma per-gunta. Deu um beijo na testa do cadáver, tirou de debaixo da saia o bolsinho onde havia três pessários ainda sem uso e a chave do guarda-roupa. Fazia tudo com gestos diretos e deci- didos, em contraste com a sua languidez. Tirou do guarda-roupa um cofrezinho damasquinado com o escudo familiar e encontrou no seu interior perfumado de sândalo a carta vo-lumosa em que Fernanda desafogara o coração das incontá-veis verdades que lhe escondera. Leu-a de pé, com avidez mas sem ansiedade, e na terceira página se deteve e examinou Au-reliano com um olhar de segundo reconhecimento. 346 — Então — disse com uma voz que tinha alguma coisa de navalha de barba — você é o bastardo. — Sou Aureliano Buendía. Aureliano foi e não voltou a sair nem sequer por curiosi- — Vá para o quarto — disse José Arcadio. dade quando ouviu o rumor dos funerais solitários. As vezes, da cozinha, via José Arcadio perambulando pela casa, sufo-cando na sua respiração angustiada, e continuava escutando os seus passos pelos quartos em ruína depois da meia-noite. Não ouviu a sua voz durante muitos meses, não só porque José Arcadio não lhe dirigia a palavra, mas também porque ele não tinha vontade nenhuma de que isso acontecesse, nem tempo para pensar em nada além dos pergaminhos. Com a morte de Fernanda, apanhara o penúltimo peixinho e fora à livraria do sábio catalão, em busca dos livros de que precisava. Não se interessou por nada do que viu no trajeto, talvez porque care-cesse de lembranças para comparar, e as ruas desertas e as ca-sas desoladas eram iguais às que imaginara num tempo em que teria vendido a alma para conhece- las. Concedera-se a si mes-mo a permissão que Fernanda lhe negara, mas só por uma vez, com um objetivo único e pelo tempo mínimo indispensável, de modo que percorreu sem pausa as onze quadras que sepa-ravam a sua casa do beco onde antigamente se interpretavam os sonhos e entrou ofegante no desarranjado e sombrio local onde mal havia espaço para se movimentar. Mais que uma li-vraria, parecia uma lixeira de livros usados, colocados em de-sordem nas estantes esburacadas pelo cupim, nos cantos cheios de teias de aranhas e até nos espaços que deveriam ser desti-nados à passagem. Numa longa mesa, também atravancada de alfarrábios, o proprietário escrevia uma prosa incansável, com uma caligrafia roxa, um pouco delirante, e em folhas sol-tas de caderno escolar. Tinha uma bela cabeleira prateada que lhe caía na testa como o penacho de uma cacatua e seus olhos azuis, vivos e miúdos, revelaram a mansidão do homem que lera todos os livros. Estava de cuecas, ensopado de suor, e nao desatendeu à escrita para ver quem tinha chegado. Aureliano não teve dificuldade em resgatar de entre aquela desordem de louco os cinco livros que procurava, pois estavam no lugar 347 exato que lhe indicara Melquiades. Sem dizer uma palavra entregou-os junto com o peixinho de ouro ao sábio catalão, e este os examinou e suas pálpebras se contraíram como duas amêijoas. “Deve estar doido”, disse na sua língua, dando de ombros, e devolveu a Aureliano os cinco livros e o peixinho. — Pode levar — disse em castelhano. — O último ho-mem que leu esses livros deve ter sido Isaac, o Cego, de modo que pense bem no que está fazendo. José Arcadio restaurou o quarto de Meme, mandou la-var e remendar as cortinas de veludo e o damasco do dossel da cama vice-real e pôs outra vez em serviço o banheiro aban-donado, cuja caixa-d’água de cimento estava enegrecida por um limo fibroso e áspero. A esses dois lugares reduziu-se o seu império de segunda classe, de exauridos gêneros exóticos, de perfumes falsos e pedraria barata. A única coisa que pare-cia atrapalhá-lo no resto da casa eram os santos do altar do-méstico, que uma tarde queimou até reduzi-los a cinza, numa fogueira que acendeu no quintal. Dormia até depois das on-ze. Ia para o banheiro com um esfiapado roupão de dragões dourados e umas chinelas de pompons amarelos e ali oficiava um rito que pela sua serenidade e duração recordava o de Re-medios, a bela. Antes de se banhar, aromatizava a caixa-d’água com os sais que levava em três potes de alabastro. Não fazia abluções com a cuja, mas mergulhava nas águas perfumadas e permanecia até duas horas boiando de barriga para cima, adormecido pela frescura e pela lembrança de Amaranta. Pou-cos dias depois de ter chegado abandonou o traje de tafetá, que além de ser quente demais para a região era o único terno que tinha, e trocou-o por umas calças justas, muito parecidas com as que Pietro Crespi usava nas aulas de dança, e uma ca-misa de seda animal com as suas iniciais bordadas no cora-ção. Duas vezes por semana lavava a muda completa na caixa-d’água e ficava de roupão até que secasse pois não tinha nada mais para vestir. Nunca comia em casa. Saía à rua quando abrandava o calor da sesta e não voltava até tarde da noite. Então continuava o seu perambular angustiado, fungando co-mo um gato e pensando em Amaranta. Ela e o olhar terrível dos santos no fulgor da lâmpada noturna eram as duas lem-348 ~ranças que conservava de casa. Muitas vezes, no alucinante romano, tinha aberto os olhos na metade do sono e Amaranta surgindo de uma banheira de mármore raja- com as suas anáguas de renda e a venda na mão, idealiza- i pela ansiedade do exílio. Ao contrário de Aureliano José, ‘ie tentara sufocar aquela imagem no lago sangrento da guer-ele tentava mantê-la viva num pantanal de concupiscên-enquanto entretinha a mãe com a patranha sem fim da rocação pontifícia. Nem a ele nem a Fernanda nunca ocorre-.pensar que a correspondência deles era um intercâmbio de José Arcadio, que abandonara o seminário tão ce-quanto chegara a Roma, continuou alimentando a lenda teologia e do direito canônico, para não botar em perigo • herança fabulosa de que falavam as cartas delirantes de sua e que haveria de tirá-lo da miséria e da sordidez que par-ava com dois amigos numa água-furtada do Trastevere. recebeu a última carta de Fernanda, ditada pelo pres-~mento da morte iminente, meteu numa mala os últimos do seu falso esplendor e atravessou o oceano num po-“- onde os emigrantes se empurravam como reses de mata- comendo macarrão frio e queijo bichado. Antes de ler testamento de Fernanda, que não era mais que uma minu-ciosa e tardia recapitulação de infortúnios, já os móveis que-rados e a erva daninha da varanda lhe haviam indicado que tava metido numa armadilha da qual não sairia jamais, pa-ra sempre exilado da luz de diamante e do ar imemorial da primavera romana. Nas insônias extenuantes da asma, media tornava a medir a profundidade da sua desventura, enquan-to revia a casa tenebrosa onde os exageros senis de Ursula lhe haviam infundido o medo do mundo. Para estar certa de não perde-lo nas trevas, ela tinha assinalado um canto do quarto, o único onde poderia estar a salvo dos mortos que perambu- ~Iavam pela casa desde o entardecer. “Qualquer coisa ruim que ~voce fizer”, dizia-lhe Ursula, “os santos me contam.” As noites de terror da sua infância reduziram-se a este canto, onde per-manecia imóvel até a hora de se deitar, suando de medo num tamborete, sob o olhar vigilante e gelado dos santos delato- res. Era uma tortura inútil, porque já nessa época tinha ter- 349 ror de tudo o que o rodeava e estava preocupado para se sustar com tudo o que encontrasse na vida: as mulheres rua, que arruinavam o sangue; as mulheres da casa, que p riam filhos com rabo de porco; os galos de briga, que provi cavam mortes de homens e remorsos de consciência para o res~ da vida; as armas de fogo, que só com serem tocadas cond navam a vinte anos de guerra; as empresas audaciosas, só conduziam ao desencanto e à loucura, e tudo, enfim, quanto Deus criara com a sua infinita bondade e que o pervertera. Ao acordar, moído pela roda dos pesadelos, a ridade da janela e as carícias de Amaranta na caixa-d’ági e o deleite com que ela lhe punha talco entre as pernas cc. uma esponja de seda libertavam-no do terror. Até Ursula diferente sob a luz radiante do jardim, porque ali não lhe lava de coisas de pavor, mas lhe esfregava os dentes com de carvão para que tivesse o sorriso radiante de um Papa, lhe cortava e polia as unhas para que os peregrinos que gassem a Roma de todo âmbito da terra se assombrassem a beleza das mãos do Papa quando lhes desse a bênção, e penteava como um Papa, e o ensopava de água-de-colônia pai que o seu corpo e as suas roupas tivessem a fragrância de Papa. No pátio de Cas~elgandolfo ele tinha visto o Papa ma sacada, pronunciando o mesmo discurso cm sete idiom~ para uma multidão de peregrinos, e a única coisa que na ver dade lhe chamara a atenção fora a brancura das suas que pareciam esfregadas com água sanitária, o brilho deslum brante das suas roupas de verão e o seu discreto perfume água-de-colônia. Quase um ano depois do regresso a casa, tendo vendid para comer os candelabros de prata e o .penico heráldico na hora da verdade ~ó teve de ouro as incrustações do escu do, a única distração de José Arcadio era recolher no povoado para que brincassem na sua casa. Aparecia c eles na hora da sesta e os fazia pular corda no jardim, na varanda e virar cambalhotas nos móveis da sala, enquar ele andava por entre os grupos repartindo lições de bom com portamento. Por essa época já tinha acabado com as caIç~ justas e com a camisa de seda e usava uma muda ordinái 350 comprada nas lojas dos turcos, mas continuava mantendo a sua dignidade lânguida e os seus gestos papais. As crianças tomaram conta da casa como tinham feito no passado as com-panheiras de Meme. Até tarde da noite se ouvia tagarelar e cantar e dançar sapateado, de modo que a casa parecia um internato sem disciplina. Aureliano não se preocupou com a invasão enquanto não foram incomodá-lo no quarto de Mel-quíades. Certa manhã, dois meninos empurraram a porta e se espantaram diante da visão do homem emporcalhado e pe-ludo que continuava decifrando os pergaminhos na mesa de trabalho. Não ousaram entrar, mas continuaram rondando o quarto. Aproximavam-se cochichando pelas rachaduras, jo- gavam animais vivos pelas claraI~óias e, numa ocasião, pre-garam por fora a porta e a janela, e Aureliano precisou da metade de um dia para forçá-las. Divertidos pela impunidade das suas travessuras, quatro meninos entraram noutra manhã no quarto, enquanto Aureliano estava na cozinha, dispostos a destruir os pergaminhos. Mas imediatamente após se terem apoderado das folhas amareladas, uma força angélica levantou-os do solo e os manteve suspensos no ar até que Aureliano voltou a lhes tomar os pergaminhos. A partir de então não tornaram a incomodá-lo. Os quatro meninos mais velhos, que usavam calças cur-tas apesar de já se aproximarem da adolescência, ocupavam-se da aparência pessoal de José Arcadío. Chegavam mais ce-do que os outros e dedicavam a manhã a barbeá-lo, a fazer-lhe massagens com toalhas quentes, a cortar-lhe e polir-lhe as unhas das mãos e dos pés, a perfumá-lo com água-de-colônia. Em várias ocasiões, meteram-se na caixa- d’água, para ensaboá-lo dos pés à cabeça, enquanto ele boiava de barriga para cima pensando em Amaranta. Em seguida o secavam, botavam-lhe talco no corpo e o vestiam. Um dos meninos, que tinha o ca-belo louro e crespo e os olhos de contas rosadas como os coe-lhos, costumava dormir na casa. Eram tão firmes os vínculos que o uniam a José Arcadio que o acompanhava nas suas in-sônias de asmático, sem falar, perambulando com ele pela casa em trevas. Certa noite, viram na alcova onde Úrsula havia dor-mido um brilho amarelo através do cimento cristalizado, co- 351 mo se um sol subterrâneo tivesse convertido em vitral o ~ do quarto. Não precisaram acender a lanterna. Bastou-lh levantar as tábuas quebradas do lugar onde sempre estive~ a cama de Úrsula e onde o brilho era mais intenso para en~ contrar a cripta secreta que Aureliano Segundo se cansara procurar no delírio das escavações. Ali estavam os três sacq de Lona fechados com arame de cobre e, dentro deles, os seU mii duzentos e quatorze dobrões, que continuavam alumian do como brasas na escuridão. O achado do tesouro foi como uma deflagração. Em ve~ de voltar a Roma com a fortuna inesperada, que era o sonh~ amadurecido na miséria, José Arcadio transformou a casa nui~ paraíso decadente. Trocou por veludo novo as cortinas e o do• sei do quarto e mandou colocar ladrilhos no chão do banhe~ ro e azulejos nas paredes. O guarda-louças da sala de janta~ se encheu de frutas cristalizadas, presuntos e conservas, e despensa fora de uso voltou a se abrir para armazenar vinho~ e licores que o próprio José Arcadio retirava na estação d~ estrada de ferro, em caixas marcadas com o seu nome. Umi noite, ele e os quatro meninos mais velhos fizeram uma fest4 que se prolongou até o amanhecer. Ás seis da manhã saíran nus do quarto, esvaziaram a caixa-d’água e encheram-na d~ champanha. Mergull’taram em banho, nadando como pássa ros que voassem num céu dourado de bolhas aromáticas, en quanto José Arcadio boiava de barriga para cima, à margeu da festa, evocando Amaranta com os olhos abertos. Perma neceu assim, ensimesmado, ruminando a amargura dos set~ prazeres equívocos, até depois de os meninos se terem cansa do e ido em tropel para o quarto, onde arrancaram as corti nas de veludo para se enxugar e quebraram, na desordem, espelho de cristal de rocha e arrebentaram o dossel da cama tentando deitar-se em tumulto. Quando José Arcadio voltot do banheiro, encontrou-os dormindo amontoados, nus, nu ma alcova naufragada. Irritado não tanto pelos estragos co mo pelo nojo e pela pena que sentia de si mesmo no desolad vazio da saturnal, armou-s~. de umas disciplinas de guarda eclc siástico que guardava no fundo do baú, junto com um cilíci e outros ferros de mortificação e penitencia, e expulsou os me 352 ninos da casa, uivando como um louco e açoitando-os sem misericórdia, como não o teria feito com um bando de coio-tes. Ficou abatido, com uma crise de asma que se prolongou por vários dias e que lhe deu o aspecto de um agonizante. Na terceira noite de tortura, vencido pela asfixia, foi ao quarto de Aureliano pedir-lhe o favor de comprar numa farmácia pró-xima um pó para inalar. Foi assim que Aureliano fez a sua segunda saída à rua. Teve que percorrer apenas duas quadras para chegar até a estreita farmácia de empoeiradas vitrinas com potes de louça, marcados em latim, onde uma moça com a sigilosa beleza de urna serpente do Nilo aviou-lhe a receita do medicamento que José Arcadio tinha escrito num papel. A se-gunda visão do povoado deserto, iluminado apenas pelas ama-reladas lâmpadas das ruas, não despertou em Aureliano mais curiosidade que da primeira vez. José Arcadio chegou a pen-sar que ele havia fugido, quando o viu aparecer de novo, um pouco ofegante por causa da pressa, arrastando as pernas que a clausura e a falta de mobilidade tinham tomado fracas e de-sajeitadas. Era tão segura a sua indiferença pelo mundo que poucos dias depois José Arcadio violou a promessa que tinha feito à mãe e o deixou livre para sair quando quisesse. — Não tenho nada que fazer na rua — respondeu-lhe Aureliano. Continuou trancado, absorto nos pergaminhos que pou-co a pouco ia desvendando e cujo sentido, entretanto, não con-seguia interpretar. José Arcadio trazia para ele no quarto fa-tias de presunto, frutas cristalizadas que deixavam na boca um ressaibo primaveril e, em duas ocasiões, um copo de bom vi-nho. Não se interessou pelos pergaminhos que considerava mais como uma diversão esotérica, mas chamou-lhe a atenção a es-tranha sabedoria e o inexplicável conhecimento do mundo que tinha aquele parente desolado. Soube então que era capaz de compreender o ingles escrito e que, entre pergaminho e per-gaminho, tinha lido da primeira página à última, como se fosse um romance, os seis tornos da enciclopédia. A isso atribuiu no princípio o fato de que Aureliano pudesse falar de Roma como se tivesse vivido lá durante muitos anos, mas muito em breve percebeu que tinha conhecimentos que não eram enci-353 clopédicos, como os preços das coisas. “Tudo se sabe”, foi a única resposta que recebeu de Aureliano, quando lhe per-guntou como obtivera aquelas informações. Aureliano, por outro lado, surpreendeu-se de que José Arcadio visto de per-to fosse tão diferente da imagem que tinha formado dele quan-do o via perambular pela casa. Era capaz de rir, de se permi-tir de vez em quando uma saudade do passado da casa e de se preocupar com o ambiente de miséria em que se encontra- va o quarto de Melquíades. Aquela aproximação de dois sou-têirios do mesmo sangue estava muito longe da amizade, mas permitiu a ambos sobreviver melhor à insondável solidão que ao mesmo tempo os separava e unia. José Arcadio pôde en- tão ajudar Aureliano a resolver certos problemas domésticos que o exasperavam. Aureliano, por sua vez, podia se sentar para ler na varanda, receber as cartas de Amaranta Ursula, que continuavam chegando com a pontualidade de sempre, e usar o banheiro de onde tinha sido expulso por José Arca-dio desde a sua chegada. Certa madrugada de calor ambos acordaram alarmados por umas batidas desesperadas na porta da rua. Era um an-cião escuro, de olhos grandes e verdes que davam ao seu ros-to uma fosforescência espectral e com uma cruz de cinza na testa. As roupas em fal’rapos, os sapatos rotos e a velha mo-chila que trazia ao ombro como única bagagem davam-lhe o aspecto de um mendigo, mas a sua conduta tinha uma digni-dade que estava em franca contradição com a aparência. Bas-tava vê-lo uma vez, mesmo na penumbra da sala, para perce-ber que a força secreta que lhe permitia viver não era o instin-to de conservação, mas o hábito do medo. Era Aureliano Ama-dor, o único sobrevivente dos dezessete filhos do Coronel reliano Buendía, que vinha procurar uma trégua na sua longa e azarada existência de fugitivo. Identificou-se, suplicou lhe dessem refúgio naquela casa que nas suas noites de pária evocara como o último reduto de segurança que lhe restav~ na vida. Mas José Arcadio e Aureliano não se lembravam te. Pensando que era um vagabundo, lançaram-no à rua empurrões. Ambos viram então da porta o final de um dra. ma que tinha começado antes que José Arcadio fizesse 354 da razão. Dois agentes da polícia que tinham perseguido Au-reliano Amador durante anos, que o haviam farejado como cães por meio mundo, surgiram dentre as amendoeiras da cal-çada em frente e lhe deram dois tiros de Mauser que penetra- ram certeiramente pela cruz de cinza. Na realidade, desde que expulsara os meninos de casa, José Arcadio esperava notícias de um transatlântico que sairia pa-ra Nápoles antes do Natal. Dissera-o a Aureliano e inclusive fizera planos para lhe deixar um negócio montado que lhe per-mitisse viver, porque a cesta de víveres não tornara a chegar desde o enterro de Fernanda. Entretanto, tampouco aquele sonho final se haveria de cumprir. Certa manhã de setembro, depois de tomar café com Aureliano na cozinha, José Arca-dio estava terminando o seu banho diário quando irrompe-ram pelos vãos das telhas os quatro meninos que tinha expul-sado de casa. Sem lhe dar tempo para se defender, meteram-se vestidos na caixa-d’água, agarraram-no pelos cabelos e man-tiveram a sua cabeça afundada até que cessou na superfície o borbulhar da agonia e o silencioso e pálido corpo de delfim deslizou até o fundo das águas perfumadas. Depois levararr os três sacos de ouro que só eles e sua vítima sabiam onde es-tavam escondidos. Foi uma ação tão rápida, metódica e bru- tal que pareceu um assalto de militares. Aureliano, fechado no quarto, não percebeu nada. Nessa tarde, tendo sentido a sua falta na cozinha, procurou José Arcadio por toda a casa e o encontrou boiando nas transparências perfumadas da caixa-d’água, enorme e tumefacto, e ainda pensando em Amaran-ta. Só entáo compreendeu o quanto tinha começado a amá-lo. 355 AMARANTA Ürsula voltou com os primeiros anjos dc dezembro*, puxada por brisas de veleiro, trazendo o marido amarrado pelo pescoço com um cordel de seda. Apareceu sem avisar, com um vestido cor de marfim, um colar de pérolai que batia pelos joelhos, anéis de esmeraldas e topázios, e o cabelo redondo e liso, arrematado em pontas nas orelhas, co-mo asas de andorinha. O homem com quem se casara seis me ses antes era um flamengo maduro, esbelto, com ares de na- *No original ángeles de diciembre. Explicação do autor à tradutora: “A traduçlo deve ser Literal, porque todo mundo sabe que em dezembro chegam os anjos. NLç os viu nunca?” 356 vegante. Bastou empurrar a porta da sala para compreender que a sua ausência tinha sido mais prolongada e demolidora do que ela supunha. — Meu Deus — gritou mais alegre que alarmada — bem se vê que não há mulher nesta casa! A bagagem não cabia na varanda. Além do antigo baú de Fernanda com que a mandaram para o colégio, trazia duas malas-armários, mais quatro malas grandes, um saco para as sombrinhas, oito caixas de chapéus, um viveiro enorme com meia centena de canários, e o biciclo do marido desarmado dentro de um estojo especial que permitia carregá-lo como a um violoncelo. Não se permitiu sequer um dia de descanso, ao fim da longa viagem. Vestiu um batido guarda-pó de algo-dão que o marido trouxera junto com outros objetos de uso de motorista e empreendeu uma nova restauração da casa. Ex-pulsou as formigas ruivas que já tinham se apoderado da va randa, ressuscitou as roseiras, arrancou as ervas daninhas pe-la raiz e tornou a semear fetos, orégãos e begônias nos vasos da amurada. Pôs-se à frente de um grupo de carpinteiros, ser-ralheiros e pedreiros que consertaram as rachaduras do chão, nivelaram as portas e janelas, restauraram os móveis e bran- quearam as paredes por dentro e por fora, de modo que três meses depois da sua chegada respirava-se outra vez o ar de juventude e de festa que tinha existido nos tempos da piano-la. Nunca se vira na casa ninguém com mais bom humor a qualquer hora e em qualquer circunstância, nem ninguém mais disposto a cantar e dançar e a jogar no lixo as coisas e os cos-tumes deteriorados. Com uma vassourada, acabou com as lem-branças funerárias e os montes de cacarecos inúteis e instru-mentos de superstição que se amontoavam pelos cantos, e a única coisa que conservou, por gratidão a Ursula, foi o retra-to de Remedios na sala. “Olhem que maravilha”, gritava mor-rendo de rir. “Uma bisavó de quatorze anos!” Quando um dos pedreiros contou que a casa estava cheia de fantasmas e que a única maneira de espantá-los era procurar os tesouros ~ que tinham deixado enterrados, ela respondeu às gargalhadas que não acreditava em superstições de homens. Era tão espon-tânea, tão emancipada, com um espírito tão moderno e livre 357 que Aureliano não soube o que fazer com o corpo quando a viu chegar. “Que gigante!”, ela gritou, feliz, com os braços abertos. “Vejam como cresceu o meu adorado antropófago!” Antes que ele tivesse tempo de reagir, ela já havia colocado um disco no gramofone que trouxera consigo e estava tentan-do ensinar- lhe as danças da moda. Obrigou-o a trocar as es-quálidas calças que herdara do Coronel Aureliano Buendía, deu-lhe de presente camisas juvenis e sapatos de duas cores e empurrava-o para a rua quando passava muito tempo no quarto de Melquíades. Ativa, miúda, indomável como Úrsula, e quase tão bela e provocante como Remedios, a bela, era dotada de um estra-nho instinto para se antecipar à moda. Quando recebia pelo correio os figurinos mais recentes, estes lhe serviam apenas para comprovar que não tinha errado nos modelos que inventava e que cosia na rudimentar máquina de manivela de Amaran-ta. Era assinante de quanta revista de moda, informação ar-tística e música popular se publicasse na Europa, e mal passa-va os olhos por elas para perceber que as coisas andavam pe-lo mundo como ela imagina. Não era compreensível que uma mulher com aquele espírito tivesse vindo de regresso para um povoado morto, deprimido pela poeira e pelo calor, e menos ainda com um marido que tinha dinheiro de sobra para viver bem em qualquer lugar do mundo e que a amava tanto que tinha se submetido a ser levado e trazido por ela na coleira de seda. Entretanto, à medida que o tempo passava, tornava-se mais evidente a sua intenção de ficar, pois não urdia pla-nos que não fossem de longo prazo, nem tomava decisões que não estivessem orientadas para a obtenção de uma vida cô-moda e de uma velhice tranqüila em Macondo. O viveiro dos canários demonstrava que esses propósitos não eram impro-visados. Lembrando-se de que sua mãe lhe havia contado nu ma carta o extermínio dos pássaros, atrasara a viagem por vá-rios meses até encontrar um navio que fizesse escala nas ilhas Afortunadas e lá selecionou vinte e cinco casais dos canários mais finos, para repovoar o céu de Macondo. Essa foi a mais lamentável das suas numerosas iniciativas frustradas. A me-dida que os pássaros se reproduziam, Amaranta Ursula os ia 358 v soltando aos casais, e demoravam mais para se sentir livres do que para fugir do povoado. Em vão procurou conquistá-los com o viveiro que Ursula construíra na primeira restaura- ção. Em vão falsificou para eles ninhos de esparto nas amen-doeiras e espalhou alpiste nos telhados e alvoroçou os cativos para que os seus cantos dissuadissem os desertores, porque estes se espantavam à primeira tentativa e davam uma volta pelo céu, só o tempo indispensável para encontrar o rumo de re-gresso às ilhas Afortunadas. Um ano depois da volta, embora não tivesse conseguido fazer nenhuma amizade nem promover nenhuma festa, Ama-ranta Ursula continuava acreditando que era possível salvar aquela comunidade eleita pelo infortúnio. Gastón, seu mari-do, tinha cuidado para não contrariá-la, embora desde o meio-dia mortal em que descera do trem compreendesse que a de-terminação de sua mulher tinha sido provocada por uma mi-ragem de saudade. Certo de que ela seria derrotada pela reali-dade, não se deu sequer o trabalho de armar o biciclo, mas se pôs a perseguir os ovos mais visíveis das teias de aranha que os pedreiros desprendiam e os abria com as unhas e pas-sava horas contemplando com uma lupa as aranhinhas minús-culas que saíam do seu interior. Mais tarde, acreditando que Amaranta CJrsula continuava com as reformas para não dar o braço a torcer, resolveu armar a aparatosa bicicleta cuja ro-da anterior era muito maior que a posterior e se dedicou a cap-turar e dissecar quanto inseto aborígine encontrava nos arre-dores, que remetia em vidros de geléia para o seu antigo pro-fessor de história natural da Universidade de Luik, onde fize-ra estudos superiores de entomologia, embora a sua vocação dominante fosse a de aeronauta. Quando andava de bicicleta usava calças de acrobata, meias de velho gaiteiro e boné de detetive, mas quando andava a pé vestia linho cru, impecá-vel, com sapatos brancos, gravata-borboleta de seda, chapéu de palhinha e uma bengala de vime na mão. Tinha umas pu-pilas pálidas que acentuavam o seu ar de navegante e um bi-godinho de pêlos de esquilo. Embora fosse pelo menos quin-ze anos mais velho que sua mulher, os seus gostos juvenis, a sua vigilante determinação de fazê-la feliz e as suas virtudes 359 de bom amante compensavam a diferença. Na realidade, quen visse aquele quarentão de hábitos cautelosos, com o seu cor dão de seda no pescoço e a sua bicicleta de circo, não poderi~ pensar que tinha com a sua jovem esposa um pacto de amo desenfreado e que ambos cediam às urgências recíprocas no lugares menos adequados e onde os surpreendesse a inspira ção, como o fizeram desde que começaram a se encontrar, com uma paixão que o correr do tempo e as circunstância cada vez mais insólitas iam aprofundando e enriquecendo. Gai tón era não só um amante feroz, de uma sabedoria e uma im~ ginação inesgotáveis, como também talvez fosse o primeir homem na história da espécie que tinha feito uma aterragel de emergência e por pouco não se matara com a namorad só para fazer amor num campo de violetas. Tinham-se conhecido três anos antes de se casarem quand o biplano esportivo em que ele fazia piruetas sobre o colégi em que Amaranta Ursula estudava tentou uma manobra ii trépida para se desviar do mastro da bandeira e a primiti~ armação de lona e papel de alumínio ficou pendurada pela cai da nos cabos da energia elétrica. A partir de então, sem faz caso da perna engessada, nos fins de semana ele ia buscar Am ranta Úrsula na pensão de religiosas onde viveu sempre, cu regulamento não éia tão severo quanto Fernanda desejav e levava-a para o seu clube de esportes. Começaram a se am a 500 metros de altura, no ar dominical das planícies, e se se tiam mais compenetrados à medida que mais minúsculos iam fazendo os seres da terra. Ela falava de Macondo co~ da aldeia mais luminosa e plácida do mundo e de uma ca enorme, perfumada de orégão, onde queria viver até a velh ce com um marido leal e dois filhos travessos que se chama sem Rodrigo e Gonzalb, e em hipótese alguma Aureliano José Arcadio, e uma filha que se chamasse Virginia, e em hi. pótese alguma Remedios. Evocara com uma tenacidade tâo ansiosa o povoado idealizado pela saudade que Gastón com. preendeu que ela não ia querer casar se ele não a levasse para viver em Macondo. Concordou, como concordou mais tarde com o cordão de seda, porque pensou que era um capricho transitório que mais valia matar com o tempo. Mas quando 360 já tinham transcorrido dois anos em Macondo e Amaranta Úr-sula continuava tão contente como no primeiro dia, ele co-meçou a dar mostras de alarme. Já por essa época havia dis-secado quanto inseto era dissecável na região, falava o caste- lhando como um nativo e tinha decifrado todas as palavras cru-zadas das revistas que recebiam pelo correio. Não tinha o pre-texto do clima para apressar o regresso porque a natureza o havia dotado de um fígado colonial, que resistia sem proble-mas ao calor da sesta e à água com micróbios. Gostava tanto da comida crioula que uma vez comeu de enfiada oitenta e dois ovos de iguana. Amaranta Úrsula, pelo contrário, fazia vir pelo trem peixes e mariscos em caixas de gelo, carnes em lata e frutas em calda, que era a única coisa que podia comer, e continuava se vestindo à moda européia e recebendo figuri-nos pelo correio, apesar de não ter onde ir nem a quem visitar e de que a estas alturas o marido carecia de humor para apre-ciar os seus vestidos curtos, os seus chapéus tombados para o lado e os seus colares de sete voltas. O seu segredo parecia Consistir em encontrar sempre uma maneira de estar ocupa-da, resolvendo problemas domésticos que ela mesma criava e fazendo mal certas coisas que corrigia no dia seguinte, com uma diligencia perniciosa que teria feito Fernanda pensar no vício hereditário de fazer para desfazer. O seu temperamento festivo continuava agora tão desperto que quando recebia dis-cos novos convidava Gastón a ficar na sala até muito tarde para ensaiar as danças que as suas companheiras de colégio descreviam com desenhos e terminavam, geralmente, fazen-do amor nas cadeiras de balanço austríacas ou no chão duro. A única coisa que lhe faltava para ser completamente feliz era o nascimento dos filhos, mas respeitava o pacto que tinha fei to com o marido de não te-los antes de completarem cinco anos de casados. Procurando alguma coisa com que encher as horas mor-tas, Gastón costumava passar a manhã no quarto de Melquía-des, com o esquivo Aureliano. Satisfazia-se em evocar com ele os lugares mais íntimos da sua terra, que Aureliano co-nhecia como se tivesse estado nela por muito tempo. Quando Gastón lhe perguntou como tinha feito para obter informa-361 ções que não estavam na enciclopédia, recebeu a mesma posta que José Arcadio: “Tudo se sabe.” Além do sânsci Aureliano tinha aprendido ingles e frances e alguma coisa~ latim e de grego. Como agora saía todas as tardes e A ta Úrsula tinha estabelecido uma soma semanal para os gastos pessoais, o quarto parecia uma filial da livraria do si bio catalão. Lia com avidez até altas horas da noite, embo pela forma com que se referia às suas leituras Gastón pensai se que ele não comprava os livros para se informar, mas verificar a exatidão dos seus conhecimentos e que nenhum interessava mais que os pergaminhos, aos quais dedicava melhores horas da manhã. Tanto Gastón quanto sua gostariam de incorporá-lo à vida familiar, mas Aureliano e homem hermético, com uma nuvem de mistério que o ia tornando mais densa. Era uma condição tão impenetráv que Gastón fracassou nos seus esforços de fazer intimid~ com ele e teve que procurar outro passatempo para encher suas horas mortas. Foi por essa época que concebeu a de estabelecer um serviço de correio aéreo. Não era um projeto novo. Na realidade, tinha-o já tante adiantado quando conheceu Amaranta Ursula, só não era para Macondo mas sim para o Congo Belga, onde família fazia investim~ntos no óleo de palmeira. O casanr to, a decisão de passar uns meses em Macondo para satis -zer a esposa obrigaram-no a adiá-lo. Mas quando viu que ranta Úrsula estava empenhada em organizar um comite melhorias públicas e até ria dele por insinuar a possibilidai de regresso, compreendeu que as coisas ainda eram para to tempo e voltou a entrar em contato com os seus sócios de Bruxelas, pensando que para ser pioneiro dava mesma ser no Caribe ou na Africa. Enquanto progrediam ~ gestões, preparou um campo de aterragem, na antiga reu encantada, que agora parecia uma planície de pedernal celado, e estudou a direção dos ventos, a geografia do litoi. e as rotas mais adequadas para a navegação aérea, sem que a sua diligencia, tão parecida com a de Mr. Herbert, va infundindo no povo a perigosa suspeita de que o seu pósito não era planejar itinerários e sim plantar banana. —362 tusiasmado com um acontecimento que, quanto mais não fos-se, podia justificar o seu estabelecimento definitivo em Ma-condo, fez várias viagens à capital da província, entrevistou-se com as autoridades, obteve licenças e assinou contratos de exclusividade. Enquanto isso, mantinha com os sócios de Bru-xelas uma correspondencia parecida com a de Fernanda com os médicos invisíveis e acabou por convence-los a embarca-rem o primeiro aeroplano aos cuidados de um mecânico ex-perimentado que o armasse no porto mais próximo e o levas-se voando para Macondo. Um ano depois das primeiras men-surações e cálculos meteorológicos, confiando nas promessas repetidas dos seus correspondentes, adquirira o costume de passear pelas ruas olhando o céu, com a atenção voltada para os rumores da brisa, na espera de que aparecesse o aeroplano. Embora ela não tivesse notado, a volta de Amaranta Ur-:sula ocasionou uma mudança radical na vida de Aureliano. Depois da morte de José Arcadio, tornara- se um cliente assí-duo da livraria do sábio catalão. Além disso, a liberdade de que desfrutava agora e o tempo de que dispunha despertaram-lhe uma certa curiosidade pelo povoado, que conheceu sem assombro. Percorreu as ruas empoeiradas e solitárias, exami-ando com um interesse mais científico do que humano o in-terior das casas em ruínas, as telas metálicas das janelas, fu-Tadas pela ferrugem e pelos pássaros moribundos, e os habi-tes abatidos pelas lembranças. Tentou reconstruir com a aginação o arrasado esplendor da antiga cidade da compa-~a bananeira, cuja piscina seca estava cheia até a boca de patos podres de homem e sapatilhas de mulher e em cujas as devastadas pelo mato encontrou o esqueleto de um cão llcial ainda preso a uma argola com uma corrente de aço um telefone que tilintava, tilintava, tilintava, até que ele ti-u o fone do gancho, ouviu o que uma mulher angustiada remota perguntava em ingles e respondeu que sim, que a greve a terminado, que os tres mil mortos tinham sido jogados mar, que a companhia bananeira tinha ido embora, e que condo fma]mente estava em paz, há muitos anos já. Aquelas rrerias levaram-no ao prostrado bairro de tolerância, onde Outros tempos queimavam-se maços de notas para animar 363 7 a cumbia e que agora era um desfiladeiro de ruas mais angus-tiosas e miseráveis do que as outras, com algumas lanternas vermelhas ainda acesas e com os ermos salões de dança enfei-tados com fiapos de guirlandas, onde as macilentas e gordas viúvas de ninguém, as bisavós francesas e as matriarcas babi-lônicas continuavam esperando junto às vitrolas. Aureliano não encontrou quem se lembrasse da sua família, nem mes-mo do Coronel Aureliano Buendía, salvo o mais antigo dos negros antilhanos, um ancião cuja cabeça algodoada lhe da-va o aspecto de um negativo de fotografia, que continuava cantando na porta da casa os salmos lúgubres do entardecer. Aureliano conversava com ele no arrevesado papiamento* que aprendeu em poucas semanas e às vezes partilhava o caldo de cabeças de galo que lhe preparava a bisneta, uma negra gran-de, de ossos sólidos, cadeiras de égua e tetas de melões vivos, e uma cabeça redonda, perfeita, encouraçada por um duro ca-pacete de cabelos de arame, que parecia o almofre de um guer-reiro medieval. Chamava-se Nigromanta. Nessa época, Au- reliano vivia da venda de talheres, lampiões e outros cacare-cos da casa. Quando estava sem um centimo, o que era o mais freqüente, conseguia que nas cantinas do mercado lhe dessem as cabeças de galo que iam jogar no lixo e as levava a Nigro- manta para que fiz~sse as suas sopas aumentadas com beldroe-ga e perfumadas com hortelã. Ao morrer o bisavô, Aureliano deixou de freqüentar a casa, mas encontrava Nigromanta sob as escuras amendoeiras da praça, atraindo com os seus asso-vios de animal da montanha os escassos noctâmbulos. Mui- *Copio em tradução o verbete papiamento do Dicionário de Términos Filológicos de Fernando Lázaro Carreter, 3? edição corrigida, Gredos, Madrid, 1968, p. 311: “Língua crioula falada na ilha de Curaçao, ao norte do litoral venezuelano. Es- ta ilha foi incorporada à Espanha pelo seu descobridor, Alonso de Ojeda, em 1499. Em 1634 foi ocupada pelos holandeses. Era habitada, na época, por 1415 índios e 32 espanhóis. Em 1648 começou o afluxo de escravos negros que os portugueses im. portavam da África. Em 1795, a ilha passou para o domínio dos franceses; em 1800 foi colocada sob o protetorado inglês e, em 1802, voltou para o poderio holandês. A sua língua oficial é o holandês, mas a que se usa normalmente é o papiomento (

Compartir en redes sociales

Esta página ha sido visitada 174 veces.